Julgo poder afirmar-se que Júlio César foi o primeiro grande estadista europeu. E sem ele talvez a Europa não fosse o que é hoje. Serviu de modelo a figuras como Carlos Quinto, Luís XIV ou Napoleão Bonaparte. O próprio Napoleão III, personagem cultíssima, escreveu uma história de Júlio César. E já Napoleão Bonaparte ditara, em Santa Helena, um Précis des Guerres de César.
Ao longo de dois milénios, o mundo prestou homenagem a Júlio César, homem letrado, escritor de mérito, político exímio, hábil estratega, diplomata perspicaz, valoroso chefe militar, o mais notável dos Romanos.
Li agora César - Le Dictateur Démocrate (2001), de Luciano Canfora, no original Giulio Cesare. Il dittatore democratico (1998), que comprara há vinte anos e permanecia, por falta de oportunidade, numa estante. Realmente, o tempo não é elástico. Neste livro, o autor apresenta-nos uma biografia detalhada de Júlio César, abundantemente documentada, e avança mesmo a sua interpretação pessoal para determinados factos em que os registos históricos são divergentes ou omissos. Ao mesmo tempo que nos elucida sobre usos e costumes, leis e regras da sociedade romana. E especialmente sobre a arte da guerra.
O retrato traçado por Luciano Canfora não omite alguns aspectos menos gloriosos da carreira de César, como a impiedosa campanha das Gálias, que provocou a morte de milhões de gauleses e a captura do seu chefe Vercingetórix. Ostentando sempre a sua faceta de clemente, César foi muitas vezes cruel.
Regressado a Roma em 45 AC, depois da campanha de Espanha, é nesta altura que a César parecem faltar algumas das qualidades que sempre o notabilizaram. Foram várias as tentativas de assassinato, de que sempre escapou, mas ainda se encontrava na Bética, a combater os filhos de Pompeu, quando começou a ser urdida a conspiração, mais generalizada, que viria a vitimá-lo. Depois do seu regresso, César deu mostras de alguma imprudência e mesmo falta de tacto, talvez pela vertigem da glória. Ao celebrar o seu triunfo em Espanha, sobre os filhos de Pompeu, Roma ficou consternada, pois era habitual celebrarem-se triunfos sobre os bárbaros, não sobre cidadãos romanos, especialmente os filhos de um dos mais ilustres filhos da Pátria, como escreveu Plutarco.
Cassius e Brutus há muito conspiravam e Caius Trebonius chegou mesmo a tentar aliciar Marco António (então de relações frias com César) para a conjura mas este não acolheu o convite, embora, por lealdade, não tenha denunciado os conspiradores. Trebonius, ainda que tivesse combatido durante anos ao lado de César, que apreciava, era um republicano, e a deriva autoritária em curso perturbava-o.
Num célebre discurso no Senado (Pro Marcello), Cícero alertou César para os perigos a que este se expunha e clamou que só um louco poderia pretender assassinar César, mas que existiam loucos.
Após o regresso a Roma, César estava a ser cumulado de honrarias, como a estátua proposta por Cícero, embora fosse uma estátua de tamanho normal. Outros havia que propunham estátuas monumentais e toda a espécie de privilégios e distinções. Era o caso dos inimigos de César no Senado, que assim procediam para o tornar odioso do povo, enquanto fingiam lisonjeá-lo.
Em 14 de Fevereiro de 44, o Senado proclamou-o Ditador Vitalício. Pairava já no ar o fantasma da Tirania. Porque se deixou investir de um poder vitalício? A ditadura era uma magistratura extraordinária por definição temporária, no espírito dos seus contemporâneos, não um cargo perpétuo. Estaria a escolha ligada a grandes projectos militares, ainda que vagos, no Oriente? Ou a assunção da ditadura era mais uma etapa a partir da qual seria mais fácil dar forma a uma nova organização constitucional? César tinha obtido a ditadura por dez anos: durante este período podia ser reconduzido todos os anos no cargo. Que acrescentava uma ditadura vitalícia à ditadura já outorgada, além do facto de ser suprimida a formalidade da renovação anual?
