segunda-feira, 29 de maio de 2023

O HOMEM DE CESAREIA

Acabei de ler L'Homme de Césarée (2020), III volume da tetralogia La reine oubliée, de Françoise Chandernagor, dedicada a Cleópatra Selene, única filho de Cleópatra VII que chegou à idade adulta.

Neste livro, a autora debruça-se sobre o período em que Selene, tendo desposado Juba II, por graça de Augusto, se encontra na Mauritânia romana (equivalente à actual Argélia do norte e a parte de Marrocos), território que o imperador concedera ao jovem esposo (então com 28 anos e um magnífico aspecto) que fora levado como refém para Roma por Júlio César, quando seu pai fora derrotado pelas tropas romanas.

Tendo o primeiro volume abrangido a vida de Selene no Egipto, e o segundo em Roma, este terceiro refere-se, pois, à sua vida como regina da Mauritânia.

A capital do reino era Iol, nome que Juba mudou para Cesareia (em homenagem a Augusto), hoje designada por Cherchell, na zona de Tipasa. Não deve ser confundida com Cesareia da Judeia nem com alguma outra cidade que tenha recebido o mesmo nome como forma de glorificar qualquer dos Césares.

A Tetralogia de Françoise Chandernagor é devedora da ficção e da história. À medida que a autora avança no tempo, é natural que as fontes históricas relativas a Selene se vão reduzindo, desempenhando a ficção um papel progressivamente mais importante. Assim se revela a capacidade criativa de quem escreve, recorrendo à imaginação para nos relatar uma estória que poderá, ou não, ter existido.

Curiosa a narração da consumação do acto nupcial por Juba com um vigor que foi comentado pelos escravos mais próximos e narrado depois aos rapazinhos da corte, o que muito os divertiu pois estavam habituados às investidas do seu jovem soberano, de acordo com as práticas antigas e aceites. Note-se que a paixão por Selene não afastou Juba desses rapazinhos que faziam as delícias das grandes casas romanas. «Célibataire, il [Juba] l'était resté dans ses moeurs au point de continuer à honorer, en passant, l'un et l'autre de ses delicati, ses enfants délicieux - divertissement de jeune homme qui pour lui, féru de culture grecque, demeurait la marque suprême du bon goût.» (p. 56)

Mas Juba, que havia sido levado para Roma com três anos e de cuja educação se encarregara Júlio César, depois do assassinato deste ficara a cargo da viúva, Calpurnia, e mais tarde do pai desta, Lucius Calpurnius Piso Caesonis, na célebre Villa dei Papyrus, em Herculanum, que as cinzas do Vesúvio haveriam de proteger até aos nossos dias. Calpurnius acolhera na Villa o epicurista Filodemus, que muito contribuiu para a ilustração de Juba, que veio a ser um dos maiores intelectuais do seu século. Dele diz Plutarco que foi «le plus doué des rois» e «le plus grand des historiens grecs» (p. 54)

Nos primeiros tempos do reinado, Juba leva Selene de visita à Mauritânia profunda, tendo passado uma temporada em Volubilis [onde eu estive há meio século] e onde foram prestadas à rainha as maiores homenagens.

Entretanto, em Roma, Augusto procedia aos casamentos e aos divórcios da "Família", segundo as suas conveniências políticas, concentrando nas suas mãos um poder quase absoluto, embora permitisse, e quisesse, que permanecesse a ficção da República. Françoise Chandernagor, que não morre de amores por Caio Octaviano César Augusto, Princeps e Imperator, considera-o um autêntico Padrinho, um corleone siciliano.

Voltando a Selene, os seus amores com Juba, inicialmente reservados mas agora transbordantes, geraram o primeiro filho, aliás uma filha, Théa, apesar da rainha desejar um varão. Mas logo se sucederem dois gémeos, agora varões, Hiempsal e Alexandre, e depois uma outra rapariga, Élissa. 

Mas a sorte não foi favorável a Selene. Tendo ido assistir a festividades a Cartago, a convite de Lucius Domitius, que era casado com sua meia-irmã Antonia Maior e fora nomeado pró-cônsul de África, Selene fez-se acompanhar apenas por Théa, deixando os outros três filhos ao marido. No regresso, foi informada que uma febre assolara Cesareia e que os seus filhos estavam mortos. O desgosto de Selene foi brutal, até porque pusera nos rapazes a esperança de prosseguirem a dinastia ptolemaica. E Théa, como rapariga, estava excluída, segundo as leis berberes, da sucessão ao trono.

A reconstituição histórica de lugares, costumes ou ambientes efectuada pela autora é notável e demonstra um particular conhecimento da época, fruto de muitos e variados estudos. As fontes sobre esta Mauritânia romana são muito mais escassas que sobre a Roma de Augusto. Logo, muito maior a necessidade de efabulação, que não sendo rigorosamente histórica proporciona uma agradável leitura.

Não me alongarei sobre este riquíssimo livro e encetarei de imediato a leitura do último volume da Tetralogia.

domingo, 14 de maio de 2023

LERMONTOV, UM HERÓI DO NOSSO TEMPO

Li agora (era uma lacuna) Un héros de notre temps, de Mikhail Yurievitch Lermontov (1814-1841), um notável escritor russo, uma espécie de continuador de Pushkin que, como este, morreu num duelo.

O romance foi escrito entre 1837 e 1839, no Cáucaso, onde o autor esteve duas vezes exilado. O herói do livro é Grigori Alexandrovitch Petchorine, uma figura tenebrosa e subversiva, reflexo irónico de uma geração perdida.

Enfant terrible da poesia russa, Lermontov é um herdeiro virtual de Pushkin, precoce e rebelde como ele. Foi, aliás, a publicação do seu poema "A morte de um Poeta", em que acusa os servidores do poder de serem responsáveis pela morte de Pushkin, que determinou o seu primeiro exílio no Cáucaso. 

Compõe-se a obra de cinco contos que podem ler-se de forma autónoma, sendo a estrutura do livro a seguinte: Primeira Parte: "Bèla" (I) - conto do viajante e história de Petchorine e Bèla; "Maxim Maximytch" (II);  "Prefácio ao Diário de Petchorine" (morte de Petchorine); "Taman" (I); Segunda Parte: "A princesa Mary" (II); Um fatalista (III). Os algarismos romanos remetem para a numeração dos contos na obra, à maneira dos capítulos de um romance.

O livro foi publicado em dois volumes em Abril de 1840. 

A acção passa-se na Tchechénia, na Geórgia, na Ossétia, na Abcásia. Na página 47, o autor coloca esta frase na boca do capitão Maxim Maximytch, referindo-se aos ossetos: «Um povo estúpido. Acredite-me, não sabem fazer nada, são incapazes da mínima instrução. Ao menos, os nossos cabardinos [grupo circassiano] e os nossos tchechenos podem muito bem ser uns bandidos, uns pés descalços, mas são mesmo assim obstinados, mas estes nem sequer têm gosto pelas armas: não verá qualquer deles com um punhal decente. Eles são realmente ossetos!». 

"Taman" decorre na localidade de Taman, no Cáucaso, em frente à Península da Crimeia, no estreito de Kerch. `É hoje bem conhecida porque é de Taman que parte a ponte que liga a região de Krasnodar à Crimeia e que foi mandada construir e inaugurada em 2018 por Vladimir Vladimirovitch Putin.

O poeta morreu em 15 de Julho de 1841, em Piatigorsk, no Cáucaso, na sequência de um duelo fútil com o seu antigo colega de liceu Nikolaï Martinov, que o provocara, devido às constantes zombarias de Lermontov. Ainda hoje se considera que a sua morte foi um assassinato (provocado por um terceiro), ou um suicídio, uma vez que há quem afirme que Lermontov nutria uma paixão pelo antigo camarada e não podendo declarar-se, preferiu ser morto por ele. 

Também na morte Lermontov imitou Pushkin, igualmente morto em duelo quatro anos antes, por Georges Dantès, filho adoptivo (e amante) do embaixador dos Países Baixos em São Petersburgo, e também por uma questão fútil, desta vez de saias. Neste caso, Pushkin desafiou Dantès para o duelo, que este até tentou evitar, já que era seu cunhado (Dantès era bissexual), mas Pushkin (sabendo dos boatos que corriam sobre uma ligação daquele com sua mulher) insistiu... e morreu.

Não cabe aqui analisar o livro de Lermontov, que mais do que uma (ou várias) história(s), procede à análise das personagens envolvidas. A sua morte precoce, aos 26 anos, não permitiu evidenciar a grande capacidade criativa, que teria reflexos na literatura russa posterior.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

AS SENHORAS DE ROMA

Li agora Les dames de Rome (2012), II volume da Tetralogia de Françoise Chandernagor La reine oubliée.

As "Senhoras" de Roma são as damas de elevada condição da sociedade romana que gravitavam na capital do Império em torno de Octávia Júlia Thurino, irmã de Octávio César Augusto, entre as quais Lívia, a mulher do próprio imperador ou Pompónia, mulher de Marcus Agrippa.

Recordemos que os filhos de Cleópatra VII, Alexandre Hélios, Cleópatra Selene e Ptolemeu Filadelfo foram enviados para Roma, na sequência do suicídio da mãe, a fim de figurarem no terceiro desfile do Triunfo de Octávio, celebrando a vitória sobre Marco António e a conquista do Egipto (15 de Agosto de 29 AC).

