Foi agora publicada uma peça inédita de Jean Genet (1910-1986), Héliogabale, que se supunha definitivamente perdida.
Quando esteve detido na prisão de Fresnes, desde 15 de Abril de 1942, Jean Genet compôs o poema Le Condamné à mort, prosseguiu a redacção do romance Notre-Dame-des-Fleurs e iniciou a criação de um conjunto de peças de teatro, das quais a primeira versão de Haute Surveillance [que eu apresentei em estreia pública absoluta em Portugal, no Teatro Primeiro Acto, em 1983], então intitulada Pour "La Belle", e três outras que permaneceram inéditas: Persée, Héliogabale e Journée castillane. A segunda, que se julgava perdida, foi encontrada recentemente nas colecções patrimoniais da Houghton Library (Universidade Harvard) e foi agora publicada.
Desde 1943, a peça foi objecto de contrato (nunca concretizado) com vários editores, conforme testemunho de François Sentein, Jean Cocteau e Marc Barbezat e mesmo de Jean Marais, a quem foi proposto o papel principal e que então não se mostrou entusiasmado. Em 1955, segundo Edmund White, houve ainda diligências para promover a publicação, mas posteriormente perdeu-se-lhe o rasto.
O tema da peça são as últimas horas de um condenado à morte, ou seja de um imperador romano cujo destino estava selado. Jean Genet escolheu contar livremente a conspiração de que foi objecto Varius Heliogábalo (c. 203-222), e que levou à sua destituição do poder em 11 de Março de 222.
Nascido como Sextus Varius Avitus Bassianus, foi proclamado imperador em 218, com apenas 15 anos. Tendo o imperador Caracala sido assassinado em 217 e substituído pelo prefeito do pretório Macrino, a tia materna de Caracala, Julia Moesa instigou uma revolta para que seu neto Varius se tornasse imperador, o que aconteceu devido à derrota de Macrino, em 218, na batalha de Antioquia.
Uma explicação: Julia Moesa era irmã de Julia Domna, que fora casada com o imperador Septimo Severo e mãe de Caracala. Julia Moesa casara com Julius Avitus e era mãe de Julia Soemia (mulher de Sextus Varius e mãe de Heliogábalo) e de Julia Mamaea (mulher de Gessius Marcianus e mãe de Alexandre Severo). Por morte de seu sobrinho Caracala, Julia Moesa conseguiu impor como imperador seu sobrinho neto Varius (Heliogábalo), mas descontente com este (e receando mesmo que ele a mandasse assassinar, já que era uma mulher poderosa) resolveu ser ela a tomar a iniciativa de se desembaraçar do neto, colocando no trono o outro neto, Alexandre Severo.
O reinado de Sextus Varius Avitus Bassianus, que ficou conhecido como Heliogábalo, já que fora sacerdote do deus solar Heliogabalus ou Aelagabalus na Síria (província donde era natural) foi uma sucessão de escândalos (mesmo para a Roma do tempo), perversidades, excentricidades e subversão religiosa, conforme é descrito pelos historiadores coevos e modernos. Basta consultar Dion Cassius ou a Historia Augusta, ou mais recentemente Edward Gibbon, embora alguns autores modernos considerem que as fontes romanas não são absolutamente fiáveis, estando inquinadas de preconceitos.
Um dos textos contemporâneos mais notáveis deve-se a Antonin Artaud, Héliogabale ou l'Anarchiste couronné (1934), um ensaio surrealista que combina a biografia e a ficção e que foi, certamente, fonte de inspiração de Jean Genet.
O reinado deste imperador teria necessariamente de seduzir Genet como exemplo de transgressão, de luta fratricida pelo poder e de abjecção moral. A finalidade de Heliogábalo é a própria destruição do Império, que Genet evidencia claramente na peça. A cena vai diminuindo de volume ao longo dos quatro actos, sendo um espaço reduzido no último, onde o imperador é assassinado.
Heliogábalo (Musei Capitolini, Roma)
A vida sexual de Heliogábalo foi uma sucessão desordenada de casamentos com mulheres e com homens, tendo-se o próprio imperador prostituído muitas vezes sob roupagens femininas. Tinha especial predilecção pelos cocheiros das bigas, tendo um deles, Aeginius, um escravo louro, sido utilizado por Genet para figurar na peça. Segundo o dramaturgo, Heliogábalo esconde-se nas latrinas do palácio junto aos esgotos (Acto IV) juntamente com Aeginius que o assassinará, embora por trás da cortina. As legiões proclamarão então (222) seu primo de 14 anos, Alexandre Severo, como imperador. Alexandre Severo será igualmente assassinado em 235, pondo fim à dinastia dos Severo, mas isso é já outra história.
Esta peça de Jean Genet, povoada pelos seus fantasmas, insere-se no melhor teatro do autor, evidenciando as preocupações constantes dos seus escritos. O livro é acompanhado de um excelente ensaio de François Rouget, assinalando os aspectos dramáticos mais importantes, incluindo a questão da "santidade" e a pretensão de Heliogábalo de se identificar de alguma forma aos cristãos.
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