Transcrevo da página 257 do livro: «Ce qui se produit au Sénat avec l'attribution à César de pouvoirs que jamais l'organisation constitutionnelle n'avait prévus est éminentement ambigu. Plutarque en saisit parfaitement le caractère insidieux. S'inclinant devant la Fortune de César et, pensant que le pouvoir d'un seul leur permettrait de respirer après les malheurs des guerres civiles, les Romains le nommèrent dictateur à vie: c'était une tyrannie avouée. Le terme "tyrannie" ne relèvent pas, sous la plume de Plutarque, de l'invective. Il cherche l'équivalent grec pour le genre de pouvoir assumé par César: il sait ce que la "tyrannie" grecque de l'âge classique eut à la fois de populaire et de autoritaire. Un exemple insigne en était Pisistrate qui, selon Aristote - bien conscient que l'un entraînait l'autre -, était devenu "démagogue tyran". L'équivalence établie par Plutarque était correcte, au fond, en dépit du glissement du sens péjoratif de "tyrannos" dans la langue de la démocratie athénienne des Ve et IVe siècles avant J.-C.».
Em 15 de Fevereiro de 44, no decorrer da festa das Lupercálias, António fez um gesto espectacular ao tentar coroar César como rei. Nicolau de Alexandria, que se tornaria biógrafo do "filho" de César, descreve o acontecimento na sua Vida de Augusto. Passo a traduzir:
«Teve lugar, enfim, o último acontecimento que, mais do que qualquer outro, exasperou os seus inimigos. Foi encontrada, um dia, coroada com um diadema, a estátua de ouro que, na sequência de um decreto, fora erguida a César na Rostra. Esse diadema pareceu, aos espíritos desconfiados dos Romanos, um emblema de servidão. Os tribunos em funções, Lucius e Caius, ordenaram a um dos seus servidores de subir à Rostra, arrancar o diadema da estátua e deitá-lo para longe. Mal soube do que tinha acontecido, César convocou o Senado para o templo da Concórdia e fez uma acusação aos tribunos. Censurou-os por eles mesmos terem coroado a estátua com um diadema, para lhe fazer uma afronta pública, e se darem as aparências de homens corajosos, desafiando simultaneamente a lei do Senado e de César. Segundo ele, este acto é o índice de um desejo premeditado e nada menos do que uma conspiração com o objectivo de o caluniar aos olhos do povo como aspirante a um poder ilegal, a fim de provocar a seguir uma revolução e de o sentenciarem à morte. Mal acabou de falar, com um consentimento unânime, o Senado condenou os tribunos ao exílio. Eles fugiram, e foram substituídos por outros.
Contudo, o povo gritava que era preciso que César fosse rei e que cingisse o diadema, pois a própria fortuna tinha coroado a sua estátua. César disse então que estava pronto a satisfazer o povo em tudo, por causa do amor que este tinha por ele, mas que não podia, todavia, aceder a esse pedido. E desculpou-se por ser obrigado, para conservar os antigos usos da pátria, a opor-se aos seus desejos: preferia, dizia, ser cônsul observando as leis, em vez de rei violando-as.
Eis o que então se dizia. Algum tempo depois chegou com o inverno a festa das Lupercálias. Durante essa festa os velhos como os novos, com o corpo ungido de óleo e não tendo por vestuário senão um cinto, perseguiam com os seus gracejos as pessoas que encontravam e batiam-lhes mesmo com peles de bode. Tendo chegado esse dia, escolheram Marco António para conduzir a pompa. Segundo o costume, ele caminhou no fórum, escoltado pela multidão. César, envergando uma túnica de púrpura, ocupava um lugar de ouro na tribuna da Rostra. Em primeiro lugar, Licinius, tendo na mão uma coroa de louros na qual se entrevia um diadema, subiu, erguido pelos braços dos colegas, até junto de César (porque o lugar onde este último discursava era bastante alto); e depôs a coroa aos seus pés; mas, encorajado a seguir pelos clamores do povo, colocou-a sobre a cabeça. César, para se desembaraçar das tentativas de Licinius, chamou em seu auxílio Lepidus, mestre de equitação. Mas, enquanto este hesita, Cassius Longinus, um dos conjurados, querendo esconder as suas más intenções sob uma aparência de dedicação a César, apressa-se a retirar-lhe a coroa da cabeça para a depor nos seus joelhos. Com ele Publius Casca. Tendo César rejeitado o diadema com os aplausos do povo, Marco António acorre a toda a pressa, o corpo nu, ungido de óleo, tal como estava conduzindo a pompa. Agarrando na coroa, coloca-a sobre a cabeça de César que, arrancando-a de novo, a atira para o meio do povo. Perante este acto, os que estavam ao longe puseram-se a aplaudir; mas os que se encontravam mais perto de César, gritavam-lhe que a aceitasse e não rejeitasse a dádiva do povo.
