Viriato Soromenho-Marques (VSM) publicou, há dias, o ensaio
Portugal na Queda da Europa, onde procede a um diagnóstico lúcido da situação em Portugal, e na Europa, no momento conturbado que vivemos. É o olhar de um filósofo sobre os problemas financeiros, económicos, sociais e, principalmente, políticos que afectam o Velho Continente.
Este livro de VSM leva-nos recordar uma outra obra, publicada em 1945:
Europa e os Seus Fantasmas, de João Ameal, designação, aliás, sugerida pelo título que Henrique Galvão deu à sua tradução portuguesa da peça de Eugene O'Neill
Mourning becomes Electra:
Electra e os Fantasmas.
A leitura do livro de João Ameal, escrito num contexto totalmente diferente do actual e, naturalmente, noutra perspectiva, não deixa de constituir um curioso exercício de meditação. As primeiras palavras das Palavras Prévias são elucidativas: "Crise da Europa - ou agonia da Europa?". Inelutavelmente, a História repete-se.
Não subsistem dúvidas quanto ao facto da Europa continuar assombrada por fantasmas, que se erguem sistematicamente da Alemanha. Extinto o Sacro Império Romano-Germânico, parecia que a Prússia, depois de várias guerras e após o Conflito Franco-Prussiano de 1870, tinha conquistado o seu
lebensraum e estabilizado o alargamento territorial da Alemanha, então convertida no Segundo Reich. O próprio chanceler Bismarck, um homem inteligente, inclinava-se nesse sentido, defendendo relações amistosas com Paris a seguir à queda de Napoleão III. Todavia, Guilherme II, que dispensou os serviços de Bismarck, apoiando-se em Hindenburg e Ludendorff, privilegiou a via militarista que culminaria na Primeira Guerra Mundial. Conhecem-se os resultados. Mas os fantasmas teutónicos continuaram a assolar a Europa. A frágil República de Weimar não resistiu a Hitler e deu lugar ao Terceiro Reich e à Segunda Guerra Mundial. A propósito dos alemães se poderia dizer, como Talleyrand, que nada aprenderam e nada esqueceram. A persistência na via do domínio germânico, agora sem a utilização de meios militares - por enquanto - não deixa de provocar as maiores e mais legítimas apreensões quanto às consequências da política imperialista prosseguida pelo governo de que Angela Merkel é o rosto visível. Esta permanente ressurreição dos velhos fantasmas não augura um futuro tranquilo para a Europa.
A análise de VSM é de grande clareza, ainda que o discurso nem sempre seja de irrepreensível estruturação. E nota-se a falta de um índice remissivo e de um glossário para os termos técnicos e para as siglas constantes do texto. Começa o autor por tratar da crise portuguesa, ocupa-se depois da situação na Europa, trata a seguir da inépcia da Alemanha na liderança da crise europeia e termina com a apologia do federalismo, que considera a única forma de salvar a União Europeia.
Não subscrevo integralmente todas as conclusões de VSM, nomeadamente no que respeita ao federalismo, mas reconheço que a publicação desta obra, pela descrição da situação, pelas propostas formuladas e pela oportunidade da publicação, é um inestimável serviço prestado aos portugueses.
Procede VSM a uma crítica frontal à leviandade com que alguns países,
maxime Portugal, aderiram à União Económica e Monetária (UEM) e, particularmente, à Zona Euro, em 1999, considerando não terem sido criadas as condições indispensáveis para a introdução de uma moeda única. O estabelecimento do euro, exigido por Mitterrand em troca do reconhecimento da reunificação alemã, demonstra como uma ideia inicialmente bem intencionada se revelou de consequências trágicas.
Segundo o autor, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), de 1997, que estabelece que a dívida pública não deve ultrapassar os 60% do PIB e o Tratado Orçamental (TO), oficialmente Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, vigente desde 1 de Janeiro de 2013, e que estipula um défice orçamental inferior a 3% do PIB, são objectivos impossíveis de atingir por Portugal nas circunstâncias actuais de funcionamento da União Europeia. Por isso, VSM defende a alteração de tais metas ou a federalização da União Europeia.
Transcrevemos: «A hostilidade da UEM em relação ao Estado reside também na relação de desconfiança mútua entre os Estados participantes nessa união monetária. As regras de acesso ao clube da moeda única foram moldadas nessa doutrina neoliberal, com sotaque alemão, de que os Estados são despesistas, e, por natureza, geradores de inflação. Por isso, as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento incidem exclusivamente sobre a necessidade de um comportamento "virtuoso" dos Estados: a inflação não deveria ultrapassar os 3%; o défice orçamental deveria ficar abaixo dos 3% do PIB; a dívida pública não deveria ultrapassar os 60% do PIB. O PEC não coloca qualquer exigência de desempenho a outro nível. Por exemplo, não exige que os países tenham um determinado rendimento médio
per capita, ou que a taxa de desemprego não seja superior a um determinado limite, ou que o índice de Gini (que mede a desigualdade na distribuição da riqueza) não ultrapasse certas metas. O ordoliberalismo e o monetarismo são isso mesmo, ideologias. Uma ideologia só consegue ver aquilo que na sua tabela de valores é considerado relevante. Os indicadores sociais não valem nada para essa ideologia, que é matricial na arquitectura da UEM.»...«É interessante notar que o PEC não identifique um limite para a "dívida externa", que é um dos factores mais negativos na actual crise, Portugal que o diga, ou para a dívida privada. As entidades bancárias, cuja gula pelo lucro foi um dos factores da precipitação de várias das bolhas desta crise, do imobiliário ao crédito, foram deixadas num sossego perigoso para a paz pública.»
Muito haveria a escrever acerca deste livro de quase 400 páginas como, por exemplo, sobre a sinistra desregulação dos mercados financeiros promovida por Reagan e Thatcher. Acrescentarei tão só que o federalismo defendido por VSM, ainda que este evoque os casos de sucesso dos Estados Unidos, do Brasil ou da Suíça, não me parece identicamente aplicável na Europa, de história milenar e de velhas culturas, línguas e tradições. Não ignora VSM as diferenças profundas existentes na Europa e sustenta que, tratando-se de um federalismo autêntico, tais diferenças não constituem impedimento para o seu êxito. Permito-me manter sérias dúvidas, tanto mais que se assiste a um progressivo renascer de nacionalismos.
Resta agradecer a Viriato Soromenho-Marques a sua valiosa contribuição para o debate de ideias em Portugal.