domingo, 22 de junho de 2025

HÚMUS

Húmus, de Raul Brandão (1867-1930), é uma obra singular na literatura portuguesa do século XX.

Notável reflexão sobre a condição humana, não tem propriamente um argumento, ou melhor, o seu argumento é a própria vida, a vida e a morte... 

Reli agora o livro na edição de 1917, a primeira, já que na 2ª edição (1926) há capítulos que mudam de título ou de ordem, textos que desaparecem ou são substituídos por outros. 

Insusceptível de  comentar, no sentido tradicional, transcrevo um período e o final de um capitulo:

 * * * * *

«A questão suprema é esta e só esta: Deus existe ou Deus não existe. Se não há Deus, a vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemo-la para satisfazer instintos e paixões. Se Deus não existe, não há força que me detenha. Não há palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido. Questão lógica: pois eu hei-de ir para a cova, para todo o sempre, para toda a eternidade, sem ter extraído da vida tudo o que ela me possa dar, preso a palavras ou a meras questões de forma? Oh! ponhamos a questão, consciência: se Deus não existe tu não és senão um estorvo, meia dúzia de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos enfim a questão com toda a clareza, porque este é o único problema que me importa e que te importa resolver.» (p. 62)

 * * *

« Donde emerge esta figura encharcada de lama, menos a sombrinha, que, apesar da dor, conseguiu atravessar incólume todos os solavancos? A que se atreve depois de ver o filho? Cheguei a ter a visão nítida da montanha de pó acumulada sobre ela, e do desespero imenso para a romper.

Sabe tudo, vai dizer tudo. Tem ali as cautelas do prego e a malinha de mão onde levava escondidos, a enterrar, os fetos de D. Engrácia; só ela pode desvendar os vícios ocultos e o sítio onde a D. Biblioteca tinha a sua fístula. Conhece as misérias e os segredos das famílias correctas. Vai enfim dizer tudo, quando lhe surge o filho que não via há anos. Ei-lo criado de orgulho e côdeas. Submete-se logo, mais coçada e mais gasta, diante daquela obra-prima real e tangível. - Pois sim, pois sim... - Aí tens tu o teu sonho alimentado de côdeas e transformado em realidade. Aí está patente o sonho que sonhaste com inveja, o sonho que sonhaste com fel, aos ais, com a boca tapada, o sonho feito de farrapos, que ocultaste de toda a gente para poder viver. Aí está patente, à luz do sol, como os sonhos dos outros, de ambição e de império, o sonho que ninguém viu sonhar, e que sustentaste à custa da tua própria alma - ó Restituta da Piedade Sardinha!

... - Sejamos lógicos mãe - diz ele - na vida é preciso ser lógico. A mãe criou-me escondido, eu, por meu lado, disse sempre que não tinha mãe. Não hei-de agora que vou casar apresentá-la: - "Aqui está a minha mãe que me criou de esmolas, que me criou escondido".

- Tens razão, filho.

- É que eu sou lógico. Eu agora não hei-de dizer que sou seu filho. Estrago tudo, deito tudo a perder, se apareço com uma mãe que nunca foi minha mãe.

- Tens razão.

- O que é preciso é que a mãe desapareça. O que é preciso é que a mãe, que tem sido lógica deixando-me fazer carreira, não estrague agora tudo. Sem mãe caso rico. Caso com a filha do conselheiro Barata. Até agora podia escondê-la, minha mãe, agora é impossível. Quem soube sacrificar-se para me engrandecer, deve continuar a sacrificar-se. Não lhe peço mais nada: desapareça.

- Desapareço.

- Oh minha mãe, entendamos. Eu não a repilo. Respeito-a até. Quem me dera andar a passear consigo, mostrá-la a toda a gente, ir consigo ao Paço! Mas se não caso, fico pobre toda a minha vida e ninguém faz caso de mim. Desprezam-me. Não entro na política. Se me queria pobre a seu lado, tivesse-me sempre a seu lado.

- Tens razão.

- É o último sacrifício que lhe peço. Quem se tem sacrificado tanto, tem obrigação de se sacrificar mais uma vez. Criou-me, não lhe exijo mais nada. 

- Tens razão, filho

Ela própria tem por aquela obra monumental de egoísmo, o respeito que teve sempre por as pessoas consideráveis. Está ali na sua frente de chapéu lustroso e luvas esticadas. Acrescentem a isto amor. Levou anos a criá-lo escondido, e revê-se embevecida nos cartões em que ele assina Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). De resto não lhe custa nada desaparecer. Não lhe custa mesmo nada. É mais uma ordem a cumprir. Obedece. Obedece, como obedeceu sempre à D. Hermengarda, à D. Teodora, à D. Hermínia, como obedeceu a todas as pessoas ricas e de consideração, como obedeceu á vida que fez dela um trapo. Apenas um minuto e esse minuto chega. Um minuto e mais nada. Nesse minuto a figura contraída reconhece a figura de trapos e de restos. Nesse único minuto de dúvida a D. Restituta vive mil anos e um dia e concentra-se em horror e desespero. É o minuto supremo em que a velha Pois Sim se sente arrastada ao céu e ao inferno, ouve vozes que falam ao mesmo tempo, e ela pronuncia palavras que nunca ousou pronunciar, nem mesmo no recanto mais obscuro da sua alma. - Vi-o! Vi-o! Vi-o! - Salta laré, perirone perirote!... A sacudidela de revolta extingue-se, sai da luta exausta, com todo o peso da montanha em cima, diminuída, reduzida outra vez a pois sim... Esses minutos que passou só e contemplando a ruína de toda a sua vida foram amargos como fel. - Mete o diabo no saco! - Tão cansada e tão gasta que nem as feições lhe reconheço; tão amarga e tão ridícula, tão pois sim, que da D. Restituta só resta uma expressão de dor, de dor mutilada a dizer que sim, sempre que sim - a dizer a tudo que sim.

Depõe a sombrinha imaculada no sítio do costume, aberta para a poupar, e, depois de lhe limpar com extremos de cuidado uma nódoa na ponteira, senta-se à mesa e escreve:

"Últimos conselhos de uma mãe a seu filho. - Filho, fui eu que te criei. Sustentei-te de restos, de pobreza, de humildade. Só pensei em ti: tens, portanto, obrigação de ouvir os últimos conselhos que te dou. Olha que és o meu filho, o filho que criei de dia, de noite, de fome, de obediência e de sonho amargo. Criei-te para que pudesses um dia pertencer às classes elevadas. Por isso sofri, para isso sonhei, para isso desapareço, agora que cumpri o meu destino.

Filho: mente. Às pessoas ricas é preciso mentir sempre e dizer sempre que sim. Deve-se-lhes consideração, deve-se-lhes obediência. Nunca te ligues com os pobres. Para pobres bastamos nós, A pobreza pega-se, não há nada no mundo pior que a pobreza. Tem cuidado com a língua. Pela boca morre o peixe. Nunca digas o que sentes: o que a gente sente é sempre uma inconveniência. Há pessoas que dizem: - Eu gosto que me contradigam. - Foge delas como o Diabo da cruz. O que toda a gente quer é que os outros sejam da sua opinião. Só os ricos têm direito de contradizer os pobres. Um pobre não deve ter opinião. Guarda as conveniências, acima de tudo guarda as conveniências.

O mundo antigo tinha muito de bom; sabendo-se ser agradável arranjava-se lá um cantinho. A morte é indispensável para as pessoas herdarem, e para nos dias de luto se desanojarem os ricos. Foge do pecado. Sê religioso e temente a Deus. Nunca digas mal de ninguém. E habitua-te filho, habitua-te que é o grande segredo da vida. Habitua-te a cumprir os teus deveres para com a sociedade. O dever acima de tudo, o dever de te subordinares para que não te queiram mal. Não te esqueças também dos pequenos deveres de cortesia. Não te esqueças que no dia 21 de Julho faz anos o teu padrinho, nem de deixares cartões de visita às pessoas respeitáveis. Há-as que fingem que não reparam nessas coisas. São as piores, são as que reparam mais. Respeita. Respeita a lei, os superiores, a Igreja, os ricos. Num caso grave da tua vida chega-te ao pé do conselheiro Pimenta e diz-lhe com humildade: - Eu sou filho da Restituta que era prima de V. Exª - E mais nada. Não sejas causa de desordem nem de escândalo. Fala baixinho, e mente, filho, mentir não custa nada. Nunca digas a verdade porque pode vir a saber-se. Deus nos livre da verdade. Mente para seres agradável aos outros e a ti mesmo. E sobretudo, repito-te, diz sempre que sim. Não custa nada dizer que sim. Tua mãe, Restituta da Piedade Sardinha."

