domingo, 21 de agosto de 2022

REVISITANDO JEAN GENET

Vi, ouvi e li, ontem e hoje, em revisitação, o Coffret "Portrait de Jean Genet", editado em 2006.

A caixa inclui um DVD de duas faces, contendo o filme Un Chant d'amour, o único filme realizado por Genet (1950), duas entrevistas a Genet, efectuadas por Antoine Bourseiller (1981) e Bertrand Poirot-Delpech (1982) e entrevistas sobre Genet com Leïla Shahid (2005), Roland Dumas (2005), Albert Dichy (2005) e Hélène Martin (2005); dois CD's, incluindo a versão radiofónica integral da peça Haute Surveillance, uma entrevista com Tania Balachova e Albert Taillade sobre a peça Les Bonnes, e dois extractos da peça Les Bonnes, uma intervenção de Genet sobre George Jackson e vários poemas de Genet, musicados por Hélène Martin; e ainda um livro sobre Genet e sobre a edição deste DVD e dos dois CD's.

A entrevista dada a Antoine Bourseiller é ilustrada com imagens de Alberto Giacometti, no seu atelier, realizando o retrato de Genet.

Sobre Jean Genet (1910-1986) tudo, ou quase, foi dito. Mas o livro incluído no Coffret, além de registar o que consta do DVD e dos CD's, apresenta um texto interessante sobre o único filme realizado pelo Poeta bem como algumas notas curiosas, imagens menos conhecidas e fac-simile de documentos.

A bibliografia activa e passiva de Genet é imensa e desde a publicação do I Volume das suas Obras Completas (Saint Genet, Comédien et Martyr), de Sartre, o escritor alcançou uma projecção mundial que ainda hoje se mantém viva, ainda que acusando talvez alguma usura do tempo.


sábado, 20 de agosto de 2022

UMBERTO SABA E O ROMANCE INACABADO

Comprei a tradução portuguesa de Ernesto, de Umberto Saba, quando foi publicada, em 1988, mas a exemplo de tantos outros livros, embora conhecesse o argumento, nunca tinha lido a obra. Aconteceu agora.

Notável poeta e escritor italiano, Umberto Saba, de nascimento Umberto Poli, nasceu em Trieste, em 9 de Março de 1883, e morreu em Gorizia, em 25 de Agosto de 1957. Tendo começado a publicar poesia ainda antes da Primeira Guerra Mundial, prosseguirá a sua carreira e alcançará a celebridade já depois do conflito de 1939-1945, tendo recebido vários prémios, entre os quais o Prémio Taormina, e obtendo um grau honoris causa pela Universidade de Roma.

A sua poesia é caracterizada por uma profunda sensibilidade e uma extrema simplicidade, o que a torna singular no panorama literário italiano. É provável que a sua origem triestina (nasceu quando a cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro, tendo depois pertencido aos italianos e aos jugoslavos, sido considerada cidade livre e regressando novamente à Itália) tenha influenciado a sua carreira e o seu percurso pessoal, em todos os domínios, como se poderá constatar pela consulta da sua biografia.

O romance Ernesto foi escrito em 1953, quando o escritor tinha 70 anos e, como ele próprio advertira, ficou inacabado. A acção decorre em 1898 e o protagonista é um homossexual (ou bissexual) de 16 anos, mas a história, porque interrompida, não conhece desenvolvimento para lá da adolescência do jovem. Trata-se, realmente, de um romance autobiográfico de Umberto Saba, que o escritor não quis concluir.

A obra foi publicada em 1975 (inconclusa), quase 20 anos depois da morte de Saba, pelas Edições Einaudi, com a ajuda da filha do poeta. Sobre o romance, foi realizado um filme por Salvatore Samperi, em 1979.

Sobre Ernesto, a grande escritora italiana Elsa Morante (1912-1985) registou em Nota Introdutória: «O rapaz de Saba, por sua graça, está imune de certos tabus, responsáveis por transformarem as realidades naturais em monstros absurdos e delituosos. E enquanto para os outros, contaminados pelos tabus, uma experiência destas poderia transformar-se numa determinação irreal (que os poderia tornar em escravos perpétuos duma irrealidade) para o rapaz de Saba ela permanece o que é: um simples encontro humano, que em si é inocente (já que ele não foi corrompido) e não é maléfico.»


quinta-feira, 4 de agosto de 2022

JOSÉ RÉGIO E A HOMOSSEXUALIDADE

José Régio (1901-1969), de seu nome civil José Maria dos Reis Pereira, é um dos mais notáveis escritores da metade central do século XX português. Poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta, novelista, contista, cronista, memorialista e historiador da literatura nacional, foi um dos fundadores da revista "Presença" (marco do Segundo Modernismo Português) e grande conhecedor e coleccionador de arte sacra. 