As crianças (Ptolemeu Filadelfo morreria a seguir ao desfile) ficaram à guarda de Octávia, que, não podendo abrigar na sua nova casa a colecção de arte que possuía na casa que fora de Marco António, "coleccionava" agora crianças, os seus filhos e os filhos dos seus parentes. Exemplifiquemos: habitavam em casa de Octávia os filhos do seu anterior casamento com Cláudio Marcelo (Marcelo, que Augusto adoptaria como filho, Cláudia Marcela Maior e Cláudia Marcela Menor); os filhos do seu casamento com Marco António (Antónia Maior e Antónia Menor); o filho do casamento de Marco António com Fúlvia  (Iullus; o outro filho, Antyllus, tinha sido mandado assassinar por Octávio ainda em Alexandria); Júlia, a Velha (a filha de Octávio, do seu primeiro casamento com Escribónia); Vipsânia (filha única de Marcus Agrippa); Lucius Domitius Ahenobarbus (filho de Domitius Ahenobarbus e de uma parente do trúnviro Lépido), que viria a casar com Antónia Maior, filha de Octávia; os filhos do primeiro casamento de Lívia Drusila, agora mulher de Octávio, com Tibério Cláudio Nero (o futuro imperador Tibério, adoptado por Octávio, e Nero Cláudio Druso) e, a partir de 29 AC, os filhos de Cleópatra e Marco António (Alexandre Hélios e Cleópatra Selene), além de ainda mais alguns parentes chegados.

Octávia, nesta altura a Domina de Roma, afeiçoava-se extraordinariamente às crianças, apesar de ter de cuidar dos bens pessoais da família, agora que o seu irmão Octávio se tornara imperador. Note-se que a designação latina de Imperator já fora usada por Júlio César e também António a usara. Octávio viria a ser também César, Princeps, o primeiro dos seus pares senadores, e, por fim, Augusto (o Divino), por proclamação do Senado Romano, além de sucessivamente Cônsul até morrer. Por isso, foi considerado o primeiro imperador de Roma. O seu nome próprio (tal como o de Júlio César) era Gaius (ou Caius). E sendo Octávio o nome da família, Octávio passou a designar-se Octaviano.

Os Octavii não faziam parte das principais famílias aristocráticas, embora tentassem "enobrecer-se" com o passar do tempo. Grandes famílias eram os Iullii, os Claudius, os Marcelli, os Antonii, os Lepidii, os Domitii, que partilhavam o poder, e o dinheiro, em Roma.

Em certa altura, Nicolau de Damasco, antigo preceptor dos filhos de Cleópatra que se passara para o lado de Octávio, trouxe para Roma Alexandre e Aristóbulo, filhos do rei Herodes da Judeia e de sua segunda mulher Mariamne, que este mandara executar dois anos mais cedo por adultério. Herodes entregou os dois rapazes, de uma dúzia de anos, à protecção de Octávio, como penhor de fidelidade. É claro que vieram engrossar o lote de crianças residentes em casa de Octávia, onde em breve se lhes juntou, também, o jovem Tigrane, filho do novo rei da Arménia.

Alexandre Hélios morreria pouco depois do irmão Ptolemeu Filadelfo. Uma morte quase súbita. O rapazinho queixou-se de ter sido envenenado mas nada se provou a tal respeito. Octávia desconfiou de feitiçaria (!) e mandou matar a velha ama que viera de Alexandria com as crianças. Agora só restava Selene.

No livro, Françoise Chandernagor procede a uma interessante descrição da vida quotidiana das famílias romanas e das idossincrasias de Octávio, um ser que ela resolutamente detesta (e com razão) e que disfarçava a sua crueldade sob a capa da "clemência de Augusto", virtude que realmente não exerceu.   Na verdade, o imperador viveu sempre aterrorizado pela possibilidade de ser assassinado, como acontecera a seu tio-avô e pai adoptivo, Júlio César. Ao longo do texto, tal como no volume anterior, a autora disseca psicologicamente a figura de Augusto, nas suas hesitações e contradicções, e mostra como, embora mantendo as instituições da República, o seu progressivo aumento de poder o tornou no autêntico senhor de Roma, levando os historiadores a considerá-lo o primeiro imperador romano.

A propósito do riquíssimo Caio Mecenas, amigo e protector dos poetas e dos artistas (Horácio, Vergílio, Propércio), e também amigo de jovens (entre os seus amantes conta-se o célebre Bathyllus, mimo de Alexandria que foi seu escravo e depois liberto) e que serviu como "ministro" da Cultura de Augusto, de quem era muito próximo, e também responsável dos serviços secretos do imperador, refere a autora: «Il y a bien des avantages à ce que le chef de la police soit en même temps ministre de la culture. La censure devient critique de connaisseur, la propagande, "art responsable"...» (p. 252)

Não constitui surpresa para alguém que Augusto se serviu dos poetas para dourarem a sua imagem. E alguns destes, ainda que inicialmente resistentes, acabaram por se deixar seduzir ou intimidar pelo imperador. Escreve Chandernagor: «Un écrivain rampant, voilà ce qu'est devenu Properce. Nous aussi, nous connaissons ces métamorphoses - quand, pour séduire un Staline, un Mao, le prince des poètes devient crapaud... Mais en ces temps lointains, c'était neuf. Rendons à Auguste ce qui est de Auguste: en politique il a tout inventé, y compris l'embrigadement des plumitifs. Properce y perdu sont talent, puis sa vie.» (pp. 253-4)

Octávio Augusto empenhou-se em promover casamentos no seio da própria família. Assim, determinou que Marcelo, filho de sua irmã Octávia, desposasse Júlia, sua filha do primeiro matrimónio. Tornado genro e sobrinho do imperador, a Marcelo estava prometido um futuro auspicioso. Mas quis o destino que Marcelo morresse quase subitamente de uma febre, quando se encontrava em Baiae, na Campânia, apenas com 19 anos, pouco tempo depois do imperador ter sobrevivido também a uma estranha febre. Marcelo foi a primeira pessoa a ser sepultada no Mausoléu, ainda inacabado, destinado a Augusto. Octávio seguiu o féretro de cabeça baixa. Para ele, mais do que um desgosto familiar era uma catástrofe política. «Malgré son désarroi, il parvient à accélérer, car il ne doit pas se laisser rattraper. Pour le bon ordre de la cérémonie, L'ordre du monde. L'Ordre.» (p. 312)

«Cet enterrement de Marcellus, si singulier à nos yeux, je n'ai jamais pu le revoir sans entendre en même temps la musique que Purcell composa pour les funerailles de la reine Mary: l'appel solemnel des trompettes, le roulement sourd des timbales. Une marche lente, ponctuée de martèlements de plus en plus violents, un ligne mélodique simple, soutenue d'un crescendo propre à inspirer terreur et respect.» (p. 316)

Sobre Augusto: «Car il a toujours eu conscience de vivre derrière un masque. De parler du haut d'une scène. Il a toujours su que son métier était de feindre pour représenter. De tromper son public pour le dominer. S'il paraît si grand, c'est qu'on l'a juché sur des cothurnes. Et chaque nuit il fait le même cauchemar. Il rêve qu'à l'instant de jouer son rôle, lui le gringalet, le souffreteux, reste sans voix. La foule rougit, mais son dompteur n'a plus de fouet, son dompteur est aphone... "Si la comédie vous a plu, applaudissez."» (p. 341)

A autora prossegue com a descrição do ambiente em Roma, das intrigas, do luto de Octávia, que começa a desconfiar que o seu filho Marcelo foi envenenado. E suspeita de Lívia e das suas ambições quanto ao futuro dos seus filhos. Encontrando-se agora viúva a filha de Augusto, Júlia, Octávia imagina que Lívia a pretenda casar com seu filho Tibério e, numa jogada de antecipação, sugere a Augusto que case a filha com Agrippa, embora este seja casado com Marcela, a sua própria filha. O imperador aceita e Agrippa repudia Marcela para casar com Júlia. Entretanto é arranjado o casamento de Marcela com Iullus.

Através das pontuais aparições de Selene no romance, quase sempre de ficção já que sobre ela não há nesta época praticamente qualquer registo histórico, a autora compraz-se em descrever os jogos de poder e as preocupações quotidianas. E discorre sobre os enfants délicieux que povoavam as casas dos notáveis romanos.

«Dans sa jeunesse donc, Auguste, malgré son prétendu coup de foudre pour Livie, avait eu des maîtresses. Mais ensuite? Il eut, en tout temps, des enfants délicieux: c'était une question de standing. Les enfants qu'il achetait, le maître du monde les préférait maures ou syriens, dit-on. Sans doute échangeait-il avec eux quelques caresses et de long baisers "sur la bouche": un homme incapable d'apprécier sensuellement la peau des enfants, leur haleine parfumée et le doux toucher de leurs petites mains serait passait, en ce temps-là, pour un rustaud. Mais qui disait sensualité ne disait pas forcément sexualité: Auguste jouait avec ses enfants délicieux, il ne les violait pas.

Son goût, de toute façon, ne le portait pas vers les garçons. En revanche, comme "l'empereur" Mao, il aimait dépuceler les fillettes - fillettes au sens ancien du terme, c'est-à-dire, selon le Grand Robert, "jeunes filles peu formées", préadolescentes. À propos d'Auguste, les historiens latins parlent en effet de puellae, et non de puellulae. Des "nymphettes", aurait dit Nabokov. Une fille romaine étant considérée comme nubile à douze ans (et souvent fiançée et "consommée " avant cet âge), on peut penser que les petites esclaves ou, horresco referens, les "fillettes" libres que se faisait livrer le Prince avec la complicité de Livie avaient entre dix et quatorze ans. Peut-être un peu moins... Il est vrai que, pour un Romain, l'âge ne faisait rien à l'affaire. L'atteinte à la virginité était déjà plus transgressive. Mais la perversion ultime consistait à mépriser les statuts juridiques - une hiérarchie sexuellement codifiée que traduit bien un mot d'esprit qui, paraît-il, enchanta Auguste: "Prêter son cul est une infamie pour l'homme libre, un devoir pour l'esclave, et une politesse pour l'affranchi..."» (pp. 424-4)

Entre casamentos, divórcios, recasamentos, Octávia, que depois da morte do filho e o êxodo das "crianças" agora já casadas, vivia quase em clausura, tendo mesmo deixado de receber os poetas e os aristocratas da cidade, decidiu jogar uma última cartada. Restava-lhe Selene, que não pensava em casar, atendendo à damnatio memoriae que caíra sobre os pais. Pois bem, a irmã de Octávio convenceu o imperador a autorizar o casamento de Selene com o ainda jovem Juba, filha do rei Juba I da Mauritânia, que Júlio César trouxera para Roma em miúdo e entregara aos cuidados da sua família. Assim, imprevisivelmente, Cleópatra Selene veio a tornar-se, pelo casamento com Juba II, agora colocado no trono da Mauritânia e Numídia, uma rainha, não com o prestígio da sua mãe, mas mesmo assim rainha.  A linhagem dos Ptolemeus iria continuar.