Baloiça ao vento, a uma réstea de luar, pendurado numa corda, o cadáver de D. Restituta, que parece dizer pela última vez que sim - para que o filho possa casar com a filha do conselheiro Barata. Baloiça ao vento num sexto andar - esquerdo. Morre ignorada e desconhecida quem toda a vida viveu de côdeas, para lhe assegurar o futuro e a assinatura com brasão e elmo, Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). Da mão crispada ninguém lhe arranca a fotografia de quando ele era pequeno, com o fardamento da Escola Académica, como um guarda-portão em miniatura. A sombrinha lá está aberta ao lado da cama, por causa da humidade, e pela janela, aberta sobre o luar, vêem-se os montes onde o Santo colérico não cessa de latir injúrias sobre a vila agachada de terror.» (pp. 128, 129, 130, 131)

 

  

quinta-feira, 12 de junho de 2025

O REGRESSO DE D. SEBASTIÃO

Em Junho de 2000, passam agora precisamente 25 anos, Maria Moura-Botto publicou O Regresso de D. Sebastião, um romance histórico que glosa a possível sobrevivência de D. Sebastião a Alcácer Quibir, a sua vagabundagem pelo mundo e, finalmente, a sua não morte.

Este livro é mais uma obra das muitas existentes e que constituem variações sobre o Encoberto, aproveitando-se das lacunas e imprecisões dos documentos históricos relativos ao rei português. Todavia, ao construir a sua narrativa, a autora aventurou-se por campos demasiado exóticos, tornando a ficção de tal modo fantasiosa que resulta incredível a história que nos é proposta. A questão reside no facto de um romance histórico, ao evocar circunstâncias históricas, ter de apoiar-se na própria história e não misturar os registos: à história o que é da história e à ficção o que é da ficção. Para isso convém investigar cuidadosamente antes de se começar a escrever.

Dou um exemplo (página 33): com a preocupação de encontrar paixões femininas de D. Sebastião, aspecto desconhecido na personalidade do rei, como bem observou o Professor Queiroz Veloso naquela que é ainda a grande biografia de referência, a autora atribui ao monarca uma inclinação por Juliana de Castro, herdeira da Casa de Aveiro. Ora há aqui uma manifesta confusão. Como já expliquei em comentários a livros anteriores, a donzela a quem D. Sebastião poderia ter dispensado alguma atenção era Joana de Castro, filha do 4º Conde da Feira (o Conde de Sabugosa refere-se ao caso) e não Juliana. A Juliana de quem se falou como uma possível interessada no casamento com o rei era Juliana de Lencastre, filha do 2º Duque de Aveiro, que era o principal interessado no enlace. Mesmo em ficção, importa pois não misturar Juliana com Joana e Castro com Lencastre.

Perpassa também pelo livro uma personagem improvável, William Trevor, dito Jaime Tempestade, um espião ao serviço de Isabel I de Inglaterra. 

A narrativa relativa à vida do rei até à batalha de Alcácer, e mesmo durante a batalha, apesar de imprecisões e confusões, segue nas linhas gerais, a história oficial. A fantasia começa no pós-batalha. É claro que muita gente sustenta que D. Sebastião não morreu em Alcácer, apoiando-se no relato que menciona que, na noite da batalha, alguns homens conseguiram lhes fossem abertas as portas da fortaleza de Arzila por no seu grupo se incluir o rei. Já comentei o caso  em posts anteriores. Tratou-se de um ardil de alguns sobreviventes e o homem embuçado (o pretenso rei) seria posteriormente identificado. Tratou-se de um estratagema para conseguirem que as portas, cuidadosamente fechadas, lhes fossem abertas. Segundo a história oficial, o assunto está encerrado, mas poderá, naturalmente, subsistir uma dúvida.

O que se afigura muito fantasioso é que na sua peregrinação (de arrependimento) após a tragédia de Alcácer Quibir D. Sebastião tenha viajado para a Abissínia, para a Arábia, a Pérsia, a Índia, o Sião em aventuras mirabolantes. Que tenha expurgado o seu misoginismo e se tenha apaixonado pela irmã do Negus, Magdala,  com quem casou e de quem teve um filho, e que, morta esta numa batalha, tenha abandonada a criança para prosseguir as suas aventuras, disfarçado de mercador italiano.

Aventuras que o hão de levar a Veneza, e aqui a história começa a socorrer-se da história (que também já comentei em outros posts) do 4º falso D. Sebastião. Neste caso, o rei é libertado das prisões de Veneza e pretende sair de Itália para pedir ajuda ao soberano francês. Após várias peripécias, semelhantes às descritas por outros autores, acaba por ficar prisioneiro do vice-rei de Nápoles, o Conde de Lemos, que virá a reconhecê-lo dado ele ter identificado objectos oferecidos outrora. Mas como Nápoles depende de Espanha, Lemos é forçado a devolver a Madrid o suposto rei, cuja existência incomoda Filipe III. Propõe-se então enviar a Espanha o calabrês Marco Tulio Catizone que, segundo a história oficial, era realmente o 4º falso D. Sebastião, a quem convence a desempenhar o papel do autêntico D. Sebastião. Catizone é enviado ao Duque de Medina Sidonia, para sossego de Filipe III, sendo executado em Sanlúcar de Barrameda. 

Quanto a D. Sebastião, Lemos remete-o para um mosteiro perto de Ávila, onde passa a residir com o nome de Frei Jerónimo. E onde um emissário do Escorial se desloca periodicamente para saber do seu estado. É nesse mosteiro que, fantasticamente, é visitado um dia por aquela estranha personagem, William Trevor, o espião inglês do princípio do livro, que o consegue exfiltrar do mosteiro. Viajam então, disfarçados, para Lisboa, cidade que D. Sebastião visita incógnito antes de embarcar para Londres, a fim de conhecer novos mundos.

A autora, para a elaboração deste romance dito histórico, recorre obviamente à história oficial, às construções ficcionais já elaboradas sobre o assunto e a uma dose de fantasia pessoal. Mas a articulação de tudo isto é deficiente, resultando numa confusão de situações e de personagens. Tarefa impossível, porque as narrativas ficcionais utilizadas divergem na finalidade não sendo possível harmonizá-las.

Segundo Maria-Moura-Botto, D. Sebastião fica livre e é Catizone o supliciado em Sanlúcar.

Segundo os escritos da Duquesa de Medina Sidonia, é o próprio D. Sebastião que é executado.

Segundo Belard da Fonseca (ver), que explicita devidamente as suas convicções, o prisioneiro de Veneza era, de facto, D. Sebastião que teria sido trocado por Catizone com a finalidade de salvar-lhe a vida.

Com todas estas estórias se construiu o Sebastianismo. 

 

sexta-feira, 6 de junho de 2025

A VIDA EXTRAORDINÁRIA DA 21ª DUQUESA DE MEDINA SIDONIA

As investigações sobre D. Sebastião conduziram-me à Casa de Medina Sidonia e à leitura da biografia publicada em 2022 por Claire Lloyd, The Woman Who Rewrote History - Luisa Isabel Álvarez de Toledo, 21st Duchess of Medina Sidonia

Trata-se de um livro, breve mas muito interessante, sobre Luisa Isabel María del Carmen Rosalía Joaquina Álvarez de Toledo y Maura, Isabel para os amigos, 21ª Duquesa de Medina Sidonia, 17ª marquesa de Villafranca del Bierzo, 18ª marquesa do Los Vélez, 25ª condessa de Niebla e três vezes Grande de Espanha.

A autora não só narra a vida agitada da Duquesa como conta a história dos seus antepassados desde antes da criação do título de Medina Sidonia.

Na impossibilidade de resumir a biografia da Duquesa mencionarei os factos mais importantes.

Nasceu em 1936 e morreu em 2008.

Filha de Joaquín Álvarez de Toledo y Caro, 20th Duque de Medina Sidonia (1894-1955) e de María del Carmen Maura y Herrera (1905-1946).

Avós maternos: Gabriel Maura y Gamazo, 1º Duque de Maura (1879-1963) e Julia Herrera y Herrera, 5ª Condessa de La Mortera (1884-1963).

