sábado, 26 de agosto de 2023

AMORES NO CAMPO

Reli, 32 anos depois de o ter comprado, Amores no Campo (1931), de Sarah Beirão. Confesso que mal me recordava do enredo. É um romance simples, um pouco cor-de-rosa, tendo incrustado um breve roteiro turístico de Portugal, França e Itália, onde decorre a estória, e que permite à autora mostrar os seus conhecimentos da vida e da arte desses países. Embora bem escrito, é pretensamente didáctico e está recheado de lugares comuns, sendo o desfecho facilmente previsível. Na vida real, tudo é normalmente - e infelizmente - muito diferente... mas que importa! Ainda assim, não deixa de ter alguma graça. No entanto, o mais curioso é o facto de toda a acção se desenrolar em meios aristocráticos e burgueses, de grande convencionalismo, quando é sabido que Sarah Beirão era uma fervorosa republicana. Mas, no fundo, talvez isso não seja propriamente uma contradição.

Sarah Beirão (1880-1974), além de escritora, foi jornalista, publicista, filantropa e activista dos direitos das mulheres. Na ficção, a sua obra é especialmente dedicada ao público infanto-juvenil. Foi presidente (1935-1941) do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado por Adelaide Cabete, e também presidente (1938) da Liga Nacional de Defesa dos Animais.

Constituiu, nos anos 70 do século passado, uma Fundação, de certo modo precursora da Casa do Artista, destinada a ser casa de repouso e assistência para artistas e intelectuais, com sede num solar do século XVIII, em Tábua, pertença da família, e que ainda hoje se encontra em funcionamento.

Em 1948, foi agraciada com o grau de Oficial da Ordem de Santiago da Espada.

Mas o seu nome não ficou inscrito na história das letras pátrias. Consultando a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, por onde todos estudámos, não lhe é dedicada sequer uma linha.

Não conheci pessoalmente Sarah Beirão, mas conheci-a de nome desde sempre. E já explico. Durante dois anos, deveria eu ter uns sete anos, o meu pai alugou na Eugaria (Colares) uma casa ou parte dela, onde passámos os meses de Verão. Era a moradia onde vivera Alfredo Keil, compositor, poeta, pintor, arqueólogo e maçon, autor da música de A Portuguesa (o Hino Nacional) e que, na altura, já tinha passado ao Oriente Eterno. Ainda me recordo, mesmo que vagamente, da forma justa e perfeita como se encontravam dispostos os azulejos azuis que ornamentavam o jardim da residência.

Havia na vizinhança a Quinta da Palma, então da família Ludovice (a que pertencera a primeira mulher do meu pai) e onde eu ia brincar quase diariamente com os "primos" da minha idade e a Quinta da Piedade, propriedade da Marquesa de Cadaval, lugar que viria a ficar célebre. E havia ainda uma mansão, não sei se na altura habitada, conhecida como a Casa de Sarah Beirão, figura muito conhecida e muito popular no povoado. O nome da escritora tornou-se familiar para mim desde a infância.

Ao reler agora o livro, recordei essas longínquas memórias.


AINDA D. AFONSO VI

Visitando vários caixotes de livros, encontrei outra obra sobre D. Afonso VI, neste caso D. Afonso VI, de António de Sousa de Macedo, com introdução do Embaixador Eduardo Brazão (1940).

Tem este livro a particularidade de ter pertencido ao erudito Castelo Branco Chaves (1900-1992), ensaísta, jornalista, crítico e tradutor, possuidor de vastíssima biblioteca que, por sua morte, foi total ou parcialmente vendida ao alfarrabista Tarcísio Trindade, proprietário da Livraria Campos Trindade, sita na Rua do Alecrim, 44, hoje encerrada pelo filho, em consequência da Lei da Rendas, e onde, durante anos, comprei dezenas de obras.

Recordo-me da aquisição. Quando comprava uma biblioteca com interesse, Tarcísio Trindade guardava os livros em grandes sacos, e abria-os progressivamente, durante dias consecutivos, em especial à tarde, e alguns clientes habituais deslocavam-se lá a essas horas e pacientemente aguardavam a abertura dos ditos sacos de plástico preto para serem os primeiros a obter as obras que lhes interessavam. E às vezes até havia disputas. Entre esse clientes, nos quais me incluía, estavam o Prof. Soares Martinez (catedrático de Direito e ex-ministro), um médico (cujo nome agora não me ocorre), que era sobrinho do Doutor Azeredo Perdigão e um embaixador jubilado (também não me recordo do nome), que fora nosso representante na Hungria, que morava na Linha de Cascais e que, contra a vontade da mulher, tinha instalado uma parte da sua biblioteca na garagem da casa. Sono tutti  morti! salvo eu, por enquanto. Foi numa dessas tardes que comprei este livro.

Sei que o livro pertencera a Castelo Branco Chaves porque está assinado e comentado por ele, a exemplo de todos os que da sua biblioteca adquiri. Era um homem de notável erudição e proprietário de valiosas e diversificadas obras. Espantei-me que o filho, Fernando de Castelo Branco, membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Portuguesa da História, que suponho ainda vivo, tivesse vendido no total ou em parte a biblioteca do pai, mas, ao que julgo supor, ele é também possuidor de vastíssima biblioteca e já não existem casas onde arrumar tantos livros.

Vem isto a propósito de uma anotação, a lápis como era seu hábito, de Castelo Branco Chaves na Introdução do livro. Lá chegarei.

Este D. Afonso VI é apresentado e tem introdução, como escrevi acima, do Embaixador Eduardo Brazão, que refere tratar-se de um manuscrito que encontrou na Biblioteca do Palácio da Ajuda e em cuja folha de rosto se lê: «Contem este papel hua sumaria rellação dos susessos, de Portugal desda menorid.e em the o falec.to  del Rey D. Affº o 6º q Deos descança escripta, e composta por Antonio de Souza de Macedo». Para já, há uma incongruência, pois o conteúdo do livro termina em 1664 e D. Afonso foi proclamado rei em 1656, assumiu efectivamente o poder em 1662, afastando a regente e sua mãe, D. Luísa de Gusmão, e foi deposto da governação pelo irmão, o infante D. Pedro (mais tarde D. Pedro II), em 1667, conservando todavia o título de rei, tendo morrido em 1683. Ora o livro apenas relata factos de 1662 a 1664.

António de Sousa de Macedo (1606-1682) foi um notável escritor e diplomata que D. Afonso VI nomeou secretário de Estado quando subiu ao trono (1662). Afastado do governo e desterrado em 1666, foi definitivamente afastado da Coroa em 1667, por pressão da rainha e do infante, futuro D. Pedro II.

Voltemos à anotação a lápis de Castelo Branco Chaves. Escreve ele: «Eduardo Brazão atribui a autoria desta obra a António de Sousa de Macedo - Afonso Pena Jor, no Brasil [ilegível] que foi escrita por Pedro Severim de Noronha, secretário das Mercês de D. Afonso VI e filho de Gaspar Severim de Noronha, secretário de D. João IV. Morreu assassinado em 1664, e por isso a narrativa fica no começo do 4º trimestre deste ano.» 

Não conheço as razões que levaram Afonso Pena Jor (filho de Afonso Pena, 6º presidente do Brasil) a esta conclusão, mas, atendendo ao período reportado na obra, parece verosímil. Já agora, uma correcção minha: Gaspar Severim de Noronha chamava-se Gaspar Severim de Faria, um pequeno lapso de Castelo Branco Chaves.

E Pedro Severim de Noronha morreu realmente em 1664, assassinado perto do Paço Real, quando regressava de liteira a sua casa, por um grupo de facínoras dos bandos que sempre acompanhavam D. Afonso VI.

Sobre o livro propriamente dito, falarei mais tarde.

 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

A ANULAÇÃO DO MATRIMÓNIO DE D. AFONSO VI

Trata este livro, D. Afonso VI (1937), de J.A. Pires de Lima e A.A. Pires de Lima, da anulação do matrimónio de D. Afonso VI com D. Maria Francisca Isabel de Saboia. É uma publicação breve e, segundo os autores, «trata-se apenas da reedição, embora bastante ampliada, de uma conferência pronunciada na Associação Médica Lusitana em 1927 e depois publicada numa revista médica.»

O trabalho reclama-se de intuitos modestos: procurar esclarecer o diagnóstico da moléstia de que sofreu D. Afonso VI e estudar juridicamente a causa da anulação do casamento.

Muito se tem escrito sobre este monarca, do seu reinado em geral e das circunstâncias em que veio a ficar separado da mulher e prisioneiro do irmão. Não julgo que este opúsculo seja uma contribuição decisiva para iluminar definitivamente o caso, mas, já que o encontrei entre velhos livros, tecerei alguns comentários.

Os autores estabelecem um quadro geral e passam depois à matéria mais delicada. Segundo testemunhos da época, D. Afonso teria comportamentos estranhos, por vezes violentos, na sequência de uma enfermidade contraída por volta dos dois ou três anos (meningite ?) e que o teria deixado semi-paralisado do lado direito. Mas não perdera propriamente o tino. O seu casamento com D. Maria Francisca, que lhe fora imposto, foi desde o início um fracasso. O Rei não gostava dela. 