O casamento de Selene (então com 20 anos) com Juba (então com 29 anos) teve lugar em 19 AC. Juba II era um homem muito letrado, que seguira em Roma uma educação clássica sob a supervisão de Júlio César e depois do seu assassinato, da familia deste. 

Importa referir que a Mauritânia romana nada tem a ver com a actual República da Mauritânia. Aquela situava-se no território sensivelmente correspondente ao norte da Argélia actual. Quando morreu, Selene foi sepultada no Mausoléu Real da Mauritânia, em Tipasa, próximo de Argel. Mas os próximos acontecimentos da vida de Selene serão tratados nos restantes dois volumes da tetralogia de Françoise Chandernagor. 

Não se tendo tornado uma figura da História Universal, como sua mãe Cleópatra VII, mesmo assim, Cleópatra Selene não ficará como reine oubliée: para a sua recordação este contributo de Françoise Chandernagor é uma peça importante!


sexta-feira, 5 de maio de 2023

A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA

Com o auditório repleto, foi hoje (aliás ontem, atendendo à hora a que escrevo) apresentado, na Casa Fernando Pessoa, o livro A Homossexualidade de Fernando Pessoa, de Victor Correia, que se tem dedicado a estudar este aspecto da vida do Poeta.

A obra foi apresentada pelo prof. Helder Bértolo e pelo escritor Fernando Dacosta, com uma intervenção final do autor, que sustenta a tese de que Fernando Pessoa teria sido homossexual, no que foi acompanhado pelos restantes membros da mesa.

Aliás, as grandes biografias pessoanas apontam nesse sentido. A mais antiga, a de João Gaspar Simões (1950), que ainda conheci pessoalmente, não valoriza esse aspecto, mas em contactos que tive com ele, nos anos 80, deixou-me entender que admitia que fosse essa a inclinação do Poeta. Também a biografia escrita por António Quadros (1981 e 1984) permite entrever essa possibilidade. Tendo sido amigo pessoal de António Quadros, abordei uma vez o tema, em conversa com ele, inferindo que, ainda que o assunto não lhe interessasse especialmente, pensava que Pessoa se tinha sempre sentido mais perto dos homens do que das mulheres. A última grande biografia publicada, a de Richard Zenith (2022) aponta nitidamente nesse sentido.

A obra de Fernando Pessoa (ortónimo ou heterónimo) fornece-nos todas as pistas para detectar uma inclinação homoerótica, em alguns casos bem explícita. Também a vida de Pessoa, ainda que até ao momento não se tenham descoberto quaisquer testemunhos de ligação física, convida-nos a pensar que o seu perfil se identifica com o de um homossexual. Os seus amigos mais chegados, Mário de Sá-Carneiro, António Botto, Raul Leal, eram homossexuais, exibindo nas suas obras a exaltação do amor masculino.

Creio poder afirmar-se hoje, sem margem de erro, atendendo a tudo o que se conhece da vida e da obra de Fernando Pessoa, que ele foi um ente homossexual, pelo menos em espírito. Quanto a relações físicas nada se sabe  e talvez nunca alguma coisa se venha a saber. Convém não esquecer, contudo, que Pessoa era extremamente reservado quanto à sua vida privada, a que não tinham acesso nem os seus amigos mais íntimos. O Poeta viveu larga parte da sua vida em quartos alugados, alguns dos quais com porta independente. Nunca ele permitiu que algum amigo o visitasse. Mas ignoramos se levava alguém a sua casa. Nada mais fácil, naquele tempo e mesmo no nosso, até há uns vinte ou trinta anos, do que convidar um jovem empregado de restaurante ou café (e Pessoa conhecia bem os cafés de Lisboa) para uma rápida incursão nocturna. Praticamente ninguém recusava, nem que fosse a troco de parca quantia. Ainda não existiam as redes sociais e os sites de relacionamento sexual também não tinham sido inventados. E Lisboa, como Raul Brandão escreveu mas suas Memórias, foi sempre «como Nápoles» uma cidade especialmente vocacionada para esse género de actividades. Vinham longe os tempos actuais de puritanismo hipócrita, falsos assédios e discutíveis violações. E ninguém se lembrava de perguntar pela data de nascimento no bilhete de identidade (também não havia cartão de cidadão) antes de convidar alguém para a cama. 

Poderia suscitar-se a velha questão, que opôs Proust a Sainte-Beuve, quanto à relação do homem com a obra. Eu estou com Sainte-Beuve e entendo que a tese de Proust não passou de um álibi para si mesmo. 

Poderia continuar a discorrer sobre a sexualidade de Fernando Pessoa, mas é preferível que os interessados leiam a sua obra e estudem a sua vida.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

AS CRIANÇAS DE ALEXANDRIA

Li agora, tinha-o comprado aquando da sua publicação, Les enfants d'Alexandrie (2011), de Françoise Chandernagor, I volume da Tetralogia La reine oubliée, que a autora dedicou aos filhos de Cleópatra VII, e cujos volumes seguintes foram: II - Les dames de Rome (2012); III - L'homme de Césarée (2020); IV - Le Jardin des Cendres (2022).

As "crianças de Alexandria" são, pois, os filhos de Cleópatra VII Filopátor (69-30 AC), a saber: Ptolemeu XV Césarion (47-30 AC), fruto da sua ligação com Júlio César (100-44 AC); os gémeos Alexandre Hélios (40-29 AC) e Cleópatra Selene II (40-6 AC) e Ptolemeu Filadelfo (36-29 AC), os três fruto da sua ligação com Marco António (83-30 AC). 

A "rainha esquecida" é Cleópatra Selene II, a única que chegou à idade adulta, tendo casado com Juba II, rei da Numídia e de Cesareia (Mauritânia Romana). Ptolemeu XV Césarion foi mandado assassinar por Octávio César Augusto (não lhe convinha um filho de Júlio César vivo). Alexandre Hélios e Ptolemeu Filadelfo foram levados por Octávio para Roma, tendo sido perdido o seu rasto (é suposto terem morrido entre 29 e 25 AC).

A narrativa de Françoise Chandernagor é brilhante. A autora explica em 'Note de l'Auteur' a forma como concebeu a estória. Ela assenta nas fontes históricas existentes (e manifestamente insuficientes quando se trata dos filhos de Cleópatra), que constituem a estrutura do romance. Os hiatos são colmatados pela criação ficcional, que tenta imaginar, com a proximidade possível, o que teria sido a realidade. Não sendo propriamente um romance histórico, o livro é um romance profundamente alicerçado na história. Essas explicações, que tratam dos nomes das personagens e dos lugares, e dos costumes, começam por aludir à grande obra de referência do género, as Mémoires d'Hadrien, de Marguerite Yourcenar. Lembro-me, a propósito, de outros clássicos semelhantes, os livros de Mary Renault, sobre Alexandre Magno, ou de Gore Vidal, sobre Juliano.

É justo reconhecer e enaltecer a grande erudição de Françoise Chandernagor, que lhe permite referências exactas à História Romana e do Egipto Ptolemaico e, simultaneamente, pertinentes alusões ao presente, um exercício difícil mas coroado de êxito.

Conta-se a vida quotidiana das crianças em Alexandria, mais tarde acompanhadas de Antyllus, filho de Marco António e de Fúlvia, e de Iotapa, filha do rei Artavasdes, da Média Atropatene, até à célebre batalha naval de 2 de Setembro de 31 AC, em que Octávio derrota (ou obriga a fugir) António.

Depois da batalha de Actium (ao sul de Corfu), a autora imagina um diálogo entre o fantasma de Júlio César e Marco António, e que termina por uma alusão a Cleópatra, ambos navegando no navio almirante da esquadra derrotada: «Baise-la, Marc Antoine, c'est la seule chose que tu fasses mieux que moi, ne l'en prive pas; baise-la» (p. 213).

Transcrevo das páginas 215/6: «Mais peut-être lui, jusque dans les moments d'égarement, continue-t-il à dialoguer avec César? Cette femme qu'ils ont tous les deux possédés, Antoine, ce soir, prend plaisir à la contraindre, à l'humilier: le corps de Cléopâtre est son seul empire désormais - trop petite pour être partagé! Vaincu, il veut vaincre - obliger la Reine à avouer qu'avec César elle n'a jamis joui, qu'il baisait maigre, comme un prêtre végétarien, l'un de ces dévots d'Isis qui sentent le navet: "Et ça, il te le faisait, ton amant, dis? Is savait, ton grand homme, que tu es une salope? Une pute, qu'il faut baiser  en pute!" Le bateau craque de toutes ses membrures sous les paquets de mer. Les dieux interdisent de s'aimer sur un navire en marche, mais elle veut qu'il oublie. Et elle dit "mon maître", dit "encore", dit "seulement toi"...»

«Pour la sexualité, les Anciens sont "modernes". Rien moins que puritains. La position du missionaire, très peux pour eux! Ce qui n'empêche pas qu'ils aient, comme un chacun, leurs dégoûts et leurs tabous. Différents des nôtres: rien de plus ordinaire à leurs yeux que la bisexualité, une notion qui n'a même pas de sens pour un Romain -"on baise, ou quoi?"; et rien de plus banal, de plus charmant, que la pédophilie: tous les partenaires sont permis pourvu qu'on garde un rôle "actif"; mais pas question, entre amants convenables, de s'ébattre en pleine lumière (on éteint la lampe), ni de confondre le haut avec le bas - dans la gymnastique amoureuse, le haut ne comunique qu'avec le haut, et le bas qu'avec le bas. Chez un "homme libre" et une femme respectable, la pureté des lèvres, la propreté de la langue sont sacrées. Fellatio? Cunnilinctus? C'est du latin, d'accord, comme Irrumo ("je t'en mets plein la bouche"), mais ce sont des insultes. Sauf quand on s'adresse à des esclaves. Ou à des courtisanes.»