Casou em 1955 com José Leoncio González de Gregorio y Martí (1930-2008), de quem se separou em 1960 e se divorciou em 2005 (o divórcio só foi legalizado em Espanha em 1981).

Filhos:

1) Leoncio Alonso González de Gregorio y Álvarez de Toledo, 22º Duque de Medina Sidonia (1956--).

2) María del Pilar González de Gregorio y Álvarez de Toledo, 13ª Duquesa de Fernandina (1957--). O título fora reabilitado em 1993 por Juan Carlos e posteriormente extinto em 2012. Foi novamente atribuído por Filipe VI em 2020 a favor de Alonso-Enrique González de Gregorio y Viñamata (1983--), filho do anterior Leoncio Alonso e de sua primeira mulher María Montserrat Viñamata y Martorell e sobrinho de María del Pilar.

3) Gabriel Ernesto González de Gregorio y Álvarez de Toledo (1958--). É o único filho de Isabel que não possui título. A mãe prometera-lhe o Ducado de Montalto (pertencente à família mas que se encontrava vago) desde que ele pagasse os direitos inerentes, o que não aconteceu dado ele não possuir condições financeiras para o encarte.

A Duquesa casou in articulo mortis em 2008 com a sua secretária e companheira de há muitos anos Liliane Dahlmann (1956--), morrendo onze horas depois. Liliane passou a designar-se Duquesa Viúva de Medina Sidonia e preside desde a morte de Isabel à Fundación Casa Medina Sidonia.

O Palácio Ducal de Medina Sidonia fica situado na Plaza de los Condes de Niebla, em Sanlúcar de Barrameda (província de Cádiz). Foi construído em estilo Renascença no século XVI sobre as ruínas de uma fortaleza dos Almorávidas oferecida a Alonso Pérez de Guzmán, dito Guzmán "el Bueno" (1256-1309)  juntamente com o Senhorio de Sanlúcar em 1297. Abriga hoje uma colecção de 6 milhões de documentos (datando desde cerca de 1228 e incidindo especialmente sobre os reinados de Carlos Quinto e de Filipe II) que a Duquesa transferiu em 1962 de um armazém em Madrid onde se encontravam depositados. Constituem, juntamente com uma colecção de obras de arte e antiguidades, o acervo da Fundación Casa Medina Sidonia. O arquivo é considerado o mais importante arquivo privado da Europa relativo aos séculos XV, XVI e XVII.

Foi primeiro Duque de Medina Sidonia Juan Alonso Pérez de Guzmán (1410-1468). O título foi-lhe concedido pelo rei de Castela, Juan II, em 1445, e confirmado em 1460 para a sua descendência ilegítima. 

Foi segundo Duque o seu filho natural Enrique de Guzmán,  cuja mãe, Isabel de Fonseca y Ulloa, era irmã do arcebispo de Sevilha. 

Foi sétimo Duque o comandante da Armada Espanhola que pretendia atacar a Inglaterra, também conhecida por Armada Invencible, Alonso Pérez de Guzmán (1550-1615). Em 1565 ficou noivo de Ana de Silva y Mendoza, então com 4 anos, casando-se em 1572. Esta era filha dos Príncipes de Éboli e Duques de Pastrana, Ruy Gómez de Silva e Ana de Mendoza de la Cerda. O rei Filipe II interessou-se muito por este casamento, tendo sempre havido rumores de que a Princesa de Éboli era amante do rei. 

Foi oitavo Duque o filho dos anteriores, Manuel Alonso Pérez de Guzmán el Bueno y Silva (1579-1636), que casou com Juana Lorenza Gómez de Sandoval y Rojas y de la Cerda, filha dos Duques de Lerma e foi agraciado com a Ordem do Tosão de Ouro. Em 1625, com o título de Capitán General del Mar Océano y Costas de Andalucía, comandou as operações militares contra o ataque que ingleses e holandeses, comandados por Sir Edward Cecil, haviam efectuado a Cádiz. A sua filha Luisa María Francisca de Guzmán y Sandoval casou-se com o Duque de Bragança e futuro rei de Portugal D. João IV.

Foi nono Duque Gaspar Alonso Pérez de Guzmán (1602-1664). Instigado por seu primo Francisco Antonio de Guzmán y Zúñiga, marquês de Ayamonte (e apoiado por seu cunhado, D. João IV,de Portugal), encabeçou em 1641 uma conspiração para promover a separação dos reinos andaluzes de Sevilha, Córdova, Jaén e Granada contra Filipe IV - aproveitando a eclosão da rebelião da Catalunha, Nápoles e Sicília e a guerra portuguesa da Independência - com a intenção de se proclamar Rei da Andaluzia. Tomando conhecimento da tentativa de rebelião, o Conde-Duque de Olivares, Gaspar de Guzmán y Pimentel Ribera, 1º Duque de Sanlúcar e 3º Conde de Olivares, primeiro-ministro de Filipe IV e ainda primo do Duque de Medina Sidonia, mandou chamar à Corte os nobres conspiradores. A falta de apoio da nobreza regional, a falta de colaboração do povo e o atraso dos seus aliados estrangeiros (a Holanda e a França) levaram o Duque a fazer um acordo com o valido, pedindo perdão ao rei e acusando o seu primo de traição. Na sequência de um processo judicial, o marquês de Ayamonte foi decapitado no Alcázar de Segovia em 1648 e o Duque de Medina Sidonia, atendendo à sua altíssima posição, fortuna e relações familiares com o Conde-Duque de Olivares, salvou a vida mas foi condenado ao exílio.

O Ducado permaneceu na Família, até à morte do décimo quarto Duque, Pedro de Alcántara Pérez de Guzmán y Pacheco (1724-1779), casado com Mariana de Silva y Álvarez de Toledo e sem descendência. O título e os bens passaram para seu sobrinho por afinidade José Álvarez de Toledo y Gonzaga (1756-1796), décimo primeiro Marquês de Villafranca del Bierzo, que se tornou décimo quinto Duque de Medina Sidonia e que casou com sua prima María del Pilar Teresa Cayetana de Silva Álvarez de Toledo, décima terceira Duquesa de Alba, que foi imortalizada por Goya. Confluíram assim no casal os dois títulos mais importantes de Espanha: Duques de Medina Sidonia e Duques de Alba, num total de cinquenta e seis títulos nobiliárquicos. Tendo morrido sem filhos, os títulos de Medina Sidonia recaíram no irmão do Duque, Francisco de Borja Álvarez de Toledo Osorio y Gonzaga (1763-1821), que foi o décimo sexto Duque de Medina Sidonia e os títulos de Alba, recaíram no parente da Duquesa, Carlos Miguel Fitz-James Stuart y Silva, sétimo Duque de Berwick e sétimo Duque de Liria, que foi o décimo quarto Duque de Alba.

 O décimo quinto Duque de Medina Sidonia foi um protector das artes e das ciências; o décimo sexto Duque foi um militar de prestígio mas durante a guerra contra Napoleão retirou-se para os seus domínios de Murcia e abraçou a vida política. Casou com Maria Tomasa Palafox y Portocarrero, que foi também retratada por Goya.

Foi décimo sétimo Duque, Pedro de Alcántara Álvarez de Toledo y Palafox (1803-1867), décimo terceiro Marquês de Villafranca, tendo usado este título preferencialmente ao de Duque de Medina Sidonia. Casou com Joaquina de Silva y Téllez-Girón, filha dos Marqueses de Santa Cruz. Notável diplomata, foi um apoiante das pretensões ao trono espanhol do Infante Carlos de Bourbon, por morte de seu irmão Fernando VII, em detrimento da filha deste, que seria a futura Isabel II. Perdidas as lutas carlistas, esteve exilado em Nápoles mas regressou posteriormente a Espanha.

Foi décimo oitavo Duque, José Álvarez de Toledo y Silva (1826-1900), que usou, enquanto seu pai foi vivo, o título de família de Duque de Fernandina. Casou com sua prima Rosalía Caro y Álvarez de Toledo, sendo ambos famosos cavaleiros, o que os tornou favoritos da alta sociedade. Restaurou o Palácio de Sanlúcar, para o qual se mudou, foi senador da província de Cádiz e desempenhou várias missões diplomáticas. Quando Afonso XII morreu em 1885, a rainha Regente, Maria Cristina de Áustria nomeou-o para cargos de prestígio. Como viveu sempre acima das suas possibilidades, contraiu numerosos empréstimos que morreu sem liquidar.