As opiniões sobre este ponto eram partilhadas. Com efeito, uns viam com indignação a marca de um poder maior que a república não comportava, enquanto que os outros, para serem agradáveis a César, actuavam com zelo para lha fazer aceitar. Alguns garantiam que a vontade de César não era estranha à conduta de António. Muitos dos cidadãos teriam querido mesmo ver César apropriar-se francamente da realeza. Os mais diversos rumores circulavam pela multidão. O facto é que, quando pela segunda vez António aproximou a coroa da cabeça de César, todo o povo gritou: "Salvé, oh rei!" Mas César, recusando-a outra vez, ordenou que a depusessem no templo de Júpiter, dizendo que aí ficaria melhor colocada.Com estas palavras, os que já o tinham aplaudido, puseram-se novamente a bater palmas.
Há uma outra versão segundo a qual António só teria agido assim na persuasão em que estava de agradar a César, e na esperança de se tornar o seu filho adoptivo. Finalmente António beijou César e deu a coroa a alguns dos que o rodeavam para a colocarem na estátua de César; o que eles fizeram. No meio de todos estes acontecimentos, esta última circunstância contribuiu mais do que qualquer outra para precipitar os golpes dos conjurados, porque viam com toda a evidência realizarem-se as suspeitas que alimentavam.»
Plutarco conta como Brutus (que era casado com Portia, filha de Catão), apesar dos favores de que gozava junto de César, foi instigado por Cassius à ideia de suprimir o tirano num atentado. Não há dúvida de que Cassius foi o verdadeiro artesão da conspiração. Mas Brutus seria indispensável, até para convencer outras figuras a participar na empresa. César tinha uma especial predilecção por Brutus. Dizia-se até que Brutus seria seu filho, já que a mãe deste tivera uma paixão por César. O que se afigura improvável, atendendo às idades de ambos. Mas César tratava-o como um filho. O grupo de conspiradores englobou partidários de Pompeu e cesaristas desiludidos. É também notório que Cícero, cujas atitudes são ambíguas, estava ao corrente da conspiração. E que Trebonius ficou encarregado de reter Marco António para que este não pudesse estar presente aquando do assassinato.
Segundo a tradição, houve muitos sinais de que uma conspiração estava em marcha. Porque dispensou César a sua escolta em 15 de Março de 44? Para alguns, César, que escapara já a outras tentativas de assassinato, estava cansado e sentia a saúde a declinar. Por isso procurava a morte, negligenciando os presságios e os avisos dos amigos. Outros opinaram que César estava demasiado confiante, depois do juramento dos senadores, e por isso dispensou os guarda-costas. Avançam ainda outros uma terceira hipótese: mais valia enfrentar o perigo de uma vez por todas de que estar permanentemente inquieto e em vigilância.
A noite que precedeu os idos de Março foi uma noite de pesadelo. Calpúrnia, a mulher de César, sonhou que o tecto da casa se desmoronava e o marido era assassinado nos seus braços. César também teve uma visão antes do amanhecer: viu-se em sonho voando nas nuvens e apertando a mão de Júpiter (Suetónio). Sonho megalómano mas eloquente à sua maneira. É verdade que César nunca levou demasiado a sério a bagagem de superstições que regia a vida pública romana. O seu espírito, totalmente laico (apesar de ser o Pontifex Maximus) permitia-lhe considerar com distanciação esse elemento marcante das práticas quotidianas, mas teve sempre em conta a dimensão pública dessas crenças. Contudo, na madrugada de 15 de Março, mostrava-se inquieto com a agitação insólita de Calpúrnia. Por outro lado, os adivinhos tinham-no informado que os sacrifícios davam sinais desfavoráveis. Assim, pensou mesmo em anular a sessão prevista e enviar António para dispensar os senadores.