Uma das coisas que muito indignou Marco António foi a violação do seu testamento, depositado à guarda das Vestais, antes da sua segunda campanha na Arménia. Octávio cometeu um acto sem precedentes, ilegal e sacrílego: ameaçar a Grande Vestal para que esta lhe entregasse o testamento de um homem vivo! Era, nesse tempo, mais chocante de que violar uma sepultura (p. 225). Pois Octávio quebrou os selos e leu partes do testamento no Senado, ocultando a data. O documento repartia os reinos (do Oriente) pelos filhos de Cleópatra e confirmava a filiação de Césarion. Como as chamadas Doações de Alexandria não tinham sido ratificadas pelo Senado, António parecia confirmá-las para desafiar o povo romano. Chegou-se ao ponto de pretender que, qual pai indigno, havia deserdado as filhas nascidas de Octávia. 

Octávio César Augusto, que todos veneramos, que foi o primeiro imperador de Roma, o artífice da Pax Romana e que transformou o Mediterrâneo no Mare Nostrum, é realmente (mesmo para os padrões da época) um carácter mesquinho, vingativo, ambicioso, cruel, calculista, puritano, dissimulado. Os grandes homens têm defeitos (por vezes grandes) mas Octávio exagerou e foi muito diferente de seu tio-avô e pai adoptivo, Júlio César.

«Un personnage de théâtre: depuis que, par Séléné, j'ai découvert Marc Antoine, je le vois comme un héros shakespearien - Shakespeare n'a-t-il fait de lui le protagoniste de deux tragédies? L'une où rayonne l'Antoine juvénil, orateur superbe et conquérant, force de la nature et soleil invancu; l'autre où s'éteint le vaincu d'Actium, l'homme humilié des dernières années dont le regard s'embue de tristesse et d'álcool. Personne, cependant, n'a la moindre idée du physique d'Antoine: Octave a détruit ses portraits... On sait juste qu'il fut d'une "éclatante beauté". À vingt ans, pareille beauté vaut titres; à quarante, la vie exige bien d'autres garanties pour consolider le crédit» (p. 244).

Les enfants d'Alexandrie é um romance sobre os filhos de Cleópatra. Mas é também um romance sobre Cleópatra e sobre Marco António. E sobre Octávio. Françoise Chandernagor não esconde a sua antipatia por Octávio e exprime-a sempre que a oportunidade surge. Octávio, que ficou para a História pelo seu génio político, é uma figura humanamente pouco recomendável. Quanto a Cleópatra, a posição de Chandernagor é mais equilibrada, apontando-lhe as supostas qualidades e defeitos. Mas quem a autora verdadeiramente aprecia é Marco António, cujas virtudes, a par de menores vícios, se compraz em exaltar. E eu estou de acordo com ela. António é um ser humano, talvez demasiado humano, e merece por isso a minha simpatia. Belo, culto, valente, amante dos prazeres da vida, generoso e solidário, foi o oposto de Octávio. Creio, mas posso estar errado, que o grande Júlio César (que poderia ter sido historicamente o primeiro imperador de Roma) se situa entre Octávio César Augusto e Marco António. 

* * * * *

Mas António foi abandonado pelos deuses e perdeu Alexandria e tudo o mais. Não resisto em publicar aqui, a propósito, o célebre poema de Constantin P. Cavafy, o eterno Poeta da cidade:

 

O deus abandona António

 

Quando, subitamente, à meia-noite,

ouvires passar um cortejo invisível,

com música deliciosa, com vozes –

não lamentes a tua sorte, agora vacilante,

as tuas obras que fracassaram, os teus projectos de vida

que se revelaram um equívoco, não os lamentes em vão.

Como homem há muito preparado, como homem cheio de coragem,

diz o teu último adeus à Alexandria, que se afasta.

Acima de tudo, não te iludas, não digas

que foi um sonho, ou que os teus ouvidos te enganaram;

não te humilhes a esperanças tão vagas.

Como homem há muito preparado, como homem cheio de coragem,

como convém a quem foi digno de uma tal cidade,

aproxima-te resolutamente da janela,

e escuta, com emoção, mas não

com as lamentações e as súplicas dos covardes,

escuta, é o teu último prazer, os sons

da música deliciosa desse estranho cortejo,

e diz o teu último adeus à Alexandria que perdes.

 

(Tradução minha a partir do original grego e das versões portuguesas, francesas e inglesas) 

 

* * * * *

O livro termina com o ataque de Octávio ao Egipto e o suicídio de Marco António e de Cleópatra. A descrição não corresponderá exactamente à verdade histórica, mas também não conhecemos os detalhes do que verdadeiramente ocorreu em Alexandria. Ptolemeu XV Césarion fugira para sul do país, por decisão de Cleópatra, mas sabemos que posteriormente regressou à cidade e foi mandado assassinar por Octávio. Alexandre Hélios, Selene e Ptolemeu Filadelfo foram enviados para Roma para serem incorporados no desfile do Triunfo de Octávio. Antyllus foi também mandado assassinar por Octávio ainda em Alexandria. Iotapa, devolvida à sua família. De Alexandre Hélios e de Ptolemeu Filadelfo, cujo rasto se perdeu, supõe-se que terão morrido pouco tempo depois. Quanto a Selene, a autora dedica-lhe os três seguintes volumes da obra.

As notas que Françoise Chandernagor inclui no fim deste I volume revelam profunda ilustração, fornecem preciosas indicações, especialmente para quem não esteja familiarizado com o tema, e contribuem para uma ampla compreensão da forma como a autora imaginou e escreveu a obra.

Logo que possível, lerei os restantes volumes que compõem a Tetralogia. Nunca tinha lido Chandernagor. Não perdi o meu tempo.


sábado, 15 de abril de 2023

OS OTOMANOS

Por sugestão de um amigo, comprei e li o livro Os Otomanos - Cãs, Césares e Califas, de Marc David Bauer, no original The Ottomans - Khans, Caesars, and Caliphs.

A narrativa apresenta-se desorganizada e confusa, o que alonga o livro para mais de 500 extensas páginas. Falta de sistematização, informação desnecessária e repetitiva, mistura de acontecimentos, incorrecção dos factos, de tudo isto sofre a narrativa. Superficialmente detectei vários erros, alguns dos quais anotei. Mas é possível que existam muitos mais, que não procurei confirmar.

Na pág. 142, o autor escreve que Solimão I «foi o primeiro sultão a denominar-se califa». Não é verdade. O primeiro sultão que se tornou califa foi o pai deste Selim I, após a conquista do Egipto em 1517. Mais adiante (pág. 149) escreve que «Selim I não se proclamou califa. Transferiu Al-Mutawakkil, o califa descendente dos membros da dinastia abássida que tinham sobrevivido ao saque de Bagdade pelos mongóis e que se haviam refugiado junto dos mamelucos, do  Cairo para Istambul». É verdade que após a conquista do Egipto, Selim I levou para Istanbul o último califa abássida, Al-Mutawakkil III, mas este transferiu para Selim I a dignidade califal, até porque as relíquias do Profeta Muhammad já tinham sido levadas de Meca e de Medina para a capital otomana.

Na pág, 161, o autor escreve: «Carlos V estava mais concentrado em conquistar a península italiana do que em solucionar a disputa interna na Alemanha, e o seu filho Fernando, que pôs à frente da Alemanha...». Ora Fernando não era filho de Carlos V, mas irmão, e só ficou à frente da Alemanha depois da abdicação de Carlos Quinto (1556), quando foi proclamado imperador do Santo Império Romano Germânico, pela Dieta Imperial em 1558).

Na pág. 190, o autor escreve: «Em vez de seguir a rota direta através do Mediterrâneo e mar Vermelho e depois cruzar o oceano Índico até à costa de Malabar, na Índia, Vasco da Gama desceu ao longo da costa ocidental de África, contornou o cabo e em seguida subiu pela costa leste, em 1497, porque os otomanos e o Império Mameluco no Egito controlavam o comércio no Mediterrâneo Oriental». Não existindo à data o Canal de Suez, pergunta-se como poderia Vasco da Gama ter efectuado o percurso sugerido pelo autor?

Há, todavia, um aspecto que transforma o livro numa calamidade: a tradução. Não li o original inglês mas não é necessário para mergulhar num pântano de disparates. Não é só a tradução geral que é medíocre, a tradução dos nomes próprios chega a ser ininteligível, porque não respeita qualquer regra de uniformidade. E na transliteração de nomes árabes, os ingleses até costumam ser melhores do que os franceses, por isso admito que o original esteja de acordo com as regras. Ninguém deveria traduzir livros com nomes árabes ou turcos (até Atatürk os turcos utilizavam o alfabeto árabe) sem possuir umas noções elementares de árabe.

Eis alguns exemplos: 

- Hádice em vez de hadith

- Gidá em vez de Jeddah

- Mocha em vez de Mokha 

- Mádi em vez de Mahdi

- Hayreddin em vez de Khair ed Din

- Gazi em vez de Ghazi 

E muitos mais, inumeráveis.

Na página 82, está escrito: «Numa escaramuça, a infantaria otomana abateu o cavalo de João Hunyadi, que se desmoronou debaixo dele..». Não é usual um cavalo desmoronar-se.

Na página 210, diz-se que harém significa lar. Verdadeiramente, harém significa o que é proibido, ao contrário de halal que significa o que é permitido. Na sua significação corrente usa-se para indicar o lugar reservado às mulheres do sultão no seu palácio, um local por natureza proibido, mas não é propriamente um lar.