Foi décimo nono Duque, José Joaquín Álvarez de Toledo y Caro (1865-1915),  terceiro filho do anterior, tendo os irmãos falecido antes e sem descendência. Casou com sua prima Rosalía Caro y Caro e interessou-se especialmente pela agricultura. Para pagar as dívidas de seu pai foi obrigado a vender uma parte do património da família. incluindo o palácio de San Sebastián. 

Foi vigésimo Duque, Joaquín Álvarez de Toledo y Caro (1894-1955), que casou em 1931 com María del Carmen Maura y Herrera, descendente de uma das famílias aristocráticas mais ricas de Cuba, o que lhe deu a oportunidade de consolidar as finanças da Casa. Por morte da mulher, em 1946, casou com María Gracia Faria Monteys Robles, sem descendência. Do primeiro casamento, houve uma única filha, Luisa Isabel Álvarez de Toledo, que foi a vigésima primeira Duquesa de Medina Sidonia.

 * * *

Isabel nasceu no Estoril em 21 de Agosto de 1936, onde os seus pais viviam no exílio durante a Segunda República Espanhola. Quando a família regressou a Espanha em 1939, no fim da Guerra Civil, o Palácio de Sanlúcar, que servira de quartel, estava em péssimo estado. A situação social agravou-se com a Segunda Guerra Mundial e a mãe de Isabel recolhia no Palácio os sem-abrigo e cuidava dos feridos, tendo transformado a residência em hospital. Durante a infância, Isabel permaneceu rodeada de pobreza e de privações em contraste com os privilégios e o luxo da sua própria classe social.

O relacionamento de Joaquín com Carmen foi-se deteriorando, até porque ele gastava demasiado e dependia financeiramente da família da mulher. Sendo um mulherengo, bebedor e jogador, nunca foi muito próximo da filha, talvez até pelo facto de o desgostar que o Ducado passasse para uma mulher pela primeira vez na história. Isabel era muito chegada à mãe, que morreu quando ela tinha dez anos. O pai mandou-a então para Madrid para casa dos Maura, seus avós, de quem era a menina dos olhos. Mas Isabel detestou deixar Sanlúcar e sempre pensou em regressar, até por ser fascinada pela história, heráldica e documentos antigos. E foi sempre uma rapariga rebelde, tendo sido expulsa das várias escolas de conventos em que estudou. Nunca completou os estudos, o que não preocupava a avó Julia, especialmente interessada em que ela ficasse apta a conviver socialmente e ser boa esposa e mãe. Além da paixão dos livros teve a paixão das corridas de cavalos. Aos 18 anos foi apresentada à sociedade, no mesmo dia que Pilar de Bourbon (ou Borbón), irmã do futuro rei Juan Carlos I, que conhecera no Estoril. Por essa altura já Isabel se tornara republicana.

O espírito livre e as controversas opiniões de Isabel não a preservaram de um convencional casamento aristocrático. A sua paixão pelas corridas de cavalos proporcionou-lhe o conhecimento de um insinuante e belo cavaleiro, José Leoncio González de Gregorio y Martí, campeão hípico da equipa olímpica de Espanha. Ela tinha dezoito anos, ele era seis anos mais velho. Os avós Maura não aprovaram a escolha (o rapaz tinha já dois filhos ilegítimos) e não era particularmente brilhante. A sua família pertencia a uma pequena nobreza (a casa de La Puebla de Valverde fora criada em 1925) muito abaixo do nível social dos Medina Sidonia. Mas este casamento desigual, que desafiava as convenções, foi também um motivo que levou Isabel a decidir-se. O outro, foi que já estava grávida de três meses. A boda teve lugar em Mortera, em 16 de Julho de 1955, embora Isabel não estivesse verdadeiramente apaixonada. Como ela revelaria mais tarde, já nessa altura sabia que era lésbica e a opção de casar e ter filhos deveu-se fundamentalmente a desejar que houvesse descendência, para a continuidade da linhagem de Medina Sidonia. Apesar de ser uma inconformista nos planos político e religioso, Isabel nunca alardeou a sua qualidade de homossexual, ou porque a homossexualidade em Espanha era um crime (só foi descriminalizada em 1979) ou porque guardava alguma reserva a esse respeito. Todavia, viveu sempre rodeada de jovens secretárias, com quem era suposto manter relações íntimas.

O pai de Isabel morreu cinco meses mais tarde sem testamento e os tribunais declararam-na a única e oficial herdeira da Casa de Medina Sidonia, tendo-se tornado um ano mais tarde 21ª Duquesa de Medina Sidonia, 18ª Marquesa de Los Vélez, 17ª Marquesa de Villafranca del Bierzo e 25ª Condessa de Niebla, três vezes Grande de Espanha. 

O casal teve três filhos, Leoncio Alonso, María del Pilar e Gabriel Ernesto, como se referiu acima.

Isabel não possuía qualquer ideia romântica do casamento, o qual não durou muito tempo. Três filhos de seguida e um marido com quem nada tinha em comum, excepto a paixão pelas corridas hípicas, fizeram o resto. Na realidade, preferia a leitura e o estudo a ter de ocupar-se de crianças. Afirmou mais tarde ter-se afeiçoado especialmente aos filhos quando estes atingiram a idade de manter conversas inteligentes.

Depois da separação, Isabel permaneceu em Sanlúcar e os filhos foram viver com os avós (Gabriel Maura e Julia Herrera) no palacete da Calle Miguel Ángel, em Madrid.  Este abandono dos filhos foi sempre usado como arma contra Isabel para o resto da sua vida, inclusive pelos próprios filhos, que foram enviados para colégios onde sempre arranjaram problemas.

Julia Herrera era uma conservadora excêntrica. Pertencera à Seccíón Femenina da Falange e tomava banho com água mineral engarrafada. Obcecada pela aparência, usava uma viseira preta de plástico para proteger o rosto do sol e fazia-se transportar nas escadas pelos criados porque tinha horror de utilizar o elevador. Detestava o desporto e abominava a ideia de Isabel se lhe apresentar de calças. De acordo com o neto Gabriel tratava as crianças como animais de estimação (ratonzucos). A neta Pilar conta que ela tinha uma obsessão do protocolo e que a instruíra para jamais se sentar no automóvel no lugar da frente ao lado do motorista e para nunca abrir ela mesma a porta do carro.

Finalmente, e contra a vontade da avó, os filhos foram judicialmente entregues à mãe e por esta levados para Sanlúcar, apesar do palácio se encontrar sem as mínimas condições de habitabilidade, excepto conservar as pinturas de Carmen Maura nas paredes. Foram realizadas então as obras indispensáveis e as crianças começaram a conviver com os pobres da vizinhança. A avó não desistiu e obteve uma decisão judicial para os netos lhe serem entregues, considerando que o ambiente não era próprio para o desenvolvimento das crianças. Entretanto, Leoncio, o pai, já separado, obteve a custódia dos filhos em 1988, por entender que a avó se tinha tornado demasiado excêntrica depois da morte do marido e que a convivência com a mãe era indesejável, uma vez que as actividades políticas desta a tinham tornado um escândalo político nacional. Os filhos, então entre os dez e os doze anos, foram levados para casa dos pais de Leoncio, na Calle Zurbano, perto do palácio da avó. 

Quando Isabel se mudou para o palácio de Sanlúcar, que se encontrava decadente e tinha sido posto à venda pelos parentes do pai, esta, utilizando a herança da avó, adquiriu as outras partes da partilha e restaurou o essencial. Depois, e isto é notável, transferiu para o palácio, em 1962, o arquivo da família que se encontrava num armazém de Madrid. Trata-se de seis milhões de documentos, uma das mais importantes colecções de papéis relativos ao período de Carlos Quinto, de Filipe II e da história da Europa dos séculos XV, XVI e XVII, entre os quais, e foi isso que me levou a debruçar-me sobre esta Duquesa, os relativos à não-morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, assunto que já referi em posts anteriores deste blogue. Além disso, recuperou numerosas peças do tesouro da família que se encontravam na igreja de La Merced, anexa ao palácio, nela entrando de pistola em punho. Por esta acção, foi excomungada pelo bispo de Cádiz.

Seguindo os passos da mãe, envolveu-se no trabalho voluntário com as comunidades de camponeses e de pescadores. Entusiasta da reforma agrária, doou uma parte das suas propriedades às cooperativas rurais, até possuir pouco mais do que o palácio. As autoridades consideravam-na, então, excêntrica mas inofensiva, na melhor tradição aristocrática espanhola. Mas a sua crítica aberta ao regime de Franco e a sua adesão aos ideais republicanos e à Revolução Cubana, levaram-nas a rever a opinião. Assim, apoiou a luta dos trabalhadores das vinhas e ajudou-os a promover uma greve que estes ganharam. 