O Processo de Anulação do Matrimónio implicava que D. Maria Francisca estivesse virgem (não consumação do casamento) e que o rei fosse impotente. E assim se fez. D. Afonso VI acamaradava com gente do povo, da qual muitos eram rufiões envolvidos em brigas, que acoitava no Paço. Lembremo-nos da família Conti. Tal gente levava rameiras para satisfação do soberano, que tentava manter com elas, quase sempre infrutiferamente, relações sexuais. Essas mulheres fizeram depoimentos bastante crus para constarem dos autos, uns coincidentes, outros não, mas o essencial ficou escrito. É pacífico afirmar que os órgãos sexuais do rei eram disformes, pénis minúsculo em repouso e de forma estranha quando erecto, testículos de volumes extraordinariamente desiguais; mas enquanto umas negam a existência de qualquer ejaculação, outras afirmam que o rei as teve, embora nem sempre o fizesse no vaso apropriado, por impossibilidade ou por precocidade. Inclinam-se os autores para hidrocele, também em consequência de um golpe que recebera uma vez nas partes genitais. Também é referido que o rei não conseguia desflorar as donzelas que os ditos lhe procuravam, e tinha de pedir a amigos ou criados para realizarem esse serviço para ele depois tentar penetrá-las. 

É evidente que o Processo se encontra enviesado, já que, como seria canónico, devia ter-se procedido ao exame físico dos cônjuges (inspectio corporis), para se concluir da impotência do rei e da virgindade da rainha. O promotor, nas razões finais, alegou que os autos satisfaziam «a quase todos os meios de prova», excepto «os da evidência certa», mas não se atreveu a requerer o exame, invocando o decoro régio e contentando-se com o juramento.

A rainha retirou-se para o convento da Esperança em 21 de Novembro de 1667. Em 23 de Novembro, o infante D. Pedro obteve a proclamação (assinada pelo rei ?) de que fazia desistência do Governo a favor do irmão.

A sentença que decretou a nulidade do matrimónio tem a data de 24 de Março de 1668. No dia 28 a rainha casava com o infante, sendo abençoados pelo bispo de Targa. 

«Ora para a celebração desse casamento, era necessária, além da anulação do matrimónio anterior, a dispensa chamada publicae honestatis, concedida pelo papa, por o novo marido ser irmão do anterior. E claro é que não devia ser pedida a dispensa sem que o casamento estivesse dissolvido, porque ninguém pode, estando ainda preso por um vínculo matrimonial, solicitar dispensa para casar de novo.» (p. 66)

Disse D. Afonso VI que fingiram os breves pontifícios, o que não é verdade porque ninguém teve coragem de falsificar um documento papal. Mas foi forjado um breve pelo cardeal duque de Vendôme, tio e protector da rainha, em 15 de Março de 1667, quando ainda não havia sentença de anulação. 

Os autores explicam a pressa na realização do casamento devido ao facto de D. Maria Francisca se encontrar grávida do infante D. Pedro e do escândalo público que decorreria da exibição dessa gravidez, tendo a rainha feito um juramento de virgindade. E concluem: «As três pessoas reais de quem nos ocupamos têm sido julgadas de maneiras muito diversas. Para nós, todas elas são bem repugnantes; ou digno de piedade só achamos D. Afonso, vítima desgraçada da doença, e da hipocrisia e traição dos políticos.» (p. 73)

Importa ainda dizer que o original do processo desapareceu, bem como a cópia autêntica que dele requereu o Duque de Cadaval, procurador da rainha. Só é possível estudar esta curiosa peça pelas cópias extraídas por alguns coevos.

Concluo, considerando que este opúsculo é confuso, desorganizado, omitindo elementos essenciais e apresentando outros desordenadamente. Não é através dele que se poderá esclarecer quem deseje aprofundar este caso, a todos os títulos lamentável na história do país.


terça-feira, 22 de agosto de 2023

A CO-CATEDRAL DE SÃO JOÃO, EM VALETTA (GUIA DE VISITA)

Aqui se estampa o mapa do interior da Co-Catedral, já referida em post anterior.




O BALIO DE LEÇA E A ORDEM DE SÃO JOÃO DO HOSPITAL

Arnaldo Gama (1828-1869) foi um escritor portuense que se dedicou especialmente ao romance histórico e cujas obras foram muito populares na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX.

Recordo-me de ter ouvido, muito jovem, um folhetim radiofónico da antiga Emissora Nacional, de saudosa memória, adaptado de um dos seus romances, creio que Um Motim há Cem Anos ou O Sargento-Mor de Vilar. Isto era no tempo em que havia, com frequência, teatro radiofónico e peças de teatro na televisão. Mas tudo acabou! A Cultura tem desaparecido progressivamente dos jornais, rádios e televisões "generalistas", para se confinar - e só alguns aspectos cuidadosamente escolhidos para não atentarem contra o politicamente correcto - a órgãos específicos, que privilegiam o que "está na moda"!

Vem isto a propósito da leitura de O Balio de Leça (1872), publicado em edição póstuma.

Resumindo:

D. Frei Estêvão Vasques Pimentel (c.1260-1336), Balio de Leça e Grão-Prior do Hospital, regressa incógnito da Terra Santa, em 1324, depois de ter passado por Avinhão e Roma, acompanhado por seu sobrinho [ou sobrinho-neto ???], o jovem D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira (c.1300-c.1375).

Ao chegar perto de Leça, toma conhecimento dos graves acontecimentos ocorridos no Baliado durante a sua ausência, onde deixara como Lugar-Tenente o valoroso Frei Nuno Mendes, que não conseguira travar os excessos de soberba, riqueza e luxúria de alguns frades. Um dos cavaleiros, D. Frei Rui de Alpoem, chega mesmo a raptar uma donzela, encerrando-a no Mosteiro.

[O regresso destes dois frades, de chapéus de abas largas, vieiras nas murças das esclavinas e bordões ferrados nas pontas, evoca o célebre regresso da Terra Santa do Romeiro do Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.]

Sem se dar a conhecer, Frei Estêvão Pimentel convoca para um encontro no exterior Frei Nuno Mendes, a quem avisa de que existe uma conspiração na Ordem para o depor, ou até assassinar. O Lugar-Tenente, que já tinha mandado encarcerar os frades revoltosos, julga não haver motivo para alarme, mas acaba por ser traído e foge do castelo.

Por convocação de um dos frades, reúne-se o Capítulo para eleger um novo Balio, mas surge subitamente Frei Pimentel. Frei Alpoem, que Pimentel considerava como um filho, faz-lhe frente, mas os frades reconhecem a autoridade do venerando Balio regressado, apoiado por Frei Nuno Mendes e pelo sobrinho D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira. E nos termos da Lei, e por muito que lhe custe, manda enforcar os revoltosos. Frei Rui de Alpoem, que se deixara encabeçar pelos verdadeiros revoltosos, por ser o mais valoroso dos militares, apesar de ainda muito jovem e bem parecido, deveria ser castigado de outra forma, mas roído pela desgraças dos companheiros, acaba por "enlouquecer" e rasgar as vestes de hospitalário, caindo morto aos pés de Frei Pimentel. Por isso, será sepultado na vala comum. 

Há pelo meio, entre os cerimoniais da Ordem, a vexata quaestio, o caso da donzela raptada e do presumível adultério de sua mãe com um dos frades. E a ira do marido supostamente enganado. Mas tudo se resolve com a graça de Deus e o milagre do falecido irmão D. Frei Garcia Martins (m. 1306), que fora Grão-Comendador dos Cinco Reinos de Espanha (e cujo nome foi dado a uma rua em Leça do Balio).

«Judica me domine quoniam ego in innocentia mea ingressus sum.» (Ezequeil, XVIII, 18)

O enredo do romance é muito interessante mas a linguagem é, por vezes, rebuscada, com arroubos medievalistas, como convém ao bem urdido argumento. Não me foi dado confirmar todas as datas, mas no essencial a cronologia afigura-se correcta.

Para ilustração dos leitores, acrescente-se que o jovem D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, bonito e valente moço, foi, apesar dos três votos dos cavaleiros professos de pobreza, obediência e castidade, muito dado aos negócios da carne. Assim, teve 32 filhos, entre os quais D. Pedro Álvares Pereira, que lhe sucedeu como Prior do Hospital e Mestre da Ordem de Calatrava e D. Nuno Álvares Pereira, que foi Condestável de Portugal.

D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, que era filho sacrílego de D. Frei Gonçalo Gonçalves Pereira, Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, e de Teresa Peres Vilarinho, foi o último Balio de Leça e obteve do Grão-Mestre da Ordem dos Hospitalários, em 1341, o Grão-Priorado de Portugal, sendo designado Prior do Crato, que passou a ser a sede da Ordem no nosso país.

domingo, 20 de agosto de 2023

O PALÁCIO DOS GRÃO-MESTRES, EM VALETTA

O Palácio dos Grão-Mestres da Ordem de Malta, em Valetta, foi construído em finais do século XVI, depois do Grão-Mestre Pietro Del Monte ter transferido oficialmente a sede da Ordem de Birgu para Valetta. Foi projectado pelo arquitecto Girolamo Cassar e possui dois pisos e duas entradas principais, a segunda mandada edificar pelo Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca. É hoje a Residência Oficial do Presidente da República de Malta, cujo gabinete está situado no andar superior, onde se encontram também a Câmara do Conselho e a Câmara do Grande Conselho, o Parlamento, a Sala de Jantar e a Sala dos Embaixadores. Ao lado desta última encontra-se a Sala Amarela (que hoje é verde) e que era a antiga Sala dos Pajens e que serve agora de antecâmara da Sala dos Embaixadores. Há dois grandes pátios no interior, o do Príncipe de Gales e o do Príncipe Alfredo. No pátio do Príncipe de Gales encontra-se uma estátua de Neptuno. No piso térreo estão os serviços oficiais e o Museu do Arsenal (armaduras e armas de guerra).

