segunda-feira, 20 de junho de 2022

FERNANDO PESSOA, O VIRGEM NEGRA

Tendo estado a ler a última (e definitiva, se algo é definitivo) biografia de Fernando Pessoa, recém-publicada e devida a Richard Zenith, resolvi, por mero capricho, procurar na minha biblioteca O Virgem Negra - Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras (1989), de Mário Cesariny de Vasconcelos (MCV) e passar a vista sobre essa breve edição, colectânea de poemas mais ou menos satíricos, muito ao gosto daquele mestre do surrealismo português. Suponho que Cesariny (que tinha um feitio difícil) tenha ficado irritado, e até invejoso, das celebrações que assinalaram o centésimo aniversário (1988) do nascimento do Poeta de Mensagem.

Escreveu MCV, na página 34:

«Não sou nada

Nunca serei nada

Não posso querer ser nada... Lembram-se?

Então estendam-se ao sol, abdigam e entendam-se

Uns com os outros, uns bastante outros

Mas sem filósofos homónimos sem músicos heterónimos sem moinhos da Helada

E antes de mais tirem de mim os Jerónimos

Que é clausura demais para um homem só

E se tal não puderem (souberem, quiserem, temerem)

Digam lá ao escultor venha tirar a mó

Da merda da coluna que me pôs em cima a fingir que estou dentro

Dela a fazer janela do convento de Cristo. Abafo

Co'este ferro cravado no chaço

Do estômago que já tinha de pouca saúde

Quando o P.-F. me abriu o ataúde

E viu o que nunca devia ter visto.»


Importa uma explicação. Quando morreu, em 1935, Fernando Pessoa foi sepultado em caixão de chumbo depositado em jazigo de família. Em 1985, data do cinquentenário da morte, surgiu a ideia de trasladar o corpo para o Mosteiro dos Jerónimos. O Governo, por intermédio de João Palma-Ferreira (P.-F., no poema acima), então presidente do Instituto Português do Património Cultural, sendo ministro da Cultura Coimbra Martins, encarregou o escultor Lagoa Henriques de conceber um monumento funerário que abrigasse os restos mortais do Poeta. Como amigo de longa data de Mestre Lagoa Henriques, assisti à execução do projecto que viria a ser consubstanciado num paralelepípedo de mármore composto de vários cubos sobrepostos, um dos quais conteria uma abertura para colocar as ossadas de Pessoa. 

Monumento funerário de Fernando Pessoa, no Mosteiro dos Jerónimos, da autoria do escultor Lagoa Henriques

Aconteceu, todavia, uma surpresa. Ao chegarem ao jazigo do Cemitério dos Prazeres para o acto de trasladação, por ocasião do cinquentenário da morte (1985), verificaram as autoridades e a família, aquando da abertura do caixão de chumbo, que o corpo se encontrava intacto. O caixão foi novamente soldado, para se evitarem especulações sobre o assunto e também para que o sítio de destino final do Poeta não se transformasse em local de piedosa romaria. E foi resolvido guardar silêncio sobre o caso. Nestas circunstâncias, foi levantada a laje do claustro dos Jerónimos sobre a qual se ergue hoje o monumento funerário e aí depositado o caixão, sem qualquer referência à inesperada descoberta.

É esta a versão que me contou Lagoa Henriques e que sempre ouvi da sua boca até à sua morte. Contudo, informa-me agora o meu amigo Jorge Ferreira, investigador dos cemitérios de Lisboa (entre outras atividades) e que acompanhou o assunto, que esta versão é uma fantasia, devido à incúria de João Palma-Ferreira. Supunha este que as ossos de Pessoa se encontravam já em cofre no jazigo e que, deparando-se-lhe um caixão de corpo inteiro, para ocultar a sua impreviência fabricou esta história, que largamente reproduziu, inclusive junto do próprio primeiro-ministro Mário Soares. Assim, não terá sido aberto o caixão de chumbo, procedendo-se directamente ao envio do mesmo para o Mosteiro dos Jerónimos. Diz-me Jorge Ferreira que ouviu esta descrição da boca do próprio sobrinho de Pessoa, Luís Miguel Roza, recentemente falecido, e que esteve presente na cerimónia.

Aqui se registam as duas versões, sendo certo que sob o monumento funerário se encontra realmente o caixão de Fernando Pessoa.