Reli agora o seu romance Jogo da Cabra Cega, que comprara há cinquenta anos, devido a uma referência de Richard Zenith no seu livro Pessoa - Uma Biografia.

Autor de vasta obra, Jogo da Cabra Cega (1934) é o primeiro romance de José Régio. Foi apreendido pela Censura do Estado Novo logo após a sua publicação, embora tenha sido reeditado várias vezes, ainda durante o regime anterior. A causa da proibição residiu no facto de o livro tratar de delicados problemas morais, tendo como pano de fundo uma questão de homossexualidade, subtilmente disfarçada, mas que, todavia, não passou despercebida aos funcionários incumbidos de zelar pelos bons costumes.

A personalidade de José Régio manifesta-se de forma complexa através da sua obra e a sua relação com a sexualidade nunca foi linear. Aliás, o seu percurso de vida foi sempre caracterizado por uma certa ambiguidade, que não hesitou em expressar nos seus livros. No romance em apreço, o protagonista é de alguma forma um alter ego de Régio e o "contra-protagonista" poderia associar-se a Mário de Sá-Carneiro (interpretado à luz da sua amizade com Fernando Pessoa).

Não por acaso, o protagonista é originário de uma vila e dá explicações a estudantes liceais numa cidade de província. Também Régio, originário de Vila do Conde, foi durante a sua vida, professor do Liceu Nacional de Portalegre. E também frequentou os cafés e fez parte das tertúlias literárias da cidade tal como o protagonista do romance.

Não consta que José Régio fosse homossexual no sentido mais amplo da palavra (não nos referimos aqui às teorias do género que, na altura, nem existiam nem se presumia que pudessem existir), mas é verdade que sempre manifestou uma grande abertura ao problema da homossexualidade. Foi ele o primeiro que, depois de Fernando Pessoa, assumiu, por escrito, a defesa da poesia (homossexual) de António Botto, no livro António Botto e o Amor. A sua obra está cheia de alusões à homossexualidade (veja-se, no livro Fado, o poema "Fado do amor sem nome") e a sua vida de escritor foi uma constante luta entre a virtude e a vício, entre a norma e a transgressão, entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Talvez, por isso, o seu último livro chama-se Confissão dum Homem Religioso (1971, publicação póstuma).

Não se pode inferir do acima dito que Régio fosse homossexual praticante, mas sendo celibatário toda a vida, frequentou sempre ambientes masculinos, desde os alunos do liceu (então havia rigorosa separação de sexos) às tertúlias de café e às amizades literárias, incluindo os jovens milicianos intelectuais que faziam o serviço militar em Portalegre (por exemplo, David Mourão-Ferreira e Eugénio Lisboa, o que não significa que fossem homossexuais): o seu convívio habitual foi essencialmente um convívio com homens. Se, no caso de Fernando Pessoa, um homossexual de espírito (ou monossexual, como o classifica Richard Zenith), há quase a certeza de que não tenha tido qualquer comércio carnal com homens ou mulheres, no caso de José Régio é mais arriscado afirmar-se que o autor de Poemas de Deus e do Diabo tenha sido casto a vida inteira.

O romance Jogo da Cabra Cega, que a Censura se apressou a retirar do mercado, é uma profunda introspecção do ser humano, e também uma incursão na psicologia das profundidades. Num livro que se alonga por mais de 400 páginas, demasiado extenso pois o autor, talvez para melhor clarificar as suas ideias, repete várias vezes, segundo um ou outro ângulo, as suas observações, a homossexualidade é embrulhada em várias roupagens estéticas e reclama-se da autoridade de vultos consagrados.

Em todo o livro é omnipresente o conflito entre o Bem e o Mal, e encontram-se muitos temas e expressões que Régio viria posteriormente a publicar nas suas obras. E, como na maioria dos seus poemas, há sempre vultos que se cosem às paredes nas noites obscuras, num jogo de sedução que apaixona o autor.

Eu, na Casa de José Régio, em Portalegre (1988)

Por curiosidade, transcreve-se esta passagem: «Sabe-se que a sociedade só aos vencidos chama tarados, loucos, anormais, criminosos: Só aos que se desleixam, e vestem mal, e esquecem o protocolo mundano, e evitam antigas relações, e se mostram com sujas companhias, e cometem crimes ridículos ou inábeis... em suma: só aos que não sabem salvaguardar as importantíssimas aparências. Não é esse o maior dos crimes - desprezar a sociedade a ponto de não guardar as aparências?» (pp. 375-6). Sábias palavras!

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NOTA: Indica-se, para quem estiver interessado, o link do importante estudo de Raimundo Henriques "A Confissão de Régio em Jogo da Cabra Cega": https://formadevida.org/rhenriquesfdv11.