Na fachada do andar térreo existem algumas lápides com inscrições, nomeadamente com a data da independência (1964), com a data da proclamação da República (1974) e com a data da retirada da guarnição britânica (1979). A Torre Moura do Relógio foi instalada pelo Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, em 1745, e a Torre de Vigia foi construída pelo Grão-Mestre Emmanuel de Rohan-Pulduc (1775-1797). Esse Relógio, de bronze, exibe quatro figuras em trajes turcos e possui quatro mostradores, que indicam as horas, os dias, os meses e as fases da lua. 

Palácio do Grão-Mestre, hoje Residência Oficial do Presidente da República

Na parede em frente da entrada principal pode ver-se a lista dos 28 Grão-Mestres que governaram a ilha e no cimo da escada encontra-se a lista dos Comissários, Governadores e Governadores-Gerais. Uma placa no corredor principal refere que o Grão-Mestre Hugues Loubenx de Verdalle foi elevado a Cardeal pelo Papa Sixto V, em 1587. Muitas das pinturas do Palácio (e também da Co-Catedral) devem-se a Niccolò Nasoni, artista bem conhecido dos portugueses (a Igreja dos Clérigos, no Porto, por exemplo). No lado esquerdo do corredor estão os retratos dos Grão-Mestres António Manoel de Vilhena, Manuel Pinto da Fonseca, Francisco Ximenes de Texada e Ferdinand von Hompesch.

O Grão-Mestre Philippe Villiers de L'Isle Adam resistiu ao ataque turco de Suleiman I a Rhodes, em 1522, mas foi obrigado a render-se (honrosamente) à Sublime Porta, tendo obtido do Imperador Carlos Quinto a ilha de Malta para sede da Ordem. Tendo uma Comissão das diversas Línguas visitado a ilha para verificar as condições, foi decidido aceitar a doação num Capítulo Geral reunido em Viterbo, em 1530. Em 13 de Novembro o Grão-Mestre fez a sua entrada solene em Mdina, tendo prometido respeitar os direitos dos malteses e obtendo destes a vassalagem ao Grão-Mestre.

O Grão-Mestre Jean Parisot de La Valette distinguiu-se durante o épico cerco de Malta em 1565 e mandou construir a nova cidade de Valetta. Está sepultado na cripta da Catedral de São João.

O Grão-Mestre António Manoel de Vilhena reforçou os bastiões de Valetta e de Mdina, construiu o Seminário e a Residência Episcopal de Mdina e o Teatro Manoel. Deve-se-lhe também a construção do subúrbio de Floriana. É um dos nomes muito ilustres do Grão-Mestrado.

O Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, por muitos considerado um governante despótico, teve o mais longo reinado da Ordem: 32 anos! Reconstruiu o Albergue de Castela, hoje a sede do Governo e Residência Oficial do Primeiro-Ministro, acrescentou o Palácio Magistral, construiu o Tribunal de Justiça e a já citada Torre do Relógio. A sua acção estendeu-se a todos os aspectos da vida de Malta. A aldeia de Qormi (onde vive a maioria dos padeiros ao serviço da Ordem) chama-se hoje Città Pinto em sua homenagem. Fundou também a Universidade de Malta e fez numerosas doações à igreja de São João, como paramentos e dois grandes sinos cuja composição, diz-se, contém prata e ouro.

Albergue de Castela, hoje Residência Oficial do Primeiro-Ministro

O Grão-Mestre Ferdinand von Hompesch, que aos 16 anos fora pajem do Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, foi o último soberano da Ordem a residir em Malta. Nos finais do século XVIII, a maioria dos Cavaleiros era francesa e nutria simpatias pela República e por Napoleão Bonaparte. Quando em 1798 a frota francesa (a caminho do Egipto) se aproximou da ilha e pediu permissão para se reabastecer de água, o Grão-Mestre autorizou, mas permitindo apenas a entrada de dois navios, nos termos do Tratado de Neutralidade. Napoleão considerou a atitude um insulto e mandou avançar as suas tropas sobre a ilha. Para evitar o derramamento de sangue, o Grão-Mestre assinou uma trégua: Malta e as propriedades dos Cavaleiros passavam para a França; o Grão-Mestre podia abandonar a ilha; os Cavaleiros poderiam permanecer na ilha ou abandonarem-na regressando aos seus países; aos habitantes malteses, que naturalmente os havia, era permitido conservarem os seus direitos e privilégios e praticarem a sua religião. Em 1800, os ingleses conquistaram Malta e expulsaram os franceses. Hompesch e alguns cavaleiros embarcaram em 1798 rumo a Trieste.

A ala Perellos do Palácio (do nome do Grão Mestre Ramon Perellos y Roccaful), era a esquina do Palácio onde se encontravam os aposentos de Verão do Grão-Mestre: compreende hoje três divisões: a Sala de Espera, a Sala dos Ajudantes de Campo e o Gabinete do Presidente da República. No lado esquerdo do actual Gabinete existia uma alcova com um leito que era usado pelo Grão-Mestre. Existem muitas pinturas, entre as quais uma "Crucificação", de José de Ribera. 

O tecto da Sala do Grande Conselho foi pintado por Matteo Perez d'Aleccio, havendo no fundo um trono que era usado pelo Grão-Mestre em cerimónias oficiais. Foi nesta sala que, em 1818, durante a ocupação britânica, o rei Jorge III instituiu a Ordem de São Miguel e São Jorge, investindo como Grão-Mestre o então Governador de Malta, Sir Thomas Maitland.

A Câmara do Conselho é também conhecida por Câmara das Tapeçarias. Entre 1921 e 1976 alojou o Parlamento Maltês. Possui dez maravilhosos tapetes Gobelin, conhecidos por Tapeçarias das Índias e que foram doados pelo Grão- Mestre Perellos. 

A Sala dos Pajens, que foi chamada Sala Amarela, contígua à Sala dos Embaixadores, é utilizada hoje para os embaixadores assinarem o Livro de Honra por ocasião da apresentação de credenciais. Os Pajens faziam parte da entourage do Grão-Mestre. Ingressavam na adolescência e quando atingiam os 18 anos eram admitidos como Cavaleiros. Em Rhodes, o Grão-Mestre tinha oito pajens à disposição mas o seu número foi elevado para dezasseis quando a Ordem se mudou para Malta. Na decoração inclui-se uma miniatura de prata do  Castelo de Verdala (no Buskett Gardens) mandado construir pelo Grão-Mestre Verdalle e hoje residência de Verão do Presidente da República.

Em todo o Palácio existem quadros representando os principais Grão-Mestres, soberanos estrangeiros, personalidades notáveis e também ricas tapeçarias, louças preciosas, armaduras novas e usadas, pinturas dos grandes mestres, constituindo o conjunto um museu de inestimável valor.


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

A CO-CATEDRAL DE SÃO JOÃO, EM VALETTA

A Igreja Conventual de São João, em Valetta, hoje Co-Catedral, foi mandada edificar pelo Grão-Mestre Jean de La Cassière (1572-1581), em substituição da velha Igreja de São Lourenço, em Birgu. Foi consagrada em 20 de Fevereiro de 1578, por Ludovico de Torres de Monreal.

No altar-mor figura um conjunto escultórico de mármore representado o Baptismo de Cristo, da autoria de Melchior Gafà que, devido à morte prematura deste, foi concluído pelo seu discípulo Giuseppe Mazzuoli.

As capelas laterais são dedicadas a cada uma das Línguas (ou Grupos nacionais).

Do lado esquerdo:

- Capela da Língua Anglo-bávara

- Capela da Língua de Provence

- Capela da Língua de França

- Capela da Língua de Itália

- Capela da Língua da Alemanha

Do lado direito:

- Capela do Santíssimo Sacramento (antiga Capela de Nossa Senhora de Philermos, onde se encontrava um ícone bizantino assim conhecido e que os Cavaleiros trouxeram desta cidade de Rhodes em 1530). Quando o último Grão-Mestre reinante abandonou a ilha, levou consigo o ícone para Trieste, o qual foi entregue ao tsar Paulo I, quando este foi eleito Grão-Mestre. Depois da revolução de 1917, o ícone terá sido confiado à família real da Sérvia.

- Capela da Língua de Auvergne

- Capela da Língua de Aragão, Catalunha e Navarra

- Capela da Língua de Castela e de Portugal

No Oratório, do lado direito de quem entra, figura a célebre pintura "A decapitação de São João Baptista", do Caravaggio.

Na Sacristia, do lado esquerdo, encontra-se o célebre retrato do Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, por Antoine Favray. 

Mausoléu do Grão-Mestre António Manoel de Vilhena

Na Capela de Portugal existem dois extraordinários mausoléus: o do Grão-Mestre António Manoel de Vilhena, de Massimiliano Soldani Benzi e o do Grão-Mestre Manuel Pinto da Fonseca, de Vincenzo Pacetti. 

As outras capelas abrigam mausoléus de grão-mestres das respectivas línguas.

O pavimento da catedral serviu de lugar de sepultura de alguns dos mais distintos cavaleiros, sendo representadas, no mármore, as suas armas. 

A decoração barroca da Catedral deve-se ao pintor Mattia Preti. 

Na Cripta, encontram-se os mausoléus de alguns dos principais Grão-Mestres: Philippe Villiers de L'Isle Adam, Jean Parisot de La Valette, Alof de Wignacourt, Luís Mendes de Vasconcellos.

Existe também um Museu e um Cemitério exterior. 