Há muitos outros disparates que não anotei.

Existe, todavia, um aspecto enfatizado pelo autor ao longo de todo o livro, e ao qual dedica mesmo um capítulo especial: a Pederastia. Sabemos todos que as relações homossexuais masculinas foram hábito corrente e normal entre os turcos durante todo o Império Otomano e mesmo depois, embora desde há mais de um século, devido aos complexos ocidentais, os turcos se empenhem em omitir este facto ou a desvalorizá-lo. Essas relações eram mantidas entre homens em geral, mas mais particularmente entre homens e rapazes. Nunca ninguém pensou que pudessem ser classificadas de crime ou pecado. Se alguém o dissesse aos turcos, ou até aos árabes, receberia de resposta uma expressão de espanto e um sorriso compadecido.

Os turcos não chegaram ao refinamento dos antigo gregos, que fizeram praticamente da pederastia uma instituição, mas eram extraordinariamente receptivos à prática, apesar de algumas equívocas condenações no Corão, decorrentes dos textos da Torah e da Bíblia judaica, aliás os mesmos livros. A pederastia turco era menos codificada, e por isso mais livre, do que a pederastia grega, assemelhando-se mais à romana e à que teve grande expressão na Europa durante o Renascimento, em especial no Renascimento italiano.

Mas Marc David Baer empenha-se em recordar-nos alguns episódios historicamente documentados, para lá de descrever o clima reinante, quer no Palácio Imperial, quer entre os cidadãos comuns.

O capítulo em questão começa por incluir um poema de Maomé II (Mehemet II) dedicado a um seu jovem amante cristão. «Os poetas que eram atraídos por mulheres em vez de rapazes eram descritos como estranhos» (p. 237). As cidades que possuíam os rapazes mais belos eram, segundo o autor, Belgrado, Bursa, Edirne, Istanbul e Rize. 

Na zona de Gálata, do outro lado do Corno de Ouro (a parte genovesa da cidade) havia então um bairro onde nas suas tabernas os turcos se deleitavam com rapazes cristãos seus amantes.

Havia também mulheres que amavam mulheres, embora isso fosse inconcebível para a maioria dos homens otomanos. No teatro de sombras otomano, possivelmente trazido do Egipto para Istanbul por Selim I, eram representadas peças libidinosas, nas quais ninguém tentava conservar a virtude ou lutar contra as tentações de Satanás. 

O historiador otomano Mustafa Ali (século XVI) «apresentou uma etnografia sexual de rapazes de diferentes nações. Olhando com sobranceria para os orientais (árabes e turcos), o escritor de origem bósnia louvou "os rapazes escravos, altos e de lábios grossos, da Bósnia [que] estão sempre recetivos para o serviço". Os curdos imberbes eram "irrepreensíveis e obrigados a ser afáveis e muitíssimo obedientes em tudo o que lhes seja proposto" e tingiam-se "no baixo-ventre com hena". Aqueles que desejavam a "célebre beleza do rosto e queriam fervorosamente ser servidos por ciprestes de corpo argênteo, de estatura elevada e movimentos elegantes" voltavam-se para os bailarinos do Sudeste da Europa, ou os circassianos, ou os "croatas almiscarados e deleitáveis saídos dos janízaros". Os albaneses roubavam o coração aos seus amantes, mas eram "impertinentes e obstinados". Os georgianos e russos também estavam disponíveis para "prazeres eróticos". (p. 242)

 

* * * * *

Independentemente da tradução e para lá de uma narrativa quiçá desorganizada e com algumas incorrecções, o livro dá-nos uma perspectiva da importante posição do Império Otomano na Idade Moderna (que começou, segundo os historiadores, com a tomada de Constantinopla, em 1453) e na Idade Contemporânea. O Império foi um poderoso estado euro-asiático e contribuiu em muitos aspectos para a modernidade. Como potência muçulmana, foi muito mais tolerante com as outras religiões do que a Europa cristã, acolhendo geralmente bem os judeus, que para lá emigraram depois da expulsão de Espanha e de Portugal. Ao longo de cinco séculos, o Império Otomano foi uma realidade incontornável numa Europa católica, ortodoxa e protestante. O sultão, e também califa, pretendeu desde muito cedo tornar-se césar (afinal, era o "sucessor" do imperador bizantino) e conquistar Roma (e talvez encarnar o Papado (?). Mas a ambição da Sublime Porta, a designação habitual do Governo otomano, foi travada às portas de Viena. Diga-se, de passagem, que a Sublime Porta (ela mesma, a porta, Bab i-Ali) ainda existe. Era a porta que dava entrada para o palácio do Grão-Vizir, nas proximidades do palácio de Topkapi. Tenho uma fotografia minha à entrada. Também podemos considerar que se registou um Renascimento naquela extremidade da Europa que, ao contrário das versões que circulam entre nós, era extraordinariamente culta. A nota negativa vai mais no sentido da crueldade muitas vezes verificada em circunstâncias injustificadas, se é que alguma vez ela se justifica. Especialmente, o hábito dos sultões, quando subiam ao trono, mandarem matar todos os irmãos (e às vezes tios e primos) para evitar disputas da sucessão. Mas o Ocidente, naqueles séculos, não era também muito clemente. E foi no Império Otomano (aliás, logo a seguir à sua queda e à proclamação da República da Turquia) que se operou a mais notável modificação de escrita do último século, quando Mustafa Kemal Atatürk decidiu substituir o alfabeto árabe que era utilizado pela língua turca pelo alfabeto latino.

Os últimos tempos do Império encontram-se bem documentados ainda que a descrição, como habitualmente, seja emaranhada. O livro dedica largo espaço ao extermínio dos arménios, ensaiando explicações para o sucedido, um acontecimento estranho no Império que, ao longo dos séculos, e salvo situações pontuais, se empenhara, de uma maneira geral, na convivência dos seus súbditos, independentemente de raça, língua ou religião. Conclui Marc David Baer que tal se ficou a dever à simultaneidade de um conjunto de circunstâncias, no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Na sequência desta, e da ocupação da Turquia pelos exércitos ocidentais, Mustafa Kemal organizou o restante das forças turcas, promoveu a constituição da Grande Assembleia Nacional, que viria a determinar a extinção do Sultanato, em 1922 e a abolição do Califado, em 1924. Em 1923, foi proclamada em Ancara a República Turca, secular e ocidentalizada. O Estado Otomano tinha acabado.

 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

UMA VEZ MAIS O TÚMULO DE ALEXANDRE


Constatei há dias que possuo um terceiro livro sobre o túmulo de Alexandre Magno, além de mais de uma dezena de biografias propriamente ditas.

Trata-se de Alexander's Tomb - The Two Thousand Year Obsession to Find the Lost Conqueror, de Nicholas J. Saunders.

Lido agora, posso afirmar que é muito melhor que os anteriores, especialmente melhor que o de Valerio Manfredi. Trata-se de uma obra cuidadosamente organizada, devidamente pormenorizada, abstendo-se de considerações pessoais, inúteis ou muito pouco fundamentadas, já que completamente fundamentadas são raras as considerações que possam fazer-se sobre o fim de Alexandre e a inenarrável "odisseia" dos seus restos mortais. A informação histórica é minuciosa e integra aspectos históricos colaterais ao tema, o que enriquece a obra.

Nos aspectos essenciais, as narrativas dos três livros são praticamente coincidentes: baseiam-se todas nos testemunhos coevos ou imediatamente posteriores à sua morte e nas investigações contemporâneas. A situação muda quanto aos pormenores e à interpretação dos acontecimentos.

Dispensando-me de me debruçar sobre os aspectos gerais já referidos nas outras obras, referirei tão só alguns aspectos particulares.

O autor refere a permanência junto de Alexandre dos seus companheiros de juventude (e seus generais) , a quem estava ligado por especiais relações de amizade. Os mais chegados eram Crátero e Heféstio (Hephaestion), jovens belos e rivais, que disputavam a afeição particular de Alexandre. Entre os outros, assinalam-se Pérdicas, Ptolemeu e Seleuco. Destes, só sobreviveram como monarcas, após a morte de Alexandre, Ptolemeu e Seleuco.

Considera Saunders que Heféstio Amintoro era um homem rancoroso e vingativo, não descansando enquanto Alexandre não enviou Crátero de regresso à Macedónia, para se tornar o único a ocupar um lugar privilegiado no coração de Alexandre.

Tendo Heféstio morrido quase subitamente em Ecbatana (na Média) em 324 AC, a dor de Alexandre foi imensa. Ordenou a mumificação do seu amigo e a realização de sumptuosos funerais. Mandou mesmo apagar o fogo sagrado dos templos de Ahura Mazda, regra que era exclusivamente aplicada em relação aos reis. Talvez Alexandre tenha pressentido na morte de Heféstio a prefiguração da sua própria  morte, que viria a ocorrer meses mais tarde.

Alexandre sempre considerou a sua amizade com Heféstio como a amizade que ligou Aquiles e Pátroclo. Quando passaram por Troia, a caminho da Pérsia, os dois heróis gregos foram homenageados por Alexandre e pelo seu companheiro.

Com a morte de Heféstio, que era o segundo na hierarquia, depois de Alexandre, esse lugar foi ocupado por Pérdicas, jovem igualmente dotado e um dos mais brilhantes generais do Império. Foi organizado um imponente cortejo funerário de Ecbatana para Babilónia, onde Alexandre estabelecera a sua capital, e foi construída uma pira gigantesca onde o corpo de Heféstio foi queimado. Segundo o resultado de escavações efectuadas no local em 1904, os arqueólogos detectaram vestígios do que poderia ter sido a grandiosa pira funerária de Heféstio.