Intervém então uma personagem em que César depositava toda a confiança (um dos conjurados, que pouco depois o apunhalaria) e que tinha instituído seu segundo herdeiro: Decimus Iunius Brutus Albinus. César não se admirou de o ver chegar a sua casa de manhã cedo. A personagem tinha recebido dos outros conjurados uma missão delicada: vigiar César e certificar-se que ele não mudaria o seu programa, indo de facto ao Senado. Quando César se interroga se deve permanecer em casa, Decimus Brutus Albinus zomba dos adivinhos e diz-lhe que os senadores, convocados por ele e reunidos em largo número na Cúria de Pompeu, se sentiriam desrespeitados com a sua ausência. Insiste que pelo menos César se apresente no Senado e adie pessoalmente a sessão.
Assim pressionado, César resolveu ignorar os avisos e dirigir-se ao enado.
Mal saíra a porta de casa, um escravo de uma outra casa, que não conseguira aproximar-se de César na rua, entrou na moradia e pediu a Calpúrnia que o abrigasse até ao regresso de César. Foi o primeiro dos mensageiros que tentaram inutilmente revelar alguma coisa ao ditador.
Enquanto os conjurados se iam reunindo no Senado, Artemidoro de Cnido, professor de letras gregas, e que frequentava o círculo de Brutus (Marcus Iunius), tentou prevenir César de que algo se tramava. Segundo Appianus, chegou demasiado tarde à Cúria; segundo Plutarco, conseguiu aproximar-se de César à entrada e entregou-lhe um bilhete, pedindo-lhe para o ler imediatamente. Mas César, rodeado dos habituais solicitadores, não chegou a lê-lo.
As descrições de Suetónio e Plutarco divergem ligeiramente. Mas César estaria já sentado quando os conjurados o rodearam. O primeiro a atacar foi Casca. Todos desembainharam as espadas tentando feri-lo no rosto. César defendeu-se como uma fera. Brutus desferiu-lhe um golpe numa virilha. Quando viu Brutus atacá-lo, César cobriu a cabeça com a toga e deixou-se cair ao pé do pedestal onde se encontrava a estátua de Pompeu. Segundo Suetónio, ele terá dito a Brutus: "Também tu, meu filho!", embora o historiador afirme que César morreu sem ter proferido uma única palavra. Segundo o cirurgião Anstitius, que examinou depois o cadáver, dos vinte e três golpes de punhal apenas foi mortal o que César recebeu no peito. Os conjurados não tiveram a coragem de lançar o cadáver ao Tibre, como estava inicialmente previsto. Incapazes de reter os senadores, que fugiram em desordem, e tomados de pânico, deixaram na sala o corpo inanimado de César, até que mais tarde três escravos vieram buscá-lo numa padiola e o levaram para casa.
O papel de Marco António antes e logo a seguir ao assassinato é de grande ambiguidade, ao contrário da ideia que correntemente aceite. Sabemos que António foi sondado para aderir á conspiração. Não se mostrou disponível mas também não denunciou os conjurados. Houve mesmo quem desejasse eliminar Marco António ao mesmo tempo que César, de quem ele era próximo, mas Marcus Iunius Brutus opôs-se. António encontrava-se ausente aquando do assassinato, presumindo-se que estaria a par de que alguma coisa iria suceder. Logo após o "tiranicídio" António enviou aos assassinos, que ainda se encontravam no Senado, uma mensagem a propor a paz e um entendimento político.
Na sua notável peça Julius Caeser, Shakespeare, que se terá servido da narração de Appianus, tinha certamente conhecimento de que os conjurados se haviam refugiado no Capitólio depois do atentado e que António admitira, em nome da concórdia civil, renunciar a perseguir os criminosos. O célebre discurso de Marco António ao povo, tendo a seus pés o cadáver de César, é uma criação admirável do dramaturgo, deixando entender a ambivalência da posição de Marco, ao começar por elogiar Brutus e ao terminar elogiando César. Mas na realidade nunca existiu. O mesmo se diga para o excelente filme homónimo de Joseph L. Mankiewicz, aliás realizado a partir de Shakespeare.