Muito mais haveria a escrever, mas fiquemos por estas notas.


quarta-feira, 16 de agosto de 2023

ALGUMAS DATAS-CHAVE DA ORDEM DOS HOSPITALÁRIOS

 

"Decapitação de São João Baptista", por Caravaggio (Co-Catedral de São João - Valetta)

Aqui se anotam algumas datas fundamentais na vida da Ordem Soberana, Militar e Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rhodes e de Malta:

1113 - Aprovação da Ordem Hospitalária de São João de Jerusalém pela bula Pie Postulatio Voluntatis, do Papa Pascoal II.

1203-1206 - Infante D. Afonso, Grão-Mestre (português).

1291 - São João de Acre é conquistada pelos Mamelucos. Os Hospitalários abandonam a Terra Santa.

1292-1306 - Permanência dos Hospitalários em Chipre.

1306 - Os Hospitalários conquistam Philermos, capital de Rhodes, instalando-se na ilha.

1376-1396 - Juan Fernández de Heredia, Grão-Mestre (espanhol).

1440 - Primeiro ataque do Sultão egípcio Jakmak a Rhodes. 

1444 - Segundo ataque do Sultão Jakmak a Rhodes.

1476-1503 - Pierre d'Aubusson, Grão-Mestre e Cardeal (francês).

1480 - Ataque do Sultão otomano Mehmet II a Rhodes.

1521-1534 - Philippe Villiers de L'Isle-Adam, Grão-Mestre (francês).

1522 - Novo e decisivo ataque otomano a Rhodes, conduzido pelo Sultão Suleiman I.

1523 - Os Hospitalários abandonam Rhodes, após uma rendição honrosa a Suleiman I.

1523-1530 - Os Hospitalários permanecem oito anos nos seus navios, em comendas nos países católicos e em cidades como Messina, Cuma (Nápoles), Civitavecchia, Viterbo ou Nice.

1530 - Os Hospitalários instalam-se em Malta, por cedência do Imperador Carlos-Quinto, tendo por obrigação enviar anualmente um falcão ao Vice-Rei da Sicília. Não tendo a velha cidade de Mdina, no centro da ilha, as condições mínimas, a capital é instalada em Birgu (a Città Vittoriosa).

1557-1568 - Jean Parisot de La Valette, Grão-Mestre (francês), cuja juventude foi sexualmente turbulenta.

1565 - Cerco de Malta pelo Sultão Suleiman I.

1566 - O Grão-Mestre La Valette manda construir uma nova capital, Valetta (em frente a Birgau).

1568 - O Grão-Mestre Pietro Del Monte (italiano) instala a capital em Valetta, mesmo com a oposição de muitos cavaleiros, por não existirem ainda alojamentos dignos.

1601-1622 - Alof de Wignacourt, Grão-Mestre (francês). Encomendou o seu retrato a Caravaggio.

1622-1623 - Luís Mendes de Vasconcellos, Grão-Mestre (português).

1623-1636 - Antoine de Paule, Grão-Mestre (francês), a propósito do qual o escritor Ferreira de Castro estabeleceu um propositado equívoco histórico.

1722-1736 - António Manoel de Vilhena, Grão-Mestre (português).

1741-1773 - Luís Pinto da Fonseca, Grão-Mestre (português).

1797-1798 - Ferdinand von Hompesch zu Bolheim, Grão-Mestre (alemão). Renunciou por força das circunstâncias.

1798 - Napoleão Bonaparte conquista Malta. Os Cavaleiros são constrangidos a abandonar a ilha. Uma facção reúne-se na Rússia sob a égide do Tsar. Outros partem para Messina com von Hompesch.

1798-1801 - Tsar Paulo I, Grão-Mestre (russo).

1803-1805 - Giovanni Battista Tommasi, Grão-Mestre (italiano). 

1834 - A Ordem estabelece-se em Roma.

1879-1905 - Giovanni Battista a Santa Croce, Grão-Mestre (italiano).

2008-2017 - Matthew Festing, Grão-Mestre (inglês). Renunciou, a pedido do Papa Francisco, devido a um conflito com este.

2018-2020 - Giacomo Dalla Torre, Grão-Mestre (italiano).

Desde 2023 - John Dunlap, Grão-Mestre (canadiano). 


AINDA OS PORTUGUESES E A ORDEM DE MALTA (II)

Na sequência de post anterior, a Comunicação sobre os Grão-Mestres portugueses da Ordem de Malta efectuada pelo Embaixador Fernando Ramos Machado na Sociedade de Geografia, o autor produziu dois aditamentos, cujo segundo agora se publica:

   

           ADITAMENTO  II

            ANTOINE DE PAULE

                 

                                    

Antoine de Paule, eleito 56º Grão-Mestre da Ordem de Malta, a 10 de Março de 1623, era natural de Toulouse. Não é conhecida a data do seu nascimento que terá ocorrido na primeira metade da década de 1550, possivelmente em 1554.

 

Por altura da sua eleição, dizia-se, por graça, que três coisas tinham causado espanto na Europa: uma Rainha de Inglaterra que morrera virgem ( Isabel I, que, aliás, possivelmente não o era…) ; um Rei de França que não era católico (Henrique IV, que, de resto, se converteu…) e um Grão-Mestre de Malta, Antoine de Paule, que não era nobre (mas que, afinal, o era, pelo que “ce reproche portait sur le peu d’ancienneté de la maison de Paulo, alors encore toute nouvelle”).

Pertencia a uma família originária de Génova, instalada no Languedoque em 1475 e que entrara na Magistratura tolosense. Foi com seu avô, Étienne de Paulo, nobilitado como “Capitoul”, em 1512, Professor de Direito e Conselheiro no “Parlement” de Toulouse, em 1524, que começou, verdadeiramente, a ascensão da família. Seu pai, Antoine de Paulo, Senhor de Lafitte-Vigordane, Cépet, Rouis e Faurie, foi Conselheiro no “Parlement”, em 1540, e Presidente de uma das Câmaras do “Parlement, ” em 1554; Cavaleiro da Ordem de S. Miguel, em 1563.      

 (O “Capitoulat” foi a forma de administração municipal que regeu a cidade de Toulouse, de 1147 até 1789. Os magistrados da cidade, os “Capitouls”, eram eleitos, todos os anos, pelos dIferentes bairros (“capitoulats”), a fim de constituir o conselho municipal, ou Consistório. O seu número variou ao longo dos tempos - 4, 6, 8, 12… Sendo Toulouse uma cidade com Direito de Justiça e de Defesa, e com domínio sobre um vasto território, cabiam-lhes funções, não somente administrativas, mas também judiciárias e militares, que o Rei reconhecia como nobres e nobilitantes. Inicialmente, os “Capitouls” provinham das antigas famílias aristocráticas; a partir d Séc.XIII, passaram a ser também recrutados entre os burgueses enriquecidos e assimilados aos nobres. Em 1552, o Rei Henrique II decretou que todos os “Capitouls”, passados e futuros, suas mulheres e descendentes de ambos os sexos, gozariam dos mesmos privilégios e prerrogativas que todos os nobres do Reino. As atribuições dos Capitouls” ficaram reduzidas com o estabelecimento do “Parlement” de Toulouse.

Toulouse foi uma das 14 cidades francesas dotadas de “Parlement”, durante o Antigo Regime. Era um tribunal que, em nome do Rei, julgava recursos em questões civis, criminais e eclesiásticas. Os seus membros eram funcionários régios, proprietários dos cargos que exerciam, transmissíveis aos seus herdeiros, mediante um pagamento anual. Inamovíveis, a partir de 1497, alcançaram, em 1644, a nobreza de primeiro grau.)

Assim, Antoine de Paule pertencia, pelo lado paterno, a uma família nobre, ainda que não antiga, e de toga.

Antoine de Paulo casou, em primeiras núpcias, com Jacquette de Baulac e, em segundas, com Marie Binet. Dos dois casamentos, teve onze filhos, dos quais apenas Antoine de Paule afrancesou o seu nome, continuando os outros a escrever Paulo, à italiana. Por Marie Binet, sua mãe, o futuro Grão-Mestre estava ligado à Casa de Joyeuse, sendo parente chegado dos irmãos Anne, Antoine-Scipion, Henri (sucessivamente Duques de Joyeuse, tendo sido o segundo, também, Cavaleiro da Ordem de Malta, Grão-Prior de Toulouse em 1581) e, François, Arcebispo de Narbonne em 1581, de Toulouse em 1588, Cardeal em 1583. Joyeuse era uma família antiga, mas conheceu uma elevação fulgurante, quando o Viscondado foi elevado a Ducado, em 1581, por Henrique III, em benefício de Anne de Batarnay de Joyeuse , um dos  dois, entre os seus “mignons”, a ser conhecido como “archi-mignon”.

 

(Em França, tradicionalmente, a expressão “mignons” designava os favoritos do Rei. No tempo de Henrique III, assumiram um comportamento que, pelo seu refinamento e extravagância, levantaram críticas em muitos sectores da população. Os pregadores protestantes foram os primeiros a acusar os “mignon” de efeminados e, mesmo, de comportamento homossexual.

Conta-se que, quando D. António, Prior do Crato, esteve em França, a procurar obter o apoio de Henrique III para a sua causa, teria cedido aos “mignons” algumas das jóias da Coroa de Portugal, que ainda lhe restavam (isso passou-se 40 anos antes do período que nos ocupa, embora talvez fosse romanesco imaginar que alguns dos diamantes do Prior do Crato tivessem chegado ao poder do futuro Grão-Mestre, através do Duque de Joyeus

 

            UMA JUVENTUDE AGITADA

 

 Como alguns dos seus irmãos e meios-irmãos, Antoine de Paule começou por seguir carreira na Magistratura de Toulouse, tendo alcançado a posição de Conselheiro do “Parlement”.