Organizou uma cooperativa para os pescadores de Sanlúcar lutarem pelos seus direitos e ajudou ao estabelecimento das Comisiones Obreras dos agricultores locais. Em 1964, foi condenada por encabeçar uma manifestação de pescadores grevistas, mas recusou-se a pagar a coima. 

Durante os anos sessenta do século passado dividiu o seu tempo entre Sanlúcar e Madrid, onde estabeleceu contactos com os vários grupos de extrema-esquerda que se opunham a Franco. Escreveu o seu primeiro romance, La Huelga (A Greve), descrevendo a greve dos vinhateiros, livro que foi proibido em Espanha, mas editado, em espanhol e francês, por uma editora de Paris. O seu segundo romance, La Base, trata das consequências do estabelecimento de uma base militar no bem-estar da população local. Foi publicado em França pela Grasset em 1971, quando Isabel estava no exílio. É uma ficção facilmente identificável com o que aconteceu em Rota, pequena aldeia de pescadores perto de Cádiz, onde o americanos instalaram a maior base naval e aérea existente em Espanha. A sua criação decorreu do Pacto de Madrid de 1953, entre Franco e os Estados Unidos, que permitiu a estes a construção de quatro bases militares em solo espanhol em troca de ajuda financeira e a entrada da Espanha nas Nações Unidas (1955) e no Fundo Monetário Internacional (1958). O último romance da trilogia foi La Cacería (A Caça), editado pela Grijalbo em 1957, que descreve o poder ilimitado e a hipocrisia moral exercidos pela decadente classe dirigente sobre os rendeiros e trabalhadores da Andalusia. 

Isabel escreveu ainda mais dois romances: La Ilustre Degeneración (1997), inspirado numa série de crimes cometidos nos anos 1990s e evidenciando a falta de correlação entre a patologia criminal e a classe social e Presente Infinito (1998), sobre o período da transição em Espanha do fascismo para a democracia. O livro Palomares: Memoria, baseado nos testemunhos de oitenta pessoas afectadas pelas radiações após um incidente nuclear decorrido do choque de dois aviões americanos (1966), banido por Franco em 1968, foi finalmente publicado em 2002. O livro Mi Cárcel (A Minha Prisão), uma compilação de cartas e artigos de jornais publicados entre 1969 e 1970, foi editado pela Harper & Row (New York) em 1972 e levou à introdução de melhoramentos nas condições das prisões espanholas. Há uma nova edição (2020) estabelecida por uma parente distante de Isabel, Soledad Fox Maura, professora de história espanhola contemporânea no Williams College, Massachussets.

Isabel também escreveu numerosos artigos para jornais e revistas francesas, incluindo "Le Monde" e "Libération", e publicou onze obras históricas baseadas no material dos arquivos de família.

Após o acidente de Palomares (1966), o pessoal americano da base removeu parte do solo radioactivo mas deixou o terreno impraticável para cultivo. Só em 2015 o governo dos Estados Unidos concordou em pagar o remanescente do solo contaminado mas o acordo não foi ratificado pelo Congresso até hoje. Franco proibiu as notícias sobre o caso, com receio dos turistas desertarem o local e mesmo o ministro do Turismo, Manuel Fraga Iribarne tomou banho com a família no mar vizinho, assegurando que a zona era segura. Quando soube o que acontecera, Isabel acorreu a Palomares e, usando os seus títulos nobiliárquicos, conseguiu ultrapassar o cordão de segurança e entrevistar os aldeões. Regressando a Madrid, descreveu a situação a uma rádio francesa e iniciou uma campanha internacional exigindo compensações para os trabalhadores. Em consequência, após a marcha popular de 1967 Isabel foi presa e julgada, negando em tribunal militar que tivesse participado na manifestação e que apenas outros usaram o seu nome. O inspector do Conselho de Energia Nuclear confirmou que não havia qualquer ameaça de radioactividade para o povo de Palomares.

O tribunal considerou Isabel culpada e condenou-a a treze meses de prisão. A sua tia Julia, irmã de sua mãe Carmen, utilizou os seus importantes conhecimentos sociais para a sua libertação, mas Franco não cedeu. Isabel foi conduzida para a prisão de Ventas, na zona de Madrid, tendo sido transferida algumas semanas mais tarde para a prisão de Alcalá de Henares. As condições eram péssimas mas ela apreciou a companhia dos outros presos, que incluíam burlões de colarinho-branco, envenenadores, prostitutas e dissidentes políticos. Disse mais tarde que foi uma oportunidade para ombrear com os 132 mais brilhantes criminosos do país. Como ajudou a leccionar outros detidos,  a pena foi reduzida para oito meses. Enquanto esteve na prisão a tia Julia ocupou-se das crianças, que a visitavam mensalmente. 

Foi durante este período que Isabel ganhou o nome de "Duquesa Vermelha", que aliás rejeitou. Quando lhe foi perguntado, em 2007, o que pensava dessa designação, respondeu: «If "Red" refers to dialectical materialism then yes, that is my way of seeing the world, of working, of being. But in no other sense. I conform to no orthodoxy.» (p. 55)

Após o cumprimento da pena, e estando em curso outro processo por ofensas contra os censores de imprensa, o que lhe valeria mais um mês na prisão, Isabel resolveu abandonar o país, tendo-se exilado em França. Aderiu à Frente de Libertação Popular anti-Franco (FELIPE) e foi recebida por outros exilados incluindo os líderes dos partidos de esquerda, dos sindicatos e do movimento separatista basco. Foi mesmo convidada para jantar numa loja maçónica. Vivia num pequeno sótão na Rue Descartes, no Quartier Latin, por onde passaram  muitos dos que se tornariam os políticos espanhóis da era pós-Franco. Conviveu também com vários intelectuais franceses, entre os quais Simone de Beauvoir e Jean Cocteau. Durante o período de exílio, foi convidada por grupos de esquerda a visitar a Grã-Bretanha, Suécia, Bélgica, Suíça, Alemanha e Canadá. No seu ensaio Sin intermediarios, questionou-se porque eram as sociedades incapazes de se defender das agressões políticas e económicas a que eram submetidas. Os amigos bascos convidaram-na a instalar-se em Hasparren (a região basca de França), onde se encontravam muitos refugiados espanhóis que pertenciam à ETA (Euskadi Ta Azkatasuna), movimento que emergira nos anos 1960s. Comprou mesmo uma casa de campo, mas as suas ligações à ETA tornaram-na objecto de vigilância policial. Os amigos de Isabel não pertenciam à ala violenta da ETA, embora ela nunca tivesse condenado abertamente alguns crimes. Todavia, quando foi assassinado o político basco conservador Miguel Ángel Blanco em 1997, Isabel juntou-se a uma manifestação nas ruas de Sanlúcar protestando contra o seu assassinato.

Quando Franco morreu em 1975 e o presidente do Conselho, Adolfo Suarez declarou uma amnistia, Isabel regressou a casa. O seu filho mais velho, Alonso, tratou dos preparativos, tendo sido recebida à chegada por Gabriel e Pilar (18 e 19 anos respectivamente), estando Alonso então a prestar serviço militar obrigatório. Contam os filhos que, após seis anos de exílio, o seu aspecto físico mudara consideravelmente. Começara a fumar e a beber em excesso e a descuidar-se com a sua apresentação física. 

Em 1977, Isabel passou a viver permanentemente em Sanlúcar, na companhia dos filhos Alonso e Gabriel. Pilar, que não desejava abandonar a vida social, permaneceu em Madrid. O Palácio foi remodelado e considerado monumento de interesse cultural. Isabel instalou os quadros e tapeçarias da família e iniciou a catalogação dos seis milhões de documentos do arquivo, tarefa que demorou dez anos e cuja catálogo compreende vinte volumes. Criou duas escolas no Palácio, uma para crianças e outra para adultos. E instituiu bolsas para os melhores alunos. Distribuiu também terrenos aos mais pobres para construírem casas. 

Neste período a vida no Palácio era no mínimo extravagante. 

