Nas minhas arrumações de DVD's passou-me pelas mãos, há dias, o Coffret contendo o DVD de L'Oeuvre au Noir, de André Delvaux (1988), a partir da obra epónima de Marguerite Yourcenar, e cuja designação original é The Abyss, título de um dos capítulos do romance ("L'Abîme"). Contém a caixa, além do DVD, um opúsculo incluindo um texto de Adolphe Nysenhole sobre o romance e a sua passagem ao cinema, um texto de André Delvaux sobre a película, a biografia e filmografia deste cineasta, e, sobretudo, a quase integral correspondência trocada entre Marguerite Yourcenar e André Delvaux a propósito da adaptação cinematográfica da obra.
Lendo estas cartas, da ideia de realizar o filme (1982) até às últimas filmagens (1987), a que Marguerite Yourcenar já não pôde assistir por ter sido vítima de um acidente vascular cerebral (não chegando, assim, a ver o filme), nota-se a reserva da escritora, desde o início, quanto à adaptação da obra, e a sua progressiva aceitação das propostas de Delvaux, embora se tenham mantido sempre algumas reticências relativamente às sugestões do realizador. Ainda que Yourcenar tenha escrito, numa primeira carta a Delvaux, estar interessada no projecto, acrescentou que essa anuência era sans réticences, mais non sans angoisse. Como é sabido, e com o assentimento da autora, Delvaux eliminou a primeira parte do romance, iniciando-se o filme com o regresso de Zenão a Bruges, sua terra natal.
Antes de rever o filme de Delvaux, resolvi reler L'Oeuvre au Noir (1968), mas na edição portuguesa, saída em 1985 e que comprei nessa data. Tinha lido o original, alguns anos a seguir à sua publicação, mas nunca lera A Obra ao Negro. Tive uma profunda decepção. Apesar de ser assinada por António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, a tradução é muito irregular, algumas expressões são incompreensíveis, contém indesculpáveis gralhas e o aportuguesamento dos nomes próprios (de pessoas e locais) constituirá um verdadeiro pesadelo para quem não estiver familiarizado com a mais elementar história e geografia. Fui-me apercebendo desta calamidade à medida que lia a tradução portuguesa; sempre que o texto me suscitava desconfiança, comparava-o com o original francês e verificava as discrepâncias.
Posto isto, importa dizer que L'Oeuvre au Noir é uma obra excepcional, o grande romance de Yourcenar sobre uma personagem "histórica" fictícia, ainda que não tenha alcançado a celebridade de Mémoires d'Hadrien (1951), sobre uma personagem "histórica" real, que tornou a escritora conhecida em todo o mundo. A espantosa erudição de Marguerite Yourcenar, revelada nos seus livros, e as suas reflexões sobre Deus (deus), sobre o homem e o universo, sobre a vida e sobre a morte, fazem dela um dos mais interessantes autores do século passado. Cultivou todos os géneros literários, da ficção ao teatro e da poesia ao ensaio. E foi também uma notável tradutora de várias línguas, incluindo o grego antigo (dos Clássicos) e o grego moderno (do famoso poeta alexandrino Constantin Cavafy).
A sua recriação da Europa do século XVI, das lutas religiosas, das heresias e das perseguições, da magia e da alquimia, das tentações da carne e das confusões dos espíritos, das delações e das fogueiras - e da imaginação de personagens fictícias (a começar por Zenão) a partir de modelos reais e em diálogo com personagens reais -, testemunha uma concepção notável do ambiente dos fins da Idade Média e do despertar da Modernidade. Apesar de um outro lapso menor, quando, por exemplo, refere que Filipe II herdou a Flandres de sua avó (Joana a Louca) quando na verdade a recebeu de seu avô Filipe I, o Belo (Rei-consorte de Espanha e duque da Borgonha), o texto está solidamente assente na verdadeira História.
Escreve Marguerite Yourcenar nas Notas em apêndice ao romance: «La formule L'Oeuvre au Noir, donnée comme titre au présent livre, désigne dans les traités alchimiques la phase de séparation et de dissolution de la substance qui était, dit-on, la part la plus difficile du Grand Oeuvre. On discute encore si cette expression s'appliquait à d'audacieuses expériences sur la matière elle-même ou s'entendait symboliquement des épreuves de l'esprit se libérant des routines et des préjugés. Sans doute a-t-elle signifié tour à tour ou à la fois l'un et l'autre.»
e
«Les quelques soixante années à l'intérieur desquelles s'enferme l'histoire de Zénon ont vu s'accomplir un certain nombre d'événements qui nous concernent encore: la scission de ce qui restait vers 1510 de l'ancienne Chrétienté du Moyen Âge en deux partis theólogiquement et politiquement hostiles; la faillite de la Réforme devenue protestantisme et l'écrasement de ce qu'on pourrait appeler son aile gauche; l'échec parallèle du catholicisme enfermé pour quatre siècles dans le corselet de fer de la Contre-Réforme; les grandes exploitations tournées de plus en plus en simple mise en coupe du monde; le bond en avant de l'économie capitaliste, associé aux débuts de l'ère des monarchies.»
Revisto o filme, que mal recordava, creio que, no geral, teria merecido a aprovação de Yourcenar, embora algumas cenas lhe tivessem suscitado óbvias reservas. É verdade que, mesmo reduzido o livro a metade, seria sempre difícil, mesmo impossível, encaixá-lo em 1 h 48 m de película. Além de muitas omissões há algumas contradições quanto ao texto e ao espírito da obra, mas o essencial permanece. Poderá culpar-se o realizador por uma excessiva discrição nas alusões à homossexualidade (tema caro à autora), tanto mais que a primeira parte do romance foi omitida no filme, mas o pouco que se diz e que se vê sugere o clima da época. Também é verdade que a ausência de legendas, especialmente num filme desta natureza, dificulta a compreensão dos diálogos, nem sempre bem articulados em francês Mas isso é um problema das editoras de língua francesa que pensam (ou pensavam) que todos compreendem perfeitamente a sua língua, mesmo quando usada por actores doutras nacionalidades, cuja pronúncia é naturalmente afectada, ou que não existem espectadores surdos ou de audição diminuída.
Concluindo, felicito-me por ter relido o livro e revisto o filme. L'Oeuvre au Noir continua a ser de uma pertinente actualidade. No mundo actual, cheio de certezas, as dúvidas de Zenão tornam-no, como escreveu algures André Delvaux, o primeiro homem europeu. O que não faz dele o primeiro homem da União Europeia.
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