 

 Ora, na segunda metade do Séc. XVI, a França esteve dilacerada pelas confrontações entre católicos e protestantes (huguenotes) as quais, entre 1562 e 1598, são conhecidas como Guerras de Religião. Toulouse e a sua região tornaram-se cenário de lutas, por vezes sangrentas, e o próprio “Parlement”, centro de Poder, foi cenário e objecto dos confrontos entre as duas facções, nas quais vários familiares de Antoine de Paule estiveram envolvidos.

O próprio Antoine de Paule terá tido uma juventude agitada. Aparece, por vezes mencionado, no quadro do “Caso Martin Guerre”; trata-se, porém, de lapso manifesto pois, tendo nascido em 1554, não poderia ter intervindo num caso julgado em 1560.

(O “Caso Martin Guerre foi o mais importante processo julgado no “Parlement” de Toulouse e um dos mais célebres da História Judiciária francesa, tendo sido objecto de adaptações literárias -incluindo por Alexandre Dumas - e cinematográficas. Em 1548, Martin Guerre, camponês de Artigat, no Condado de Foix, desaparece. Em 1556, surge um homem, apresentando-se como sendo Martin Guerre. Na verdade, trata-se de um impostor, Arnaud du Tihl, que tem semelhanças físicas com o desaparecido, sobre quem possui informações detalhadas; consegue convencer parte dos habitantes da aldeia, e a própria mulher de Martin Guerre, Bertrande, com a qual co-habita durante três anos, vindo a nascer duas filhas. Enquanto, no “Frei Luís de Sousa”, D. Madalena, feliz no casamento com Manuel de Sousa Coutinho, não reconhece (ou não quer, de início, reconhecer) D. João de Portugal, seu primeiro marido, Bertrande, há anos esposa abandonada, reconhece (ou quer reconhecer) em Arnaud du Tihl, o seu marido, Martin Guerre.

 

Mas começam a surgir dúvidas. Um soldado desmobilizado, de passagem, afirma que o verdadeiro Martin Guerre perdeu uma perna, na Batalha de São Quintino, na qual tomara parte, integrado nas tropas espanholas, incorrendo, assim, em crime de traição, para com o Rei de França.

 Num processo que lhe é movido, Arnaud de Tilh é acusado de “usurpar o leito conjugal de um outro homem”; graças, porém, ao testemunho de Bertrande, é absolvida. Mas, num outro, o Tribunal condena-o, por usurpação de identidade. Arnaud du Tihl recorre para o “Parlement” de Toulouse, cabendo a Jean de Coras, conhecido jurisconsulto e humanista protestante, a instrução do processo, que decorre em 1560. Apesar de muitos testemunhos em sentido contrário, Jean de Coras declara que o acusado é, na verdade, Martin Guerre. Contudo, mal acabado de pronunciar o seu veredicto, perante uma numerosa assistência, na qual estava presente o grande Michel de Montaigne, ocorre um golpe de teatro: apresenta-se na sala de audiências…o verdadeiro Martin Guerre, reconhecido por todos, incluindo por Bertrande. Arnaud du Tihl confessa o seu crime, pede perdão, é condenado e executado.

De acordo com certa versão, teria sido Antoine de Paule, o futuro Grão-Mestre, a localizar Martin Guerre, recolhido num estabelecimento da Ordem de Malta, com ele negociando a impunidade, no tocante ao crime de traição em que incorrera. E teria sido seu pai, Antoine de Paulo, Terceiro Presidente do “Parlement”, a fazê-lo surgir na sala de audiências. No contexto das rivalidades entre católicos e protestantes, Jean de Coras saiu desacreditado)

 Mas Antoine de Paule terá estado envolvido num episódio das lutas de Religião (ou nas quais a Religião era usada como pretexto); resumo um texto que encontrei:

 

Michel, seu irmão mais velho, que tomara o partido dos huguenotes, sem haver mudado de Religião, era Senhor, perto de Avignonet, do solar de Granval e do forte da Grand-Borde, com os quais exercia apertado controle sobre a estrada que ia de Toulouse a Carcassonne.

Era nesses dois locais que, a exemplo de tantos outros Senhores dessa época, Michel de Paulo tinha reunido uma tropa de “maus rapazes”, dos quais, sob pretexto de religião, se fizera o capitão. Dela faziam parte Antoine de Paule, seu irmão, futuro Grão-Mestre da Ordem de Malta, diversos Senhores (…), soldados desertores, camponeses salteadores, vagabundos que haviam seguido as tropas francesas a Itália ou guerreado na fronteira espanhola, servidores recrutados ao acaso e, enfim, huguenotes, que faziam do homicídio e da pilhagem tanto uma questão de gosto, como de consciência. Esta tropa acrescentou, à rapina, vários assassinatos. Em 1581, perante o clamor provocado por tantos crimes, Michel de Paulo acabou por ser condenado à morte pelo “Parlement” de Toulouse. Ainda que protegido por Jean de Paulo, seu irmão, então Presidente de Câmara naquele Tribunal, Michel de Paulo não escapou de ser assassinado pela população de Avignonet.

E o que aconteceu a seu irmão mais novo? Uma decisão do “Parlement” de Toulouse, de Setembro de 1581, ordenava que “Anthoine de Paulo, dito o Cavaleiro (…) seja levado, sob boa e segura guarda, às prisões da Conciergerie, para ser julgado, em conformidade com o Direito”.Mas não terá sido.

 

         NA ORDEM DE MALTA

 

Antoine de Paule foi admitido na Ordem de Malta em 1571. Era, então, muito novo, teria uns 17 anos. Como filho não primogénito, era natural que fosse destinado a uma carreira religiosa, e a pertença aos Hospitalários traria um brilho adicional a uma família, que estava em processo de consolidar a sua nobilitação. Mas a entrada na Ordem, para além do prestígio social, não terá levado a alterações sensíveis à vida de um jovem turbulento, que dava os primeiros passos na carreira da Magistratura.

Porém, perante o mandado de detenção, de 1581, dirigido contra “Anthoine de Paulo, dito o Cavaleiro”, a pertença à Ordem pode ter-lhe garantido a imunidade ou, pelo menos, facilitado a impunidade. Ter-se-ão revelado de grande utilidade as posições de relevo de familiares seus no “Parlement”, bem como a ligação à Casa de Joyeuse, da qual um dos membros, Antoine-Scipion, futuro Duque, era Cavaleiro de Malta e, por feliz coincidência, ascendera, em 1581, ao cargo de Grão-Prior de Toulouse.

 Segundo certa versão, Antoine de Paule embarcou logo para o Levante, fez, honrosamente, as suas “caravanas”, isto é, as três ou quatro expedições marítimas, com a duração de seis meses cada uma, a que os novos membros da Ordem estavam obrigados, batalhou contra os Turcos e perseguiu de tal forma os piratas barbarescos que, em recompensa, foi feito Comendador de Marselha.  

Mas não saltemos etapas.

Será, talvez, exagero imaginar que, tendo ele escapado, com a protecção do Grão-Prior de Toulouse, a ser detido, em 1581, se teriam seguido anos de uma longa ascese, de um processo de redenção; podemos, porém, aceitar que o rapaz truculento, que terçara as suas primeiras armas, num bando de ladrões e assassinos, ganhara maturidade e respeitabilidade. Terá sido para cortar com a memória da sua juventude que afrancesa o seu apelido, passando a chamar-se Antoine de Paule, em vez de Antoine de Paulo?

 Em 1590, é recebido na Ordem de Malta, como Cavaleiro de Justiça, isto é, professa, passando a estar vinculado pelos votos de obediência, pobreza e castidade. Anthoine de Paulo, dito o Cavaleiro, passa a ser Fr.Antoine de Paule.

Antoine-Scipion deixara, entretanto, de ser  Grão-Prior de Toulouse, mas um seu irmão, François, feito Cardeal, em 1584 (com 22 anos !) ,era  Arcebispo de Narbonne (desde 1581) e de Toulouse ( desde 1584).

Antoine de Paule integrou-se, naturalmente, na Língua de Provença. Os Hospitalários agrupavam-se segundo um sistema linguístico, não coincidente, necessariamente, com os Estados nacionais. Havia, de início, sete Línguas - Provença, Auvergne, França, Itália, Aragão, Inglaterra (com Escócia e Irlanda) e Alemanha; em 1462, por separação da de Aragão, é constituída a de Castela (com Leão e Portugal). A Língua de Provença era a mais antiga da Ordem, ocupava o primeiro lugar hierárquico, o seu Patrono era S. Miguel Arcanjo; na repartição dos altos Cargos, cabia-lhe o de Grande Comendador, o mais importante, logo a seguir ao de Grão-Mestre, que substituía, em caso de impedimento; compreendia os Grão-Priorados de Saint-Gilles e Toulouse.

Foram confiadas a Antoine de Paule as seguintes responsabilidades:

De 1599 a 1610, Comendador de Caubins, no Grão-Priorado de Toulouse.

No Grão-Priorado de Saint-Gilles, Comendador de Marselha, de Sainte-Eulalie, (em 1600,até 1623) e de Lacapelle-Livron (1617-1619)

Como era geralmente caso, a função daquelas Comendas era de natureza económica, constituíam a fonte dos rendimentos da Ordem. A de Marselha, porém, com o magnífico Forte de S. João, tinha relevância militar.