Ao abandonarem o cadáver de César os conjurados assinaram a sua própria perda. E os cesaristas apropriaram-se do corpo para servir os seus fins políticos. Brutus e os seus companheiros estiveram prestes a ter a situação em mão. António fugira para casa "disfarçado de homem do povo" (Plutarco). Brutus pretendera falar aos senadores mas estes tinham fugido logo após o atentado. Os conjurados subiram ao Capitólio agitando os punhais e proclamaram a liberdade, para cidadãos imaginários: as ruas estavam desertas e as lojas fechadas. E lá ficaram até que uma pequena multidão os incitou a descer. Tranquilizados, encaminharam-se para o Forum. Do alto da Rostra, Brutus tomou a palavra: a multidão escutou-o em silêncio. Mas quando Cinna começou a criticar César, o povo enfureceu-se. Os conjurados entrincheiraram-se novamente no Capitólio e Brutos receou que a colina fosse tomada de assalto.
António compreendeu imediatamente que os autores do atentado não tinham qualquer plano de acção e tinham confiado - pelo menos Brutus - no efeito salvador do "tiranicídio" e no poder de uma palavra. "liberdade". E obteve que fosse lido em público o testamento de César e que o corpo não fosse transportado em segredo, sem quaisquer honras. Apesar da oposição de Cassius, Brutus deu o seu acordo. Na sua Vida de Brutus, Plutarco escreve: "Ao deixar António conduzir as exéquias à sua vontade, ele perdeu tudo". O testamento de César, que estava confiado às Vestais, foi aberto a pedido do seu sogro, Lucius Calpurnius Piso. Decimus Brutus, esse próximo de César que na manhã do atentado insistira, conluiado com os conspiradores, para que César se dirigisse ao Senado, fora designado como "herdeiro de segunda linha". E numerosos outros conjurados eram mencionados como possíveis tutores de seu filho adoptivo Octavius, caso alguém tivesse de desempenhar esse papel. E havia numerosos legados a favor do povo, o que fez aparecer os "libertadores" a uma luz profundamente sinistra.
O corpo de César foi colocado no Forum e ao lado as vestes ensanguentadas que César envergava aquando do assassinato. António, como bom comediante, mostrou ao povo a toga com os buracos provocados pelos golpes. E o povo ficou possuído pela cólera. Há gritos de morte aos assassinos, que se refugiam nas suas casas protegidos pelos respectivos guardas. As mesas e os bancos das lojas são arrancados e empilhados para constituírem uma enorme pira sobre a qual é colocado e queimado o cadáver, conforme nos conta Plutarco. Mas Suetónio acrescenta pormenores: a edícula onde se encontrava exposta a toga permaneceu vários dias no Campo de Marte para permitir a todos que pusessem depositar as suas dádivas junto do leito fúnebre. Os actores e os músicos envergaram durante os dias de luto as vestes usadas nos triunfos de César. António nem sequer omitiu a leitura do senatus-consultum em que os senadores se tinham comprometido a defender a vida de César. A emoção da multidão atingiu o rubro quando chegou, transportado por magistrados em exercício, o leito fúnebre em que jazia o corpo do ditador. Um "achado", como nos conta Appianus, atestando uma encenação maduramente reflectida. Nada melhor para excitar ainda mais a assistência de que mostrar o corpo trespassado do ditador. Como o cadáver deitado no leito não era visível à mltidão, foi erguida sobre o leito uma estátua de tamanho natural de César, feita de cera. Graças a um mecanismo, operado por uma máquina de teatro, a estátua rodava para todos os lado, mostrando os vinte e três golpes que lhe tinham sido selvaticamente desferidos no corpo e no rosto. Foi neste momento que se impôs uma conclusão quase natural: lançar-lhe fogo. Num clima de apoteose e de vingança, propuseram uns que o lugar conveniente fosse o templo de Júpiter Capitolino, outras a Cúria de Pompeu, como uma espécie de jogo simbólico combinado. Enquanto se discutia com animação, dois homens, armados de espadas e dardos, lançaram fogo ao leito. Tudo foi deitado, mesmo as vestes dos triunfos de que se despojaram os actores e os músicos, para a imensa fogueira evocada por Plutarco. As descrições de Suetónio, Appianus e Plutarco não são coincidentes mas exprimem o essencial. As colónias estrangeiras em Roma, especialmente os judeus, fizeram o seu luto separadamente, reunindo-se diversas noites seguidas à volta do seu túmulo.
Na sua sede de vingança, o povo tentou atingir em vão os conjurados, refugiados e entrincheirados em suas casas, mas fez em pedaços Caius Helvius Cinna, que confundiu com o pretor Lucius Cornelius Cinna, que fizera um discurso contra César quando Brutus desceu do Capitólio. E passeou a sua cabeça na ponta de uma lança.