Alexandre Magno morreu em Babilónia em 10 de Junho de 323 AC. Mantém-se a dúvida quanto às causas da morte, desde envenenamento a doença, matéria já abordada a propósito dos comentários aos livros anteriormente mencionados. O corpo de Alexandre foi embalsamado, tendo ficado depositado durante dois anos no palácio de Nabucodonosor, em Babilónia, até os diádocos (sucessores) chegarem a acordo quanto ao local de sepultura. Concretamente, eram Pérdicas, a quem Alexandre entregara o anel real à hora da morte, Ptolemeu e Seleuco. Antípatro ficara como regente da Macedónia e Grécia e Crátero fora enviado à frente das legiões que, tendo-se amotinado no Indo, regressavam à Macedónia (a Retirada dos Dez Mil).

O cortejo fúnebre partiu de Babilónia em 321 AC, dirigido por Arrideu (como já se disse nada tem a ver com Filipe III Arrideu, meio-irmão de Alexandre) com destino a Aigai ou a Siwa, desconhecendo-se hoje o destino inicialmente previsto. A partida nessa data foi uma decisão surpreendente, pois Pérdicas encontrava-se a combater, desnecessariamente, na Capadócia e foi apanhado de surpresa. Na verdade, possuir o corpo de Alexandre era um trunfo político inestimável. Supõe-se que Pérdicas desejasse que Alexandre fosse sepultado na Macedónia, e nunca no Egipto, cujo sátrapa era Ptolemeu, o que conferiria a este uma legitimidade acrescida.

A verdade é que o cortejo, perto de Damasco, foi desviado para Mênfis, então a sede do poder de Ptolemeu. Alexandria, fundada anos antes por Alexandre estava ainda em construção. Presume-se que tenha havido um acordo entre Arrideu e Ptolemeu para o desvio do féretro, numa altura em que se avolumavam as conspirações e as traições entre os generais e os amigos mais próximos de Alexandre. Os mensageiros de Pérdicas tentaram evitar a ida do corpo para o Egipto, mas debalde.

Pérdicas, que era o "sucessor designado" do Império, perdeu uma oportunidade, aliás duas, de consolidar o seu poder, além de ter perdido o corpo de Alexandre. Antípatro enviara-lhe mensageiros a oferecer a mão de sua filha Nicaea e também Olímpia, mãe de Alexandre, lhe oferecera em casamento a filha Cleópatra. Se o casamento se tivesse efectuado isso teria consolidado o poder de Pérdicas, que cometera a imprudência de deixar Babilónia com o corpo de Alexandre ainda por sepultar.

Assim, Pérdicas dirigiu-se ao Egipto onde, contrariamente à vontade dos soldados de ambos os lados, que tinham sido colegas, travou combate contra Ptolemeu, tentando evitar a sepultura do corpo e recorrendo até a curiosos ardis que não cabe aqui pormenorizar. As batalhas correram mal a Pérdicas e este acabou por ser assassinado pelos seus oficiais, nas margens do Nilo.

Segundo uma inscrição anónima encontrada na ilha de Paros - o chamado Mármore de Paros - Alexandre foi sepultado em Mênfis em 321-320 AC, data em que Pérdicas invadiu o Egipto e foi assassinado. A inteligência e astúcia de Ptolemeu, conseguindo apossar-se do corpo de Alexandre e forçando Pérdicas a marchar sobre o Egipto para resgatar o herói macedónio antes que fosse sepultado (depois desse acto apoderar-se do corpo de Alexandre seria um sacrilégio) garantiram-lhe o trono egípcio e a consolidação de uma dinastia que durou até à conquista romana.

Quando Alexandre chegou a Mênfis, em 332 AC, ofereceu sacrifícios no Templo de Ptah, cujo culto era sagrado para os egípcios. A cidade era um centro religioso, político e cosmológico da maior importância. O nome que os gregos usavam para designar o país, Aigyptos, derivava do egípcio Hekaptah, "o palácio onde habita o espírito de Ptah". A partir de Ptolemeu V (197 AC) os faraós passaram a ser coroados no Templo de Ptah, em Mênfis.

Ptolemeu I foi iniciado nos mistérios e nos cultos e práticas da cidade, e na inerente cosmologia,  pelo sacerdote Manethon, homem erudito, que muito contribuiu para a consolidação do seu poder. 

A cidade de Mênfis era o ponto fulcral do culto de Ápis, o boi sagrado, uma reencarnação de Ptah. Quando morria, o boi era mumificado e enterrado em Saqqara, junto dos seus predecessores. Eram colectivamente adorados como Osíris-Ápis ou Oserapis, que os gregos abreviaram para Serápis. A sua grande necrópole em Saqqara era designada por Serapeum. Ptolemeu e Manethon reconfiguraram Serápis como uma nova divindade híbrida. Com o tempo, Serápis incorporou aspectos de Zeus Olímpico, Dionisos, Hélios, Asclépio (Esculápio) e Hades. O novo Serápis não tinha semelhanças com Oserápis mas serviu para reunir religiosamente os nativos egípcios e a nova elite macedónia. Diga-se que Oserápis já era adorado pelos egípcios e pelos gregos do Egipto antes da chegada de Alexandre, mas na sua nova aparência serviu perfeitamente os desígnios de Ptolemeu. Este construiu templos e santuários em honra de Serápis, helenizando profundamente o seu culto.

Possuir o corpo de Alexandre foi fundamental para Ptolemeu, pois o corpo era um importante instrumento político de que os seus rivais não dispunham. Mestre da realpolitik, Ptolemeu nunca pretendeu a sucessão do Império de Alexandre, contentando-se, e bem, com a sua satrapia do Egipto, embora tivesse anexado a Palestina e o Líbano. E favoreceu a divulgação da lenda segundo a qual era meio-irmão de Alexandre, pois sua mãe teria tido uma relação com Filipe II da Macedónia (o que não é provável mas possível).

Tendo Alexandre fundado Alexandria em 7 de Abril de 331 AC, e ficando posteriormente Ptolemeu como sátrapa, ele proclamou-se rei só depois de ficar extinta a dinastia Argéada (700-309 AC), com o assassinato do filho póstumo de Alexandre (Alexandre IV) em 309 AC. Em Setembro de 317 AC , Olímpia assassinara Filipe III Arrideu, meio-irmão de Alexandre, que fora proclamado rei após a morte deste em 323 AC. Cassandro matou Olímpia em 316 AC. Também por ordem de Cassandro foram assassinados a amante persa de Alexandre, Barsine, e seu filho Alexandre Hércules, em 309 AC. Em 306 AC, Cassandro matou Cleópatra, a irmã de Alexandre Magno. Antígono, que governava a Ásia Menor, proclamou-se basileus, e sucessor de Alexandre, em 306 AC. Nesta altura, Cassandro, filho de Antípatro, governava a Macedónia, Seleuco a Babilónia e Lisímaco a Trácia. Ptolemeu corou-se rei e faraó em 305 AC.

Segundo o autor, a trasladação do corpo de Alexandre de Mênfis para Alexandria terá tido lugar em 283-282 AC, quando da morte de Ptolemeu I, ou em 275-274 AC, por ocasião das grandes festividades organizadas por Ptolemeu II. Estas festividades, chamadas "Ptolemaias", celebravam-se de quatro em quatro anos, ao mesmo tempo que os Jogo Olímpicos. O fascínio por Alexandre deve muito a estas fantásticas criações de Ptolemeu. Elas fizeram também parte de uma mobilização espiritual para a campanha seguinte,  a primeira guerra da Síria, contra o rei selêucida Antíoco I. A contenda começou logo a seguir às grandes procissões ptolemaicas e acabou pela vitória de Ptolemeu em 272 AC.

Levanta-se sempre a questão. Na ocasião destas festividades o corpo de Alexandre estaria já em Alexandria? É verdade que Ptolemeu II esforçou-se por recuperar a lenda segundo a qual Alexandre era realmente filho de Nectanebo II, para melhor legitimar junto dos egípcios a dinastia macedónia. Terá sido até Ptolemeu II que fez transportar de Mênfis para Alexandria o célebre sarcófago verde de Nectanebo II? Na vida e na morte, Ptolemeu permaneceu na sombra de Alexandre.

Estrabão viveu em Alexandria de 24 a 20 AC, numa altura em que a cidade estava já bastante romanizada mas em que ainda permaneciam vestígios do traçado ptolemaico. Sabemos que existiram dois túmulos de Alexandre, em Alexandria. No primeiro, que terá sido no centro da cidade, esteve sepultado sozinho, no segundo conjuntamente com os reis ptolemeus. Estrabão só poderia ter visto o segundo túmulo. Ptolemeu IV Filopater (221-204), que parece hoje ter sido quem construiu o segundo túmulo, tê-lo-ia edificado como o de Mausolo, em Halicarnasso. E estaria construído perto do Palácio Real. Provavelmente inaugurado em 215 AC. Curiosamente, nem Estrabão nem os seus contemporâneos fazem referências ao túmulo, talvez porque fosse um local de Alexandria que todos conheciam muito bem.

É possível que o túmulo de Augusto, no Campus Martius, em Roma, e o túmulo de Adriano (hoje o Castel Sant'Angelo) tenham sido inspirados pelo túmulo de Alexandre.

A maior parte dos visitantes de Alexandria deslocava-se ao túmulo de Alexandre, que era uma atracção da cidade. À sua volta estabeleciam-se vendedores de recordações (como em toda a parte), de comidas, de bebidas, de objectos vários de fabrico local. Muitos entravam no recinto, mas terão sido poucos os que viram o corpo embalsamado. Era mais fácil tê-lo visto no primeiro mausoléu do que no segundo, devido às restrições impostas por Ptolemeu Filopater. 

Considera o autor do livro que o turismo que se desenvolveu em torno do túmulo de Alexandre constituiu, no género, o comércio mais rentável até à descoberta do túmulo de Cristo.