 

Em 1616, foi promovido a Grã-Cruz, diz-se que por “recomendação do Cardeal de Joyeuse, seu parente chegado”

 

Em 27 de Fevereiro de 1621, já perto dos 70 anos, ascendeu ao lugar de Grão-Prior de Saint-Gilles. Tratava-se do cargo mais elevado da Língua de Provença. Aquele Grão-Priorado, existente desde o Séc. XII, uns 200 anos antes do de Toulouse, era, também, de muito maior peso – nos finais do Antigo Regime englobava 56 Comendas (Toulouse apenas 20). Tendo a sede do Grão-Priorado em Saint-Gilles sido saqueada, durante as Guerras de Religião, os Grão-Priores trataram de mudar-se para as instalações da Comenda da Ordem em Arles, a partir de 1562, tendo sido Antoine de Paule que concluiu a transferência; manteve-se, porém, a designação de Grão-Priorado de Saint-Gilles.

 

                GRÃO-MESTRE

 

A 14 de Setembro de 1622, faleceu o Grão-Mestre Alof de Wignacourt. Segundo o Abbé Vertot, foram candidatos à sua sucessão Mendes de Vasconcelos, português, Balio de Acre, que tinha sido Embaixador da Ordem em Roma e França, e Antoine de Paule, da Língua de Provença, Grão-Prior de Saint-Gilles. Frei Dom Luís Mendes teve a preferência e foi proclamado Grão-Mestre, a de 17 de Setembro. Não chegou a gozar seis meses essa dignidade e, morreu a 6 de Março de 1623, com quase 80 anos de idade.

 

A 10 do mesmo mês, procedeu-se à eleição de um novo Grão-Mestre, e a escolha do Convento recaiu sobre Frei Antoine de Paule, Prior de Saint-Gilles, de 71 anos.

 

Por coincidência, ambos tinham sido admitidos na Ordem de Malta no mesmo ano, 1571, que é também o da decisiva Batalha de Lepanto, na qual participaram os Hospitalários. Mas, enquanto Vasconcelos iniciou, de imediato, a sua carreira, no caso de Antoine de Paule tal só terá ocorrido depois dos dramáticos acontecimentos de 1581.

 

Além das diferenças, que podemos facilmente detectar, entre a personalidade de Antoine de Paule e a do seu predecessor, constata-se que ambos percorreram carreiras bem distintas. Vasconcelos foi guerreiro, Embaixador e exerceu cargos no Governo central da Ordem, enquanto Antoine de Paule, até se tornar Grão-Mestre, se manteve no quadro regional da Língua de Provença. A História regista, sobretudo, o que Vasconcelos realizou, antes de ser eleito Grão-Mestre; no tocante a Antoine de Paule, aquilo que ele fez, durante os 13 anos que se seguiram à sua eleição.

 

               UM CARGO DE GRANDE COMPLEXIDADE

      

Com a Chefia da Ordem de S. João, o Grão-Mestre acumulava, então, a posição de Príncipe de Malta. A vocação da Ordem era dupla, religiosa e militar, virada para o “obsequium pauperum”, o serviço dos pobres e dos doentes, e para a “tuitio Fidei”, a defesa da Fé, que, naquele tempo, se traduzia na luta contra os Otomanos e na perseguição aos corsários barbarescos. Como Príncipe de Malta, cabia-lhe a administração e a defesa do Arquipélago maltês. Chefiava uma organização transnacional que, na sua vertente militar, era um Poder relevante no Mediterrâneo e, simultaneamente, governava um minúsculo Estado, base territorial da Ordem e garante da sua autonomia

                                                     

              ACUSAÇÔES

 

Acusações muito graves foram levantadas contra ele, logo após a eleição. “ O seu Magistério foi perturbado por dissensões que se elevaram novamente entre os Cavaleiros e por diversas acusações, dirigidas contra ele”. Com efeito, “a este Grão-Mestre não faltavam inimigos, e dessas pessoas que, com a ajuda do seu atrevimento, se orgulham de fazer passar, por verdades, as mais negras calúnias. Apresentam ao Papa um memorial no qual dizem que este Grão-Mestre é um homem dissoluto nos seus costumes, grande simoníaco, e que comprou a sua Dignidade com dinheiro”. Os termos variam, em diversas publicações antigas, mas permanece o mesmo sentido; também concorrem em que ele “acabou por se justificar” e, mesmo, que o fez “com muito sucesso e glória” de “todas estas calúnias, tendo enviado a Roma, para o defender, “o Comendador Fr. Denis Polastron de la Hillière, Cavaleiro de vida exemplar”.

A acusação mais grave dizia respeito aos seus “costumes dissolutos”. Que se quereria dizer, com esta expressão? Não é claro, mas, parece-me depreender se pretendia aludir a práticas homossexuais. E teriam algum fundamento? Numa publicação relativamente recente na Internet, destinada a visitantes franceses a Malta, lê-se “ Eis aquele a quem os malteses trocistas chamavam Paola”. Talvez o Grão-Mestre tivesse um estilo de vida de um refinamento julgado impróprio de uma Ordem Religiosa e Militar. Quarenta anos antes, o comportamento requintado e extravagante dos “mignons” de Henrique III, incluindo o “archimignon” Anne, primeiro Duque de Joyeuse e parente chegado de Antoine de Paule, tinham estado na base de idênticas acusações.

Creio se pode concluir que, com o sucesso da “justificação” em Roma, terão a imagem e a autoridade do Grão-Mestre saído consolidadas. Ferreira de Castro, porém, dá um tratamento muito diferente a esta matéria, que ganha uma relevância central.

 

 

                  RELAÇÔES COM A SANTA SÉ

 

Salvo nos primeiros cinco meses do seu Magistério, Antoine de Paule teve sempre, como interlocutor no Trono de S. Pedro, Urbano VIII. Podemos sorrir, ao ler como Ferreira de Castro afirma que o Pontífice agiu para reforçar a autoridade do Grão-Mestre, pois as relações entre os dois foram tensas.

“Mal o Grão-Mestre tinha saído desta questão” (a das acusações) “que lhe sobreveio uma outra, que não era menos difícil e na qual teve, como juiz e parte, o Papa Urbano VIII” .Este arrogava-se o direito de dispor de Comendas da Língua de Itália; as novas concessões, juntas às que haviam feito Paulo V e Gregório XV, ascendiam a 17” o que revoltou os Cavaleiros italianos, “que se recusaram a fazer as suas caravanas e a embarcar nos navios e nas galés da Religião, retirando-se, na sua maior parte, para suas casas e para o seio das suas famílias” (será esta “greve” que Ferreira de Castro interpreta como se devendo ao não reconhecimento, pelos Cavaleiros, da capacidade directiva do Grão-Mestre?). Para fazer face a esta “desordem”, o Grão-Mestre convocou o Conselho, logo em 1624, sendo decidido enviar um Embaixador ao Papa, para “levar-lhe as justas queixas da Religião (…) e três outros aos principais Soberanos da Cristandade (…) o Imperador (…) o Rei de França (…) e o Rei Católico”, mas, dois anos depois, “o Papa (…) continua a dar, aos seus parentes, as Comendas da Língua de Itália”; não satisfeito com isso, “Urbano, pouco favorável à Ordem”, publica um Motu Proprio, em 1628, alterando o que se observara, até então, na eleição dos Grão-Mestres, e em 1630, “o Papa, sempre empenhado em reduzir o governo da Ordem, em conformidade com os seus pontos de vista secretos, pretende mudar o antigo uso que se praticava nos Capítulos Gerais”.

Dada a natureza da Santa Sé e a da Ordem de Malta, nem sempre é fácil o relacionamento entre ambas; nos princípios do Séc.XVII era-o ainda menos. O Papa, Chefe da Igreja Católica, detentor supremo do Poder Espiritual, não renunciara a procurar influenciar/dominar os detentores do Poder Temporal (os Estados), embora já não nos mesmos termos da Idade Média, e era ele próprio, ao mesmo tempo, detentor de Poder Temporal, sobre parte importante da Itália (os Estados da Igreja).

Por seu lado, a Ordem de Malta, ainda que designada como Soberana, não o era inteiramente, no plano jurídico. Sendo ela uma Ordem Religiosa, o Grão-Mestre devia obediência ao Papa (no plano espiritual); tendo recebido Malta de Carlos V, reconhecia o Imperador como Suserano, o que se simbolizava através da entrega de um tributo anual, um falcão, ao Vice-Rei da Sicília. Em termos práticos, a Ordem comportava-se, e era tida, como uma entidade soberana, aliás uma potência naval de grande importância no Mediterrâneo, desempenhando um notável papel, na defesa contra os Otomanos. Com Urbano VIII, as dificuldades levantaram-se, por o Papa abusar da sua autoridade espiritual, para se beneficiar a si próprio pessoalmente, ou parentes seus, ou a sua posição política.

Note-se que, enquanto a Ordem acreditava um Embaixador junto da Santa Sé, esta, diferentemente do que praticava com os Estados, não acreditava um Núncio (que é um Embaixador) junto da Ordem, mas um Delegado Apostólico, assumindo-se, assim, numa posição de superioridade. E, sobretudo, como apreciável instrumento de pressão sobre a Ordem, o Delegado Apostólico preenchia também o lugar de Inquisidor, com autoridade sobre toda a população do Arquipélago Maltês, incluindo os Cavaleiros, dispondo de Tribunais, cárceres, etc.. De 1634 a 1639, cobrindo os últimos anos do Grão-Magistério de Antoine de Paule, o Delegado Apostólico e Inquisidor foi Fabio Chigi, que, em 1655, haveria de ser eleito Papa, adoptando o nome de Alexandre VII.