Amatius de Itália, que era amigo de César e regressara de Espanha, fez a sua reaparição e mandou construir um altar no local onde o ditador fora incinerado, começando então a prestar-se-lhe um culto divino. Amatius foi assim o verdadeiro iniciador do culto do Divus Iulius. Por causa das ameaças aos assassinos de César, António, inopinadamente, mandou prender Amatius, sob o pretexto de garantir a segurança de Cassius e de Brutus. E condenou-o à morte sem julgamento. O Senado fingiu escandalizar-se com este procedimento ilegal mas, como conta Appianus, regozijou-se, no fundo, que Brutus e Cassius pudessem recuperar a sua tranquilidade. Com este gesto, António, cuja conduta neste processo foi sempre ambígua, atraiu a hostilidade declarada dos seus partidários, que com o apoio da plebe urbana reagiram violentamente, tentando obter dos magistrados que o lugar onde havia sido incinerado o corpo de César fosse consagrado e que nele se realizassem regularmente sacrifícios em sua honra. A multidão apercebeu-se que muitas estátuas de César tinham tinham desaparecido do seu pedestal e que em muitas lojas tinham sido destruídas. Como tentaram incendiar as ditas lojas, António fez intervir as tropas. A repressão foi dura e uma parte dos partidários de Amatius foi massacrada, a outra capturada. Os que eram escravos foram crucificados, os outros precipitados do alto da Rocha Tarpeia. Por causa disto, a atitude do povo em relação a António transformou-se num ódio indizível. O Senado respirou de alívio e Cassius e Brutus recuperaram a tranquilidade. Seriam mais tarde derrotados em Filipos por Octávio e António, em 42 AC, e cometeriam suicídio, mas isso é já outra história,
Após esta breve digressão pela vida de César, a partir do livro de Luciano Canfora, e focado o meu texto especialmente na sua morte, convenhamos que é grande a glória de Julio César, mau grado alguns aspectos menos positivos. Ditador vitalício no fim da vida, não chegou a ser coroado rei, como o povo pretendia, mas lançou inquestionavelmente as bases do principado que Augusto, astutamente, acabaria por instaurar. Homem elegante, culto, ilustradíssimo, brilhante estratega, valoroso militar, hábil político, escritor de mérito, sexualmente polivalente, notável pela sua clemência (mas não sempre), César, que pretendeu emular Alexandre Magno, é uma das figuras célebres da História Universal. Napoleão I e Napoleão III discorreram sobre ele. Carlos-Quinto, Luís XIV ou mesmo Pedro, o Grande ou Solimão, o Magnífico ambicionaram igualá-lo.
Quando mencionamos apenas a palavra César, designação comum a todos os imperadores romanos, é do Divino Júlio que nos recordamos!
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O subtítulo do livro é "O Ditador Democrata". De facto, César foi, por breve tempo, um Ditador (mesmo legalmente), mas sempre com o apoio do Povo, que era largamente hostil ao Senado. Desde o início da sua carreira, ele foi uma figura muito popular e era amado pelos romanos. Os cidadãos de Roma desejavam que ele aceitasse a coroa e o título de rei. César foi um adversário de Sulla (Sylla) e dos Optimatas, que representavam a facção aristocrática, embora o próprio César fosse uma aristocrata. Roma ficou a dever a César grandes melhoramentos urbanísticos e grandes reformas como, por exemplo, a do calendário. E também a construção de um império.
É inegável que os Romanos (o povo comum) aspiravam a ter novamente um rei e menosprezavam o Senado, que era detido pelas classes aristocráticas. E que a palavra "liberdade", que soava a vazio na boca de Brutus, só contribuiu para irritar ainda mais a plebe. Roma estava a transformar-se num grande Império e as grandes superfícies dificilmente são governáveis por mais de que um homem. Lembre-se a frase atribuída a Catarina II: «A Rússia é grande demais para ser governada por mais do que uma pessoa».
Não penso que Democracia e Ditadura sejam absolutamente contrárias. Supõem é uma articulação especial. Aliás, recorde-se que, durante o período comunista, os países do Leste europeu consideravam-se "democracias populares", defendendo a "ditadura do proletariado".
Tudo é, pois, muito relativo e depende das circunstâncias, dos tempos e dos modos.
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