«In 1982 Miguel Ángel Arenas, a well-known musical director and close friend of Alonso's, was invited by Isabel to spend the summer at the Palace. He paints a vivid and somewhat seedy picture of life there, with strangers coming and going, drinking, promiscuity, male prostitutes working under the Palace wall - a verictable Liberty Hall. The only prohibition was the use of illegal drugs,» (p. 64)

 «There was never enough food, according to Arenas - Isabel lived mainly on fried eggs - and there was no money for soap or detergent, so the sheets were never changed and plates were washed in dirty water. Gabriel wore second-hand clothes given to him by his elderly uncle, and Isabel often wandered around in her underwear. Nonetheless there was no shortage of amontillado sherry and cognac, which everybody drunk round the kitchen table in the evenings while Isabel told tales of her life in Paris, boasting of using her grandmother's inheritance to help finance the May '68 Revolution, and of how as a child in Estoril she had teased her playmate the future King Juan Carlos mercilessly.» (p. 64)

O filho, Alonso, casou com uma "Catalan nobody", María Montserrat Viñamata, em Sanlúcar, em 12 de Dezembro de 1983. 

«One of the witnesses in the bride's party was Liliane Dahlmnn, a young German historian then living in Barcelona. She had been warned about Isabel by María's family and advised not to speak to her. But when they met at the supper before the wedding Liliane was completly captivated by the diminutive 47-year-old duchess with her combination of historical knowledge, philosophical wisdom and irreverent wit.

The attraction was mutual. Isabel went to Barcelona to see her again and invited her to come and stay at Sanlúcar. Liliane accepetd, initially intending to stay for just a few months. However she was soon installed at Isabel's "secretary" and Esperanza, a popular local girl, was sacked without compensation. This caused a lot of bad feeling in the town, and Esperanza's family and neighbours arived at the Palace one night with flaming torches intent on burning it down.

Her relationship with Liliane marked a turning point in Isabel's life. She gave up her wild Bohemian lifestyle and started wearing more conventional clothes - she still wore trousers, though of a style more appopriate for her age. Her attempt to become respected, if not respectable, was mainly to impress her impeccably polite and well-turned out lover. But she also realised how badly she had alienated the townspeople over the dismissal of Esperanza, and possibly she had just enough of acting role that went against her true nature.

Liliane remained loyal to her lover and mentor to the end, eulogising her personal integrity and her incredible capacity for hard work. The duchess spoke through her writing, Liliane told Iñigo Ramírez, but she had always been anti-establishment and therefore the establishment, in the form of universities and publishers, closed its doors on her. In their early days together they received many social invitations which Isabel felt obliged to accept even though they often put her in bad humour. With her acute nose for bullshit and zero tolerance for dishonesty and hypocrisy, she often ended up giving offense. Liliane persuaded her that it was not only acceptable but sensible to turn down the invitations, and their social life was gradually wound down.» (pp. 67-68)

Reinstalada definitivamente em Sanlúcar, Isabel iniciou a investigação e catalogação dos seis milhões de documentos do Arquivo Ducal de Medina Sidonia. Estes documentos originais remontam a datas anteriores a 1228 e constituem o maior arquivo privado de Espanha e possivelmente da Europa. Tratam não só de pormenores das propriedades e bens da família, como das suas ocupações e títulos, relações públicas e privadas e dos seus lazeres. É uma incomparável fonte de informação sobre a Idade de Ouro de Espanha (financiada pelo ouro das colónias da América), especialmente durante os reinados de Carlos Quinto e de Filipe II. 

Também nesta matéria Isabel foi uma figura controversa. Na sequência das suas investigações, publicou mais de vinte obras históricas, ao longo de vinte anos, apresentando versões dos acontecimentos que contradizem a versão oficial espanhola. Por este facto, alienou as simpatias da comunidade académica, em especial da Real Academia de la Historia, que nunca a recebeu por considerar as suas proposições heréticas.

A autora do livro menciona cinco das suas teses que provocaram maior celeuma: a conspiração para a independência da Andalusia foi inventada, D. Sebastião não morreu em Alcácer-Quibir, a Invencível Armada não pretendia conquistar a Inglaterra,  Colombo não descobriu a América e Alonso Pérez de Guzmán (Guzmán el Bueno), o pai fundador da Casa de Medina Sidonia, era mouro. 

Vejamos:

- Em 1641 verificou-se  uma conspiração de aristocratas da Andalusia visando a secessão de Espanha daquele território e a proclamação da independência, a exemplo do que se verificara em 1640 em Portugal. Entre os conspiradores figurava o 9º Duque de Medina Sidonia, Gaspar Alonso de Guzmán e o seu primo Francisco Manuel Silvestre de Guzmán y Zúñiga, 5º marquês de Ayamonte. O Duque, que estava a atravessar um período de dificuldades financeiras, foi convocado para combater a rebelião portuguesa do seu cunhado o rei D. João IV, de Portugal, que era casado com uma irmã daquele, D. Luisa de Guzmán. A sua acção foi, todavia, ineficaz, levando Filipe IV a concluir que existira um acordo entre ambos. Tornou-se evidente que existira uma conjura para proclamar a independência da Andalusia e o Duque como rei. Intimado a comparecer em Madrid, Gaspar confessou a tentativa ao Conde-Duque de Olivares (que ainda era seu primo), primeiro-ministro e favorito do rei. O Conde-Duque asseverou que usaria da sua influência para obter o perdão mas acabou por revelar a verdade ao rei. Dada a sua altíssima posição, o Duque conseguiu evitar a sentença de morte (outrotanto não aconteceu ao primo, que foi decapitado) mas foi exilado da Corte e banido da Andalusia. Em Historia de una conjura (1985), a sua principal obra histórica, Isabel interroga-se quanto à verdadeira natureza da rebelião e ao papel do seu antepassado, afirmando não ter havido qualquer conspiração e tudo não ter passado de uma invenção do Conde-Duque de Olivares, que tinha grande inveja de pertencer a um ramo menor da Casa de Medina Sidonia. Afirma ainda que o fracasso do exército espanhol na luta para conter a rebelião de Portugal se deveu à fraqueza do mesmo, que dispunha de apenas 3 000 homens. É verdade que as cartas trocadas entre o rei e o Duque, em 1640 e 1641, e existentes no Arquivo, comprovam esse facto.

- No seu livro Felipe II y Portugal (s/d), Isabel especifica o relacionamento das relações daquele monarca com Portugal antes e depois do mesmo obter a coroa portuguesa. Refere a figura de D. Sebastião, a sua cruzada contra os mouros, a expedição a África e a batalha e Alcácer Quibir. Alude às lendas de cavalaria, e a heróis semelhantes como o Rei Artur, Carlos Magno e Guilherme Tell. Regista a História que Filipe II recebeu dos marroquinos os restos mortais de D. Sebastião, que foram sepultados nos Jerónimos. Baseada nos documentos encontrados no seu Arquivo, Isabel afirma que o verdadeiro D. Sebastião foi mandado executar em Sanlúcar, em 1603, pelo 7º Duque de Medina Sidonia, Alonso Pérez de Guzmán, por mandado do rei de Espanha, Filipe III. Sobre a sobrevivência de D. Sebastião à batalha de Alcácer Quibir publicámos aqui, um post, em Fevereiro passado.