Antoine de Paule foi o terceiro Grão-Mestre (depois de Alof de Wignacourt e Luís Mendes de Vasconcelos) a receber o tratamento de Alteza Sereníssima, mas, como escreve Fr. António Pereira de Lima, apenas nos seus “primeiros anos (…) no fim dos quais resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência, e aos Cardeais do Sacro Colégio de Roma, e aos Arcebispos Eleitores do Império, Mogúncia, Colónia e Tréveres, com que se acomodaram os Grão-Mestres, por serem pessoas Eclesiásticas, e filhos muito obedientes à Igreja Romana”. A alteração terá reflectido a má vontade de Urbano VIII para com a Ordem. Em meados do Séc.XVIII, com Pinto da Fonseca, o tratamento atribuído aos Grão-Mestres foi elevado a Alteza Eminentíssima, assim se mantendo, até hoje.

Como marco relevante do Magistério de Antoine de Paule, assinala-se, consensualmente, que “celebrou um Capítulo Geral, com grande utilidade da Ordem”. Os Capítulos Gerais deviam ter lugar, todos os cinco anos, para revisão dos Estatutos. Este, o 16º a ter lugar na Ilha, foi convocado para 11 de Maio de 1631.Também para a sua preparação e realização, se verificou forte confrontação com a Santa Sé. Já no ano anterior, como acima se viu, Urbano VIII pretendera alterar o “antigo uso”, que regia aquelas reuniões. Depois, o Papa consentiu que se observasse a prática de participação de 16 Comissários, 2 por Língua, mas quis que o Inquisidor assumisse a Presidência. O Grão-Mestre assegurou estar disposto a obedecer, mas assinalou que o “corpo da Religião sofre impacientemente com que se queira introduzir, na governação, uma pessoa estranha à Ordem, com o título e autoridade de Presidente”. Não tendo o Papa cedido, o Conselho entendeu dever submeter-se mas, para evitar problemas, os Cavaleiros jovens foram mandados embarcar e navegar, durante a reunião do Capítulo Geral.

 

O Abbé de Vertot refere que “aquela assembleia (…) com sábios regulamentos, concluiu os assuntos gerais e particulares. Como, desde aquele tempo, não se realizou nenhum Capítulo, os julgamentos e regulamentos daquele servem hoje de lei e de decisões sobre os diferendos que podem ocorrer na Ordem”. Também Saint-Allais, em 1839, sublinha a realização do “Capítulo Geral no qual se fizerem Estatutos cuja duração se prolongou até aos nossos dias”.

 

                 LUTA CONTRA OS TURCOS

 

A este respeito, as versões divergem. Assim, pode ler-se, por exemplo, que:

 

 - “As armas da Religião não foram felizes, sob este Grão-Mestre; os Turcos, em mais de um recontro, levaram a melhor sobre os Cavaleiros; 

 

-“ Os Cavaleiros (…) sofreram perdas que foram, porém, compensadas por alguns sucessos que obtiveram, perto de Zante e de Tripoli”;

 

-“Durante o Magistério de de Paule, a Marinha da Ordem conservou a superioridade que tinha adquirido sob Vignacourt. No entanto, os sucessos foram seguidos de alguns reveses, e a Ilha de Malta ameaçada pelos Turcos, em cinco ocasiões diferentes; mas as fortificações que tinham sido erguidas, punham-na ao abrigo das acções deles”; 

 

-“Durante o seu Reinado, alguns recontros navais, de maior ou menor importância, tiveram lugar, que encheram a Tesouraria da Ordem e tenderam a incrementar a prosperidade comercial da Ilha”.

 

Poderíamos dar algum desconto ao que se lê na “Histoire de Malthe avec les Statuts & et les Ordonnances de l’Ordre” (já que, como ali se precisa “o Sereníssimo Grão- Mestre de Paule é presentemente reinante “) :

 

”No seu tempo, as galeras da Religião tiveram alguns belos combates e presas sobre os Turcos diversas vezes, e particularmente em duas viagens de quatro Galeões do Rei de Tunis”.

 

Frei Lucas de Santa Catarina escreve que, ultrapassado o flagelo da peste, no início do Magistério de Antoine de Paule, “passaram logo as suas Galés a sinalizar-se com importantes presas e singulares vitórias”. Mas, sobre o ataque, pela Ordem, à Ilha de Santa Maura, ocupada pelos Turcos, em 1625, o seu registo diverge frontalmente do do Abbé Vertot. Assim, Frei Lucas considera que os Cavaleiros saíram “tão coroados com o triunfo, como premiados de despojo”; mas, para Vertot, tratou-se de um insucesso, com 12 Cavaleiros mortos. Ambos assinalam o desastre sofrido pelos Hospitalários, no mesmo ano, com perda de duas Galés (a S. João e a S. Francisco) e com muitas baixas. Vertot, ao contrário de Frei Lucas, não menciona a vitória alcançada, dois meses depois, no mar de Chipre, mas diferentemente do autor português, fala nos sucessos do General Valdi, em 1634, um junto da Ilha de Zante, com a tomada de quatro navios, “carregados de 650 Mouros ou negros, enviados da Barbaria a Constantinopla”, e outro, “contra os corsários de Tripoli, sobre os quais fizeram 338 escravos e libertaram 60 Cristãos”.

Trata-se, pois, de um quadro inconclusivo, mas que não sustenta as críticas de Ferreira de Castro. Também nenhuma alusão se encontra à suposta incapacidade de Antoine de Paule, à sua falta de autoridade sobre os Cavaleiros e à recusa destes em obedecer às suas ordens.

Por outro lado, diversos autores referem, elogiosamente, que aumentou as capacidades navais da Ordem, que passou a dispor de 6 galés, em vez de 5, como até aí.

 

                    PRÍNCIPE DE MALTA

 

Em 1631, Antoine de Paule ordenou o recenseamento da população das Ilhas de Malta e Gozo; o número de habitantes seria de 51.750, sem contar os religiosos, os Cavaleiros e os familiares da Inquisição.

 

Dotando a Ordem de novos recursos navais, Antoine de Paule reforçava os meios de defesa da Ilha, pela qual era responsável, na sua qualidade de Príncipe de Malta. Com o mesmo objectivo, levantou fortificações, em particular uma linha fortificada, fechando a Península de Valeta, do lado de terra, e que podia servir de refúgio à população, em caso de invasão.

Em 1626, fundou o povoado de Paola, imediatamente a Sul de Valeta, para aliviar o excesso de população na Cidade. Para atrair habitantes, erigiu lá uma Igreja em honra de Santa Ubaldesca, que pertencera à Ordem de Malta e era muito venerada pelos Cavaleiros.

Deve-se-lhe, também, a construção da Igreja e do Convento de Santa Teresa, em Burmola.

 

Merece destaque o Palácio de S. António, em Attard, sumptuosa moradia que fez edificar, como sua habitação pessoal e que, nos nossos dias, é a Residência do Presidente da República de Malta. O estilo de vida que o Grão-Mestre ali levava, requintado e dispendioso, com um inumerável pessoal doméstico, foi objecto de críticas. 

 

                A PROVENÇA

 

Antonie de Paule, já Grão-Mestre, manteve laços com a Região de onde era originário:

 

 Logo em 1624,ordenou a construção dum Mosteiro, para acolher religiosas da Ordem de Malta, em La Cavalerie, no Grão-Priorado de Toulouse.

                                                   

Num outro domínio, é vista positivamente a sua acção, considerada essencial, na salvaguarda dos arquivos da Língua de Provença. Durante as Guerras de Religião, grande parte das Comendas haviam sido saqueadas. A partir da Década de 1620, a Ordem e Malta lançou-se numa política de recuperação dos arquivos dispersos, que foram centralizados na torre do Hôtel Saint-Jean, não só os das Comendas do Grão-Priorado de Toulouse, como os de 17 pertencentes ao de Saint-Gilles, mas que se encontravam sob a alçada do “Parlement” de Toulouse. A obra de Antoine de Paule foi prosseguida por Jean-Paul de Lascaris-Castellar, que lhe sucedeu à frente da Ordem e que, também, fizera carreira na Língua de Provença.

 

Outra contribuição de Antoine de Paule para a preservação da memória da Ordem, não já no plano regional, mas no geral, foi ele ter feito editar, em 1629, a tradução francesa de uma obra que lhe é dedicada, redigida por Giacomo Bosio, traduzida e completada por Boissat e Baudoin e publicada por Anne de Naberat, Comendador de Saint-Jean d’ Aix; trata-se da “ Histoire des Chevaliers de l’ ordre  de S. Jean de Jerusalém”, primeiro e um das mais relevantes livros sobre a Ordem de Malta , a que já aludi.

 

                 A AMÉRICA

 

Durante séculos, como acima se disse, o palco de actuação dos Hospitalários, como Ordem Militar, foi o Mediterrâneo. Por outro lado, as Comendas, das quais provinham os recursos da Ordem, espalhavam-se pelo Continente europeu, com particular concentração em França.