O livro em apreço menciona também as figuras ilustres que visitaram o túmulo e que já foram descritas nos comentários aos dois livros anteriores. Júlio César, em 45 AC, Octàvio, em 31 AC. O túmulo que eles devem ter visto foi o de alabastro ou de cristal de rocha mandado construir por Ptolemeu X, em substituição do original túmulo de ouro. Esse ouro fora utilizado por Ptolemeu X para cunhar moeda para pagar ao seu exército de mercenários. O material utilizado no novo túmulo incluiria uma substância chamada natrão, utilizada em conservação e existente em grandes depósitos na região ao sul de Alexandria, Wadi Natrum, o Vale do Natrão. Consta que também Cleópatra vendeu ricos objectos que ornamentavam o túmulo de Alexandre para pagar o custo da sua luta contra Octávio depois da derrota na batalha de Actium.

Os seguintes imperadores romanos que visitaram o túmulo foram Calígula (que terá roubado a couraça de Alexandre), Vespasiano, Tito e Adriano, que tinha uma especial admiração pelo herói macedónio. Comparando o amor de Alexandre por Hefaísto ao amor que o ligava ao seu favorito Antínoo, que se afogou no Nilo, Adriano criou uma nova cidade, Antinópolis e estabeleceu um culto de Antínoo, identificando-o ao deus egípcio Osíris e chamando-lhe Osirantínoo. A cidade de Antinópolis sobreviveu até ao início do século XIX, quando as pedras que restavam das suas construções foram utilizadas em novos edifícios. 

Septimio Severo interessou-se muito pela cidade e por Alexandre. E também pelo facto da figura deste estar a ser manipulada com intenções religiosas, já que os alexandrinos mantinham obsessões alquímicas, mágicas e de adivinhação do futuro. A vida religiosa em Alexandria era então muito turbulenta e o imperador mandou apreender todos os livros que contivessem "segredos" e encerrou-os no túmulo de Alexandre, tendo-o depois fechado, segundo refere Dion Cassius. Não sabemos exactamente o que o historiador queria dizer com a palavra fechado. 

Mais tarde, Caracala, que se tomava por uma incarnação de Alexandre, também visitou o túmulo mas as suas acções provocaram destruições na zona de Bruchion. A cidade voltou a sofrer estragos devido à invasão de Zenóbia, rainha de Palmyra (que se proclamava descendente de Cleópatra VII) e de seu filho Wahballath, e do confronto com o imperador Aureliano, que acabou por derrotá-la.

Estiveram ainda em Alexandria Domiciano, Diocleciano, que erigiu a coluna hoje chamada de Pompeu, no Serapeum, Constantino, que se converteu ao cristianismo e começou a hostilizar os pagãos, Juliano, que tentou restaurar os velhos deuses romanos, e Teodósio que, em 380, proclamaria o cristianismo como religião oficial do Império Romano.

Segundo o autor, o patriarca de Alexandria Georgius (360-363) [não encontrei o seu nome na Lista dos Patriarcas de Alexandria] era um espião ao serviço de Constâncio II. Tendo passado uma vez pelo túmulo de Alexandre, terá perguntado (segundo Ammianus Marcellinus): "Há quanto tempo está aqui?", o que provocou o receio da população sobre a sua intenção de destruir a sepultura.  Os alexandrinos eram-lhe particularmente hostis, razão pela qual andava sempre escoltado. Com a morte de Constâncio II e a proclamação de Juliano como imperador, a situação alterou-se. O novo imperador, ainda que tolerante com o cristianismo, sacrificava aos deuses antigos. Presidiu até à entronização do boi Ápis em Mênfis, em 362.  O povo, solidário com Juliano, acabou por assassinar Georgius na sua igreja.

Em 365, verificou-se um grande terramoto em Alexandria, o que poderá ter danificado ou mesmo destruído o túmulo, mas certamente não a múmia.

Em 391, Teodósio I baniu o paganismo do Império. O prefeito Evragius resolveu destruir o Serapeum de Alexandria, contando com o apoio dos cristãos extremistas excitados pelo patriarca Teófilo. Não existe, neste tempo de muita confusão, qualquer notícia acerca do Soma. Ou porque fora já destruído ou por qualquer outra razão. 

Por volta de 400, João Crisóstomo, patriarca de Antioquia, referiu-se ao túmulo de Alexandre numa homilia, perguntando onde ele estava e em que dia havia  morrido. A observação do bispo é uma alusão ambígua sobre a insignificância real do corpo de Alexandre. E uma comparação implícita a Jesus Cristo. O império espiritual de Cristo estava florescente e o domínio do mundo por Alexandre estava a desfazer-se aos bocados. 

Em 350, o patriarca de Alexandria, Alexandre I (???, julgo tratar-se de um lapso do autor), aboliu as festas pagãs que tinham lugar todos os anos no grande templo construído por Cleópatra em honra de César, e de que Octávio se apropriou para o seu culto como Augusto (o Caesareum ficava na zona da actual Praça Saad Zaghlul). O patriarca decidiu também destruir a estátua de Saturno existente no templo. A população amotinou-se e forçou o patriarca a um compromisso. A estátua foi recolocada no lugar com uma cruz e dedicada a São Miguel. O cristianismo fazia estas acomodações sempre que a situação o exigia.  Os amuletos do tempo dos Ptolomeus e dos antigos egípcios foram conservados. 

Na ilha de Philae, o templo de Isis manteve-se aberto até 535 ou 537 (reinado de Justiniano). 

A incompleta dominação do cristianismo é comprovada pelo edito de 450 de Teodósio II encorajando os bons cristãos a queimar os livros heréticos e a destruir os templos pagãos. Em 491, adoradores de Zeus foram descobertos e mortos em Chipre. E em 580 outros adoradores de Zeus foram mortos em Antioquia. 

Mas os historiadores não conseguiram descobrir indicações da destruição do mausoléu e do corpo mumificado de Alexandre. Mesmo que o Soma houvesse sido destruído, a sua múmia deveria ter sido posta a salvo.

«O mundo criado por Alexandre e os Ptolemeus foi remodelado por Roma e mais tarde pelo Cristianismo. O Islão tornou a mudá-lo e todos os traços do pagão Alexandre e do seu Soma podiam ter sido enterrados para sempre. Mas tal não aconteceu. O Islão, o Cristianismo e o Judaísmo são religiões de livro - partilhando crenças e personalidades ancestrais, ainda que configurando-as em vias radicalmente diferentes. Os muçulmanos Omíadas que agora controlavam o Egipto foram tolerantes em relação aos cristãos e aos judeus, estendendo essa tolerância a Alexandre  a quem chamaram Iskender. Alexandria é ainda conhecida como Iskandariya em árabe.» (pp. 117/118)

O "Senhor dos dois-chifres" (Zulqarnein) é mencionado no Corão, no capítulo 18. Os dois chifres simbolizavam a força física e o poder espiritual, e por essa razão Alexandre foi honrado com o título de Nabi, ou Profeta. 

 João Crisóstomo vociferou contra os amuletos de Alexandre ainda que então eles perpetuassem a imagem de Zulqarnein em toda a glória dos seus dois chifres. A vitória de Alexandre sobre Crisóstomo estendeu-se mesmo aos coptas herdeiros da tradição cristã egípcia, que que colocaram a imagem de Alexandre - e muitas vezes mesmo o seu nome - nas suas tapeçarias religiosas.

Nota intercalar: Os Coptas são os cristãos egípcios que mantêm a sua própria Igreja Ortodoxa Copta, que se separou da Igreja de Constantinopla em 570. Desde os tempos tardios de Roma até ao século XIII, a língua copta baseava-se no egípcio demótico mas escrita no alfabeto grego, que era a língua principal do Egipto. É ainda hoje usada nos serviços religiosos. A língua e as crenças coptas preservaram as imagens e o simbolismo do Egipto faraónico e greco-romano que se tornou mais tarde (o que muitas vezes não é reconhecido) parte da principal corrente do Cristianismo. A influência de Isis e de seu filho Hórus na Virgem Maria e em Cristo em criança é um exemplo importante de como funcionou este processo híbrido; o mito da ressurreição dos mortos de Osíris é outro. O Museu Copta do Velho Cairo possui um raro crucifixo dos tempos coptas mais antigos retratando um Cristo sem barba com um falcão Hórus e um disco solar. O famoso ankh faraónico - o símbolo hieroglífico para vida - foi adoptado pelos coptas como a sua própria cruz distintiva.

Em 871, o historiador árabe Ibn Abdul Hakim compilou uma lista das mesquitas de Alexandria e incluiu a Mesquita de Dulkarnein localizada perto da "Porta da Cidade e sua saída". Em 943, Al-Massudi comentou o mesmo edifício, chamando-lhe túmulo do profeta e rei Iskender.

Em 1517, a invasão turca de Selim I acabou com os hábitos isolacionistas da cidade, que se tornou um importante centro comercial. Leão Africano (1495-1552), que visitou Alexandria entre 1515 e 1517, escreve: «... no meio da cidade entre as ruínas pode ver-se uma pequena casa em forma de capela, onde está um túmulo honrado pelos maometanos; é afirmado que no interior está o corpo de Alexandre o Grande, grande profeta e rei, como pode ser lido no Corão. Muitos estrangeiros vêm de terras distantes para venerar o túmulo, deixando no local valiosas e frequentes esmolas.» (p. 121)

 Em 1517, o engenheiro e provável espião veneziano Filippo Pigafetta refere que a maior parte da cidade está em ruínas e apresenta um aspecto lamentável. O poeta e viajante inglês George Sandys, em 1610, coloca o túmulo de Alexandre numa pequena construção no pátio da Mesquita Attarine, construída sobre as ruínas da antiga igreja de Santo Atanásio. Sandys publicou, em 1617, Relation of a Journey Begun A.D. 1610, retomando a versão de Leão Africano: «There is yet to be seene a little Chappell; within a tombe, much honored and visited by Mahometans, where they bestow their alms; supposing his [i.e., Alexander's] body to lie in that place. Himselfe reputed a great Prophet, and informed thereof by their Alcoran» (p. 122)

Muitos outros visitantes procuraram em Alexandria o túmulo de Alexandre. Refira-se ainda Evilya Çelebi, nascido em Istanbul em 1611. Depois de estudar o Corão durante onze anos, viajou pelo Império otomano, acabando por ir parar a Alexandria. Na Mesquita Attarine, e ao contrário dos seus predecessores, estudou e descreveu os hieróglifos cobrindo os quatro lados do sarcófago: homens, génios, querubins e todos os animais que Deus pôs sobre a terra. E, casualmente, fez uma espantosa revelação: o antigo sarcófago servia como recipiente de água para abluções rituais, inferindo-se do texto que observou a sua utilização. Foi o primeiro a descrever a decoração do sarcófago e a sugerir a sua reciclagem para limpezas rituais islâmicas.