- Em 1588, a esquadra espanhola, comandada pelo 7º Duque de Medina Sidonia, Alonso Pérez de Guzmán, navegou para Inglaterra com o propósito de destronar a rainha Isabel I e pôr fim aos ataques dos corsários privados ingleses (como Francis Drake e outros piratas) aos navios mercantes espanhóis no Atlântico e no Índico. A missão da frota era transportar o exército, comandado pelo Duque de Parma, que atravessaria o Canal da Mancha a partir da Flandres. A esquadra, que ficou conhecida como a Invencível Armada, foi avistada pelos ingleses a partir da costa da Cornualha, mas devido à maré cheia a frota britânica ficou encurralada em Plymouth. Em vez de aproveitar a oportunidade para atacar os navios ingleses, o Duque de Medina Sidonia navegou para leste alegando que tal ataque tinha sido expressamente proibido por Filipe II. Quando a maré vazou, os ingleses com um vento favorável e uma mobilidade superior, atacaram a Armada com o seu potencial de fogo. Em vez de procurar refúgio no próximo Estreito de Solent e reagrupar os navios, o Duque de Medina Sidonia avançou para o mar alto na direcção de Calais, onde se propunha aguardar o Duque de Parma. Então os ingleses atacaram, parte dos navios espanhóis foi destruída e a única opção deixada a Medina Sidonia foi navegar de regresso a Espanha, sendo a frota atingida agora não pelo fogo dos britânicos mas por severas tempestades. Além dos mortos em combate, muitos homens sucumbiram à fome, à sede e à doença. Ainda que Filipe II nunca o culpasse explicitamente pelo fracasso da expedição, o Duque de Medina Sidonia tornou-se objecto de escárnio. No seu livro Alonso Pérez de Guzmán, General de l'Invencible (publicado pela Universidade de Cádiz em 1995), uma biografia do seu antepassado baseada na correspondência deste com Filipe II, Isabel afirma que a Armada estava pronta para zarpar mas o rei não pretendia conquistar a Inglaterra. O custo de mantê-la como colónia teria sido irrealístico quando as forunas espanholas estavam rapidamente a declinar. Mas em vez de perder a face cancelando a missão, Filipe fez o possível para que a mesma falhasse. Isso explicar-se-ia pelo facto do rei ter nomeado o 7º Duque para a comandar, sabendo que o mesmo, de indiscutível lealdade à Coroa, era completamente inexperiente na matéria. Era preciso alguém que obedecesse literalmente às suas instruções. É evidente nos arquivos que o Duque não só preveniu o rei da sua inexperiência para comandar a frota como manifestou a sua apreensão quanto à probabilidade de êxito do empreendimento. Após ter chegado ao Canal da Mancha, escreveu continuadamente a Filipe sobre o facto de os navios não serem adequados (muitos eram navios mercantes), do equipamento ser escasso (falta de botes para desembarque), da escassez de provisões de água e mantimentos a bordo e da inexperiência da maior parte dos homens, muitos dos quais não tinham uniformes nem calçado. Essas cartas transmitem um retrato muito diferente da versão oficial espanhola que menciona uma frota altamente equipada. O Duque terá feio o melhor que podia com o que tinha ao seu dispor e não merecceria o desprezo a que foi votado. 

- Alguns documentos encontrados nos arquivos convenceram Isabel que o continente americano fora descoberto muito antes da viagem de Crsitóvão Colombo em 1492, pois marinheiros árabo-andaluses ou marroquinos, e possivelmente cavaleiros templários, negociavam já no portos do Brasil, Guiana e Venezuela. Papéis existentes nos arquivos, muito anteriores a 1492, referem plantas indígenas americanas, como o milho e a pimenta, além da menção a rios e costas não identificáveis na Europa ou em África. Procedendo a cálculos meticulosos, Isabel concluiu que o elevado número de cavalos e gado a pastar nas planícies da Argentina quando os espanhóis estabeleceram uma colónia permanente em Buenos Aires não seria possível se todos descendessem dos vinte ou trinta animais deixados pelo primeiro grupo de colonos europeus alguns anos mais cedo. No seu livro No fuimos nosotros (derrotero de Poniente): del tráfico transoceánico precolombino a la conquista y colonización de América, publicado em 1992, no 500º aniversário da viagem de Colombo, e em  África versus América. La fuerza del paradigma, publicado em 2000, Isabel desenvolveu as suas teses, que a tornaram popular na comunidade islâmica de Espanha, sendo estes livros traduzidos posteriormente para árabe. Há outros historiadores que apoiam a narrativa dos contactos pré-colombianos. O doutor Fuat Sezgin, professor emérito de História da Ciência Árabo-Islâmica na Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, sustenta que marinheiros muçulmanos chegaram à América cerca de 1420, citando como evidência a inscrição num mapa e o facto da grande precisão longitudinal dos primeiros mapas não poder ser alcançada usando a tecnologia de navegação ocidental. Também o doutor Ivan van Sertima, professor de Estudos Africanos na Universidade Rutgers e autor de They Came Before Columbus, identificou documentos chineses dos séculos XII e XIII que se referem a comércio árabo-muçulmano para lá da costa do Atlântico e da África Ocidental. O arqueólogo e linguista neo-zelandês Barry Fell identificou palavras, símbolos e mesmo esculturas de pedra em comunidades nativas americanas datando dos tempos pré-colombianos. A data da primeira viagem de Colombo - 1492 - coincidiu com a Reconquista Cristã de Granada e a expulsão (ou conversão forçada) dos mouros da Península Ibérica, efectuada pelos Reis Católicos Fernando e Isabel e é altamente simbólica na história de Espanha.

- O último tema controverso sustentado por Isabel, e calorosamente acolhido pela comunidade islâmica de Espanha, foi o de considerar que Alonso Pérez de Guzmán (conhecido por Guzmán, el Bueno), o pai fundador da Casa de Medina Sidonia, herói do cerco de Tarifa e de muitas outras batalhas travadas pelos espanhóis cristãos contra as forças muçulmanas era, de facto, um muçulmano. O que equivale a dizer, na história de Inglaterra, que Alfredo, o Grande foi realmente um viking. O rei Sancho IV, filho de Alfonso X, concedeu-lhe o título de Senhor de Sanlúcar de Barrameda. Um seu descendente, Juan Alonso Pérez de Guzmán, foi o 1º Duque de Medina Sidonia. É consensual em Espanha que Guzmán foi um nobre cristão e um valoroso soldado nascido em León em 1256 e que morreu em Gaucín (Málaga) em 1309. Todavia, Isabel pretende que ele veio de Fez, no actual Marrocos, com o nome de família de Othman ou Quzman, tendo chegado a Espanha como agente do sultão mérinida para comprar terras na costa. Ter-se-ia convertido mais tarde ao cristianismo e oferecido os seus serviços ao rei de Castela como mercenário. Afirma mesmo ter encontrado referências a Guzmán feitas pelo rei, tratando-o como seu "vassalo", um termo usado para os não-espanhóis. Existe também uma autorização devidamente assinada concedendo-lhe o direito de exportar trigo para "o outro lado do mar, donde ele veio" (isto é, para Marrocos, onde não havia trigo). Até ao século XIV, ele é referido em versos populares como "el perro moro" - o cão mouro. Acrescenta Isabel que a sua mulher, mais do que uma rica herdeira cristã escolhida para ele por Alfonso X, era uma judia. Em documentos antigos o seu nome está escrito como María Alphon, um nome judeu. Guzmán obteve autorização so sultão de Fez para casar com ela e três dos seus cinco filhos nasceram em Marrocos. Quanto ao facto do seu filho ter estado nas mãos do irmão do rei Juan durante o cerco de Tarifa, era uma prática habitual dos vassalos do Sultanato de Fez deixar ficar os seus primogénitos como reféns, sabendo-se que Juan e os mérinidas eram aliados naquele tempo. Isabel acreditava que a Casa de Medina Sidonia, como as outras casas nobres de Espanha, tivera reescrita a sua história no século XVI para remover dos registos da época quaisquer traços das suas origens étnicas, numa altura em que a Inquisição espanhola estava ocupada em limpar a terra dos vestígios muçulmanos e judaicos.

A capacidade de Isabel como historiadora não é consensual na comunidade científica e a Real Academia de la Historia nunca a convidou para se tornar seu membro, considerando-a amadora e ridicularizando mesmo algumas das suas teorias. O doutor Alfonso Franco, professor de História Medieval na Universidade de Cádiz, e que passou três anos investigando nos arquivos da família, achou-a encantadora, inteligente, generosa e imensamente trabalhadora mas admitiu que lhe faltava formação e a metodologia necessária para interpretar convenientemente os documentos. O director-geral del Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministério da Cultura de Espanha, Rogelio Blanco, ouvindo dizer que o arquivo de Medina Sidonia estava em péssimo estado, e que fora planeado transferi-lo para Portugal ou vendê-lo aos Estados Unidos, deslocou-se ele mesmo a Sanlúcar. Blanco entendeu-se perfeitamente com a Duquesa, achou-a racional, disciplinada, séria, filantrópica, com uma aguda consciência social e politicamente astuta. Ela lutou com unhas e dentes para preservar o arquivo e com esse fim chegou mesmo a vender alguns bens pessoais. E aperfeiçoou-se, fazendo um curso de dois anos na Escuela de Documentadores. Depois, o Ministério ajudou a Fundação na digitalização de diversos documentos e apoiou iniciativas culturais para angariar fundos. 