 

Ora, na primeira metade do Séc. XVII, a Ordem de Malta, a exemplo de outras Potências, esteve a ponto de lançar-se no que poderia chamar-se uma “aventura americana”, em ligação com a expansão ultramarina da França; com efeito, foi promovida por Cavaleiros da Ordem, que prestavam serviço na Marinha francesa. Em 1635, o Cavaleiro Isaac de Razilly, que foi um influente conselheiro de Richelieu e que teve papel de destaque nos inícios da colonização da Acadia ou Nova França (no território do actual Canadá) procurou associar a Ordem de Malta ao projecto, como meio de ultrapassar as dificuldades financeiras encontradas. Propôs, então, a Antoine de Paule, a fundação de um Priorado em La Hève, tendo a resposta do Grão-Mestre, que invocava a necessidade de a Ordem se concentrar na luta contra os Otomanos, sido, sensatamente, dilatória. Razilly faleceu em Novembro desse ano e, em 1636, Antoine de Paule. 

 

(Já o seu sucessor, o Grão-Mestre Lascaris, mostrou maior interesse numa presença da Ordem no Novo Mundo, tendo os Hospitalários adquirido, à Compagnie des îles de l’Amérique, em 1651, a propriedade das Ilhas de S. Bartolomeu, S. Martim, Santa Cruz e S. Cristóvão, nas Caraíbas, mantendo o Rei de França a Soberania nominal. O empreendimento revelou-se um fracasso completo e, em 1665, a Ordem vendeu os seus direitos à nova Compagnie Françaises des Indes Occidentales pondo termo à sua presença na América                                          

 

             MORTE

 

No termo de uma severa doença, Antoine de Paule faleceu, a 9 de Junho            

Foi o primeiro Grão-Mestre a não ser sepultado na cripta, mas na capela respectiva Língua (no seu caso, a de Provença) na Igreja Conventual, hoje Co-Catedral de S. João, em Valeta.        

 

               GLÓRIA

 

Sobre ele, escreveu Frei Lucas de Santa Catarina:

 

“ LV Seguiu-se o Grão-Mestre D. António de Paula, Prior de S. Gil, e o terceiro com título de Alteza, que ainda que assustado com o insuperável inimigo da peste, assim dispôs a guarda sua Cidade, que triunfando brevemente dele, passaram logo as suas Galés a sinalizar-se com importantes presas e singulares vitórias. Não foi de menos glória a que logo no princípio do seu Governo alcançou da malevolência de seus émulos, que infamando seus costumes de dissolutos, como a sua eleição de inválida, recorreram ao tribunal Pontifício, com uma informação tão injuriosa, como a que tinha por relatores o ódio, e a inveja; mas pôs-se silêncio na causa, temendo-se convencidos os fautores dela. A este crédito se seguiu ao mesmo Grão-Mestre o que lhe resultou da facção de Santa Maura, Praça combatida, e entrada com galharda resolução, e bravozidade Maltesa, contra a opinião de alguns que de difícil a passavam a inexpugnável, saindo assim cavaleiros, como Soldados, tão coroados com o triunfo, como premiados de despojo. Emudeceu brevemente os vivas desta  vitória, a funesta notícia de um conflito naval, em que o valor Hospitalário , mais por emulação indiscreta , que por falta de vigorosa resistência, deixou duas Galés (e muita Nobreza de todas as línguas) nas mãos do comum inimigo, nem por vitorioso, menos castigado de considerável, e sensível perda, como admirável de resistência católica, em que se fez o maior lugar D. Jerónimo de Sousa da Cunha, Português, que (roto todo o corpo a mosquetazos, e sustentando com a mão esquerda os intestinos, vivendo só na direita, em que meneava a espada) se dilatou nas mortes, , que tirava, a vingar e a dar a conhecer o preço da que perdia. Mas esta perda, que foi a única para o Grão-Mestre, se vingou dous meses depois no mar de Chipre, castigados os bárbaros (em que se contavam trezentos mortos, e grande numero cativos) tomada a sua mais soberba, e famosa Capitania, com a glória de inferior número de Soldadesca, com que intrepidamente foi entrada, e rendida.

Acresceu a esta vingança outra não menos estimável glória para o Grão-Mestre, em um Breve , que lhe remeteu o Pontífice  Urbano VIII, que com elegante estilo lhe trocou em Católico triunfo aquele primeiro lutuoso conflito, aplaudindo-lhe, e premiando-lhe a fortaleza, e a vigilância, com que promovia a sua Religião à reputação mais gloriosa, nos exercícios da piedade, e da milícia, na providência de máquinas, e petrechos de guerra, na reforma dos costumes em toda a Ilha, no exercício quotidiano dos Cavaleiros, e na observância inviolável dos Estatutos; o que tudo coroou o seu Magistério de gloriosos acertos. Pendendo deles a disposição das funções marítimas, se recolhiam as suas Galés , como por foro vitoriosas, o  que se experimentava também nos baixéis do mesmo Grão-Mestre, em que pareceu, que a sua direcção e experiência , influíam valor, e fortuna.

Celebrou um Capítulo geral com grande utilidade da Ordem. Foi Príncipe igualmente pio, generoso, liberal e magnânimo, virtudes, que o fizeram, e conservaram tímido (sic) ,e vitorioso de seus émulos, venerado de todos, e amado com especialidade de seus Cavaleiros. Testemunhou-o o sentimento, e lutuosas demonstrações, com que se lamentou sua morte, no ano de mil seiscentos e trinta e seis, em que depois de oitenta de idade, ainda se lhe julgou a vida por breve. Deixou na Ilha monumentos de sua religião, piedade, e grandeza, Das com que se adquiriu uma imortal memória, se lêem elegantes testemunhos em sua sepultura”

 

                NA FICÇÃO

 

Há meses, chegou, casualmente, ao meu conhecimento uma obra de ficção histórica, na qual figura Antoine de Paule. Sem ser um dos protagonistas, acaba por caber ao Grão-Mestre  um papel decisivo  no desenrolar da acção.

Trata-se de “Slave to Fortune”, de D. J. Munro, cuja primeira edição surgiu em 2015 e a segunda em 2018. Longo livro de aventuras (364 páginas) destinado ao público jovem adulto, foi um best-seller e recebeu vários prémios.

Baseia-se, supostamente, no relato de Tom Cheke que, em 1622 (ano, recorde-se, da eleição de Luís Mendes de Vasconcelos, como Grão-Mestre de Malta) quando rapazito de 14 anos, foi raptado na Ilha de White, por piratas barbarescos e vendido como escravo em Argel. Permaneceu seis anos naquela Cidade, passados os quais, ao acompanhar o seu patrão – que se revelara uma figura paternal – para Constantinopla, a embarcação em que seguiam foi apresada por um navio da Ordem de Malta. O patrão morre e Tom fica sob a protecção de um cavaleiro, Sir Edward, personagem pitoresco.

Com a ajuda decisiva de Tom, Sir Edward consegue decifrar uma mensagem que lhe fora entregue em França, e cujo sentido era que, em datas relativamente próximas, o Duque de Mântua e o Duque de Buckingham iriam ser assassinados, às ordens de Richelieu. 

Em Malta, Sir Edward e Tom são recebidos pelo Grão-Mestre, Antoine de Paule. Embora a planeada morte de Buckingham, que estava a reunir tropas, para ir em auxílio dos Huguenotes, cercados em La Rochelle, pudesse ser vista com agrado por um Príncipe católico, Antoine de Paule entendeu que o Duque (de seu nome George Villiers) deveria ser avisado, por gratidão para com a memória de Philippe Villiers de l’Isle-Adam que, um século antes, conduzira os Hospitalários para Malta, depois da perda de Rodes.

Sir Edward e Tom dirigem-se a Veneza, para tentar dali prevenir o Duque de Mântua, Carlos de Gonzaga, também Duque de Nevers (que, como se mencionou noutro passo, pretendera tornar-se Grão-Mestre da Ordem do Santo Sepulcro, separando-a da de Malta, questão que motivara a Embaixada a Paris de Luís Mendes de Vasconcelos) O motivo pelo qual Richelieu desejaria a sua morte não é indicado.

Seguidamente, partem para Portsmouth, onde Buckingham se encontrava. Conseguem salvá-lo dum primeiro atentado, mas não evitam que venha a perecer, vítima de um segundo.

O livro poderá ser lido com agrado e, até, com algum proveito, por jovens adultos. Contem informação sobre os piratas barbarescos, a vida em Argel, descrições de Malta e Veneza. Procura, também, inculcar, nos seus leitores, valores morais, como a tolerância, a coragem, a resiliência, a adaptação a novas situações. Mas a dimensão política (que, de resto, ocupa pouco espaço) é fantasiosa e, mesmo, inverosímil.

A odisseia de Tom é uma viagem circular, começando e terminando na Ilha de White. No percurso, ficaram dois territórios insulares, Malta e Veneza, e dois grandes portos, Argel e Portsmouth. Duas figuras surgem, sucessivamente, como “pais adoptivos” de Tom, Ali Ibrahim, Grande Tesoureiro de Argel, e Sir Edward, Cavaleiro de Malta.

Duas figuras históricas tomam parte, ainda que brevemente, na acção, o Grão-Mestre Antoine de Paule, e o Duque de Buckingham. Outras duas não participam, mas são relevantes, Richelieu e o Duque de Mântua.

(Embora o livro não aluda, evidentemente, ao assunto, refira-se que Buckingham, parente longínquo do Grão-Mestre Villiers de l’Isle-Adam, ocupava, junto de Jaime I de Inglaterra, o mesmo papel que Anne,, Duque de Joyeuse, parente do Grão-Mestre Antoine de Paule, detivera, junto de Henrique III de França. Talvez fosse esse um motivo adicional para o Grão-Mestre procurar que a vida do Duque fosse poupada. Mas esta é apenas  mais uma especulação, e no quadro de uma ficção  …)