O sábio Vivant Denon, que integrou a expedição de Napoleão ao Egipto e publicou Voyage dans la Basse et Haute Égypte, tomou conhecimento do sarcófago verde e da famosa Pedra de Rosetta, providenciando para que ambas as peças fossem remetidas para França, mas os britânicos, através de ardis, conseguiram subtraí-las para Inglaterra, onde hoje se encontram. Não cabe neste espaço descrever todas as manobras que rodearam essa operação, mas o autor descreve-as no livro. A conhecida Pedra de Rosetta contém uma proclamação do faraó Ptolemeu V. 

Em 1805, Edward Daniel Clarke publicou The Tomb of Alexander, a Dissertation on the Sarcophagus from Alexandria and Now in the British Museum, embora não soubesse o significado dos hieróglifos no túmulo, pois a escrita não havia sido ainda decifrada. Só posteriormente se veio a saber que era destinado ao faraó Nectanebo II. Nestes tempos, os ingleses roubavam, com destino a Londres, todas as peças de arte que podiam, como, por exemplo, os mármores mandados arrancar do Parténon por Lord Elgin, embaixador britânico no Império otomano.

Foi a pedido de Napoleão III, que dedicava um especial culto a Alexandre e tencionava publicar um livro sobre o famoso guerreiro, que o khediva Ismaïl encarregou em 1865 o astrónomo (falaki) Mahmud Bey el-Falaki de proceder a à elaboração de um mapa da antiga Alexandria. O imperador dos franceses desejava conhecer os caminhos da cidade ptolemaica. O trabalho iniciou-se em 1866 e foi publicado em 1872. Todavia, as escavações efectuadas revelaram mais da cidade já da época romana do que dos tempos anteriores. Existiam três estratos na cidade: o ptolemaico, o romano e o árabe (dos tempos de Ibn Tulun, no século IX). Mahmud Bey convenceu-se de que o túmulo estaria na Mesquita Nabi Daniel, mas nada encontrou. Também Evaristo Breccia, segundo director do Museu Greco-Romano, só encontrou em Nabi Daniel condutas de água. 

Heinrich Schliemann, que descobriu as ruínas de Micenas e Troia interessou-se igualmente pela Mesquita Nabi Daniel e propôs-se lá efectuar grandes escavações em 1888. Não lhe tendo sido concedida autorização pelas autoridades acabou por desistir e morreu dois anos mais tarde. Também Achille Adriani, sucessor de Breccia na direcção do Museu Greco-Romano, insistiu, debalde, nas pesquisas da Mesquita Nabi Daniel. 

Em 1887, Osman Hamid Bey encontrou um túmulo, que presumiu de Alexandre, perto de Sídon, no actual Líbano, e que está hoje [pude contemplá-lo] no Museu Arqueológico de Istanbul. Foi identificado em 1898 por Gertrude Bell e seria destinado a Abdalonymus, último rei fenício de Sídon, e que devia o trono a Alexandre, que aí o colocou em substituição de Stratão. 

Augusto Mariette (1821-1881), primeiro director do Serviço de Antiguidades Egípcias, um apaixonado do Egipto faraónico, procedeu a notáveis escavações na zona de Mênfis, tendo descoberto o Serapeum de Saqqara. 

Evaristo Breccia foi o segundo dos três directores italianos do Museu Greco-Romano. O seu predecessor foi Giuseppe Botti, que fundou o Museu em 1892. O seu sucessor, em 1932, foi Achille Adriani. Os três pesquisaram na cidade e encontraram antigos cemitérios: Anfushi, Chatby, El-Shuqafa, Hadra, Mustafa Pasha. Mas não encontraram vestígios dos túmulos de Alexandre e dos Ptolemeus. 

Breccia descobriu em 1907 nas escavações no cemitério Católico Romano da Terra Santa (parte dos chamados Cemitérios Latinos) um bloco de alabastro que estava num templo ptolemaico nas muralhas orientais da cidade. Mas só revelou esta descoberta em 1914, na edição francesa do seu guia das antiguidades da cidade Alexandrea ad Aegyptum. Breccia não considerou o amontoado de alabastro como um possível túmulo de Alexandre mas Adriani teve opinião diferente. Eram ruínas de um túmulo em estilo macedónio, único em Alexandria. Cauteloso, mas progressivamente mais convencido, reuniu as suas notas privadas que foram publicadas em 1982, dois anos depois da sua morte, pelos seus alunos Nicola Bonacasa e Patrizia Minà, com o título La tomba di Alessandro (2000). Adriani julgou que as ruínas pertenciam ao Soma, o primeiro túmulo de Alexandre em Alexandria. O sítio encontra-se hoje nas muralhas do jardim de Shallalat, fora das muralhas da cidade ptolemaica. 

Em 1893, o grego Ioannides, explorando o cemitério de Chatby, insistiu ter descoberto os túmulos de Alexandre o Grande e de Cleópatra VII. Os túmulos eram autênticos mas não dos possuidores indicados.

O autor também refere o célebre empregado de Café (neste livro não se menciona que era o Café Elite) que passou a vida, com o dinheiro das gorjetas, a fazer escavações legais e ilegais em Alexandria, à procura do túmulo. Stelios Koumatsos pretendeu mesmo convencer o Professor Peter Fraser, uma das mais notáveis autoridades sobre o Egipto ptolemaico, da veracidade das suas descobertas mas foi por este desmascarado.

Estas tentativas de descoberta, pelas pessoas referidas e por outras que não menciono, são pormenorizadamente descritas no livro.

Por volta de 500 AC, o Oráculo do deus egípcio Amon, em Siwa, foi ligado ao deus grego Zeus. O Oráculo de Zeus Amon tornou-se o mais famoso do mundo antigo, embora os dois deuses apareçam muitas vezes separados. Terá sido por essa razão que ao chegar ao Egipto, Alexandre se dirigiu directamente a Siwa. O sumo-sacerdote, em conversa que ficou entre ambos, ter-lhe-á dito que ele era filho de Amon. O templo de Amon foi construído pelo faraó Amasis, da 26ª dinastia e aumentado pelos ptolemeus. Existem hoje as suas ruínas. Existia um segundo templo de Amon, também hoje em ruínas, agora chamado Umm 'Ubaydah, que foi construído por Nectanebo II, da 30º dinastia. 

Sobrevive ainda a hipótese de Alexandre ter sido enterrado em Siwa. Em 1989, a arqueóloga grega Liana Souvaltzis, escavando em Siwa, encontrou as ruínas de um templo grego, a única estrutura grega existente. Todavia, este local era do período greco-romano do século I. Souvaltzis teve várias autorizações de escavações, proferiu várias conferências, ma acabou por ser afastada pelas autoridades egípcias. O seu caso é devidamente descrito no livro.

No período helenístico, foram removidas de Heliópolis para Alexandria muitas estátuas e obeliscos, que ornamentaram praças e ruas. A cidade fora um importante centro de culto do deus Sol. Os dois grandes obeliscos de Tutmés III foram colocados no Caesareum e ficaram conhecidos por agulhas de Cleópatra. Encontram-se hoje, um Central Park, em New Yort, o outro em Londres, no Aterro do Tamisa (Thames Embankment).

* * * * *

Procedi ao registo dos tópicos mais importantes deste livro, que poderão suscitar no leitor o desejo de ler a obra. Seria impossível uma referência pormenorizada e omiti alguns detalhes já comentados na recensão dos dois livros anteriores sobre o túmulo de Alexandre.

Este livro, além de mencionar em notas de apêndice as fontes consultadas, inclui ainda as "Dramatis Personae", um Glossário de locais e nomes próprios e uma exaustiva lista de Bibliografia.

Trata-se. pois, de uma obra séria que mantém vivo o desejo de se encontrar o túmulo de Alexandre o Grande, se porventura ainda existe.


segunda-feira, 20 de março de 2023

A BIBLIOTECA DE ESTALINE


Li A Biblioteca de Estaline – Um ditador e os seus livros, de Geoffrey Roberts.

Trata-se de um volume de mais de 300 páginas, dedicado não só à biblioteca de Iosif Vissarionovitch Djugachvili, aliás Stalin, mas igualmente a aspectos biográficos do dirigente soviético e à implantação do comunismo na Rússia.

É sabido que Stalin professava uma paixão pelos livros e que a sua biblioteca possuía mais de 25 000 volumes. Deste acervo, que foi disperso após a sua morte, foram identificados posteriormente alguns milhares. Além de obras sobre política, economia e assuntos militares, e especialmente sobre Lenin, existiam os grandes clássicos da literatura europeia, com destaque para os escritores russos.

Tinha Stalin o hábito de anotar e sublinhar os livros que lia e de requisitar livros de diversas instituições. Foi também o grande editor da União Soviética, ocupando-se da promoção dos livros que considerava essenciais para o conhecimento do povo russo.

O livro de Geoffrey Roberts menciona exaustivamente as fontes, mas peca pela falta de um índice onomástico e pela ausência de uma bibliografia respeitante às citações, limitando-se a mencionar, em apêndice, uma breve nota de alguns livros sobre Stalin considerados importantes.

O presente volume, publicado por uma editora recente, está bem traduzido, fornece uma imagem globalmente simpática da personagem, considerado um verdadeiro intelectual,ainda que não omita os seus aspectos negativos, e dá-nos um panorama, embora sucinto, da vida cultural da União Soviética na primeira metade do século passado.