Arnaldo Gama (1828-1869) foi um escritor portuense que se dedicou especialmente ao romance histórico e cujas obras foram muito populares na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX.
Recordo-me de ter ouvido, muito jovem, um folhetim radiofónico da antiga Emissora Nacional, de saudosa memória, adaptado de um dos seus romances, creio que Um Motim há Cem Anos ou O Sargento-Mor de Vilar. Isto era no tempo em que havia, com frequência, teatro radiofónico e peças de teatro na televisão. Mas tudo acabou! A Cultura tem desaparecido progressivamente dos jornais, rádios e televisões "generalistas", para se confinar - e só alguns aspectos cuidadosamente escolhidos para não atentarem contra o politicamente correcto - a órgãos específicos, que privilegiam o que "está na moda"!
Vem isto a propósito da leitura de O Balio de Leça (1872), publicado em edição póstuma.
Resumindo:
D. Frei Estêvão Vasques Pimentel (c.1260-1336), Balio de Leça e Grão-Prior do Hospital, regressa incógnito da Terra Santa, em 1324, depois de ter passado por Avinhão e Roma, acompanhado por seu sobrinho [ou sobrinho-neto ???], o jovem D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira (c.1300-c.1375).
Ao chegar perto de Leça, toma conhecimento dos graves acontecimentos ocorridos no Baliado durante a sua ausência, onde deixara como Lugar-Tenente o valoroso Frei Nuno Mendes, que não conseguira travar os excessos de soberba, riqueza e luxúria de alguns frades. Um dos cavaleiros, D. Frei Rui de Alpoem, chega mesmo a raptar uma donzela, encerrando-a no Mosteiro.
[O regresso destes dois frades, de chapéus de abas largas, vieiras nas murças das esclavinas e bordões ferrados nas pontas, evoca o célebre regresso da Terra Santa do Romeiro do Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.]
Sem se dar a conhecer, Frei Estêvão Pimentel convoca para um encontro no exterior Frei Nuno Mendes, a quem avisa de que existe uma conspiração na Ordem para o depor, ou até assassinar. O Lugar-Tenente, que já tinha mandado encarcerar os frades revoltosos, julga não haver motivo para alarme, mas acaba por ser traído e foge do castelo.
Por convocação de um dos frades, reúne-se o Capítulo para eleger um novo Balio, mas surge subitamente Frei Pimentel. Frei Alpoem, que Pimentel considerava como um filho, faz-lhe frente, mas os frades reconhecem a autoridade do venerando Balio regressado, apoiado por Frei Nuno Mendes e pelo sobrinho D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira. E nos termos da Lei, e por muito que lhe custe, manda enforcar os revoltosos. Frei Rui de Alpoem, que se deixara encabeçar pelos verdadeiros revoltosos, por ser o mais valoroso dos militares, apesar de ainda muito jovem e bem parecido, deveria ser castigado de outra forma, mas roído pela desgraças dos companheiros, acaba por "enlouquecer" e rasgar as vestes de hospitalário, caindo morto aos pés de Frei Pimentel. Por isso, será sepultado na vala comum.
Há pelo meio, entre os cerimoniais da Ordem, a vexata quaestio, o caso da donzela raptada e do presumível adultério de sua mãe com um dos frades. E a ira do marido supostamente enganado. Mas tudo se resolve com a graça de Deus e o milagre do falecido irmão D. Frei Garcia Martins (m. 1306), que fora Grão-Comendador dos Cinco Reinos de Espanha (e cujo nome foi dado a uma rua em Leça do Balio).
«Judica me domine quoniam ego in innocentia mea ingressus sum.» (Ezequeil, XVIII, 18)
O enredo do romance é muito interessante mas a linguagem é, por vezes, rebuscada, com arroubos medievalistas, como convém ao bem urdido argumento. Não me foi dado confirmar todas as datas, mas no essencial a cronologia afigura-se correcta.
Para ilustração dos leitores, acrescente-se que o jovem D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, bonito e valente moço, foi, apesar dos três votos dos cavaleiros professos de pobreza, obediência e castidade, muito dado aos negócios da carne. Assim, teve 32 filhos, entre os quais D. Pedro Álvares Pereira, que lhe sucedeu como Prior do Hospital e Mestre da Ordem de Calatrava e D. Nuno Álvares Pereira, que foi Condestável de Portugal.
D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, que era filho sacrílego de D. Frei Gonçalo Gonçalves Pereira, Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, e de Teresa Peres Vilarinho, foi o último Balio de Leça e obteve do Grão-Mestre da Ordem dos Hospitalários, em 1341, o Grão-Priorado de Portugal, sendo designado Prior do Crato, que passou a ser a sede da Ordem no nosso país.
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