Isabel esteve sempre determinada na ideia de que o arquivo único da sua família não deveria ser alienado ou dispersado. Assim, decidiu criar a Fundación Casa Medina Sidonia como entiade legal, assegurando o futuro do Palácio, o arquivo e todos os seus tesouros artísticos. Quando Liliane Dahlmann se mudou para o Palácio em 1984 os seis milhões de documentos já tinham sido catalogados, exceptuando-se uma pequena secção que a segunda mulher do pai de Isabel enviara para o Archivo General de Simancas (Valladolid) e que, apesar dos esforços de Isabel, nunca regressou a Sanlúcar. Isabel e Liliane necessitavam de fundos para avançar com o projecto da Fundação e nesse sentido estabeleceram contactos com várias entidades incluindo a Junta de Andalucía, mas não receberam assistência financeira. Tiveram então a ideia de abrir uma estalagem e cafetaria para obter dinheiro; todavia, o Palácio não possuía aquecimento ou televisão nem tinha os mínimos requisitos de conforto. Além disso, existiam já muitas famílias habitando na residência e os jardins assemelhavam-se a um depósito de lixo. A opção que se apresentou a Isabel foi a venda de alguns activos da família, como o apartamento de Madrid onde vivia Gabriel, investindo o dinheiro na reparação e transformação do Palácio. A estalagem e a cafetaria começaram a gerar algum rendimento e com a colaboração do Ministério da Cultura foi possível realizar eventos no Palácio e instalar uma pequena editora que pudesse imprimir e vender os livros de Isabel. A Fundación Casa Medina Sidonia foi oficializada em 1991, tendo Isabel como presidente e Liliane como secretária, e um conselho de administração para assegurar os objectivos desta entidade. Alonso foi um dos administradores originais mas suspendeu funções quando a sua mãe recusou o pedido para que todos os contactos com a Junta de Andalucía passassem pela sua aprovação. Segundo Isabel, os filhos tinham sido favoráveis à Fundação até Alonso ter casado. Contudo, a sua mulher queria sempre mais dinheiro. Ele até poderia vir a ser presidente da Fundação se tivesse convencido a mãe de que partilhava os seus valores, o que nunca aconteceu. Note-se que Alonso chegou mesmo a criar uma Fundação na Suíça com a intenção de transferir para lá os arquivos existentes em Espanha. 

Quando Isabel morreu em 2008, Liliane, agora Duquesa Viúva de Medina Sidonia, tornou-se presidente vitalícia da Fundação. Por sua morte, a responsabilidade da direcção passará para o Ayuntamiento de Sanlúcar. 

Em Julho de 2000, Isabel, acompanhada de um grupo de muçulmanos espanhóis visitou o rei Muhammad VI de Marrocos com a finalidade de apresentar o seu livro África versus América. La fuerza del paradigma. Conversaram sobre história, linguagem, política, educação e problemas dos muçulmanos na Espanha dos nossos dias. Em Novembro desse ano foi convidada pelo International Press Club de Madrid para o lançamento oficial do livro, alegando então que "the business with Columbus is no more than a continuation of a movement which began with Alfonso X 'El Sabio' to take control of the goldmines in the Americas, in competition with Portugal and other nations." Em 2003, concedeu uma entrevista à televisão, em conjunto com a UNED  (Universidad Nacional de Educación a Distancia), com o título La Señora de Sanlúcar, onde aparece trabalhando no computador e rodeada pelo arquivo. Apareceu também no documentátio da TV britânica When the Moors Ruled in Europe, em que o apresentador Bettany Hughes mostra documentos do arquivo sobre as origens de Guzmán 'El Bueno'. 

Isabel nunca pertenceu a um partido político mas nutria uma certa admiração pelo primeiro-ministro José Luis Rodríguez Sapatero, embora não aprovasse a sua proibição de fumar nos lugares fechados. Foi naturalmente anti-franquista, antipatizava com Juan Carlos, um antigo conhecido da sua passagem pelo Estoril, mas recebeu das mãos de Filipe VI, em Toledo, a medalha de ouro de Mérito em Belas Artes do Ministério da Cultura de Espanha.

Enfraquecida por anos de cigarros sucessivos e noites sem dormir, chegando a pesar apenas 37 kg, contraiu uma pneumonia em cujo tratamento foi revelado um cancro, apenas alguns dias depois do seu antigo marido ter sucumbido nas mesmas condições. Isabel, moribunda, recusou-se a receber os filhos Pilar e Gabriel e deu instruções para que lhes fosse negada a entrada no Palácio após a sua morte. Mas ainda se despediu do filho Alonso, herdeiro do título. Como já escrevi, poucas horas antes de morrer, em 7 de Março de 2008, Isabel casou com a sua companheira de vinte e cinco anos, Liliane, beneficiando da lei de Zapatero de 2005, que legalizou os casamentos de pessoas do mesmo sexo. A natureza das suas relações era de há muito tempo conhecida dos amigos e da família, mas o casamento chocou a aristocracia espanhola mais conservadora. Apesar do seu antigo ateísmo, Isabel pediu um funeral de rito católico e as suas cinzas foram depois espalhadas no jardim do Palácio. 

Após a morte de Isabel, a Municipalidade de Sanlúcar declarou três dias de luto e o Governo de Cádiz concedeu-lhe postumamente o título de Hija Adoptiva (Filha Adoptiva) da província.

JULGO TER REGISTADO OS ASPECTOS MAIS IMPORTANTES DA VIDA DESTA EXTRAORDINÁRIA DUQUESA. 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

ESCORIAL

O escritor húngaro Miklós Szentkuthy (1908-1988) escreveu, além de outros livros, o monumental Breviário de Santo Orfeu, em dez volumes, iniciado em 1939. Os volumes foram reeditados em obra completa entre 1973 e 1984.

A composição do Breviário de Santo Orfeu (Szent Orpheus breviáriuma) é a seguinte:

Tomo I (1973), incluindo: Volume 1 - Marginalia on Casanova; Volume 2 -  Black Renaissance; Volume 3 - Eszkoriál; Volume 4 - Europa minor

Tomo II (1973), incluindo: Volume 5 - Cynthia; Volume 6 - Confession and Puppet Show; Volume 7 - The Second Life of Silvester II

Tomo  III (1974), incluindo o Volume 8 - Kanonizált kétségbeesés [Canonized Desperation]

Tomo IV (1984), incluindo o Volume 9 - Véres szamár [Bloody Donkey]

Szentkuthy morreu sem ter concluído o Volume 10, In the Footsteps of Eurydice, de que foram publicados postumamente fragmentos em 1993.

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Li agora Escorial, que presumo ter sido traduzido para português da versão em língua italiana. Poderíamos classificá-lo como romance-catedral, construído em torno de Francisco Bórgia (São Francisco de Borja) e nele surgem as mais diversas figuras do seu tempo e do nosso.

Comecemos por traçar a genealogia do famoso Santo, e não menos notável político, que não é descrita no livro a não ser por referências esparsas.

Francisco de Borja y Aragón (1510-1572), 4º Duque de Gandía e Grande de Espanha, era descendente directo de Rodrigo Borgia (Rodrigo de Borja), que foi o Papa Alexandre VI, e da amante deste, Vannozza Cattanei. O Ducado de Gandía foi recriado em 1483, por Fernando II de Aragão, a favor de Pedro Luis de Borja (Pier Luigi de Borgia) fiho do então Cardeal Rodrigo Borgia.

Por conveniência de uniformização do apelido (Borja, Bórgia, Borgia), passarei a usar Borgia.

Pedro Luis de Borgia foi então o 1º Duque de Gandía, sendo irmão dos célebres Cesar Borgia e Lucrezia Borgia. Tendo morrido prematuramente sem descendência, o título passou para seu irmão Juan Borgia, que casou com María Enriquez de Luna e morreu assassinado. Sucedeu-lhe como 3º Duque seu filho Juan de Borgia y Enriquez de Luna que casou com Juana de Aragón y Gurrea. Foi filho destes Francisco de Borgia y Aragón (São Francisco de Borja) que casou com Leonor de Castro Mello y Meneses e foi o 4º Duque de Gandía e Vice-Rei da Catalunha. O Santo era, pois, bisneto do Papa Alexandre VI. 

Ao longo do livro perpassa, em fundo, a sombra imperial de Carlos Quinto, que era primo em segundo grau do Santo. 

Carlos Quinto era neto de Fernando II de Aragão, o Católico, por sua mãe, Joana a Louca; Francisco de Borgia era bisneto de Fernando II, pois sua mãe, Joana de Aragão, era filha ilegítima de Alonso de Aragão, filho também ilegítimo de Fernando II.

O livro é um monumento barroco em que aparecem as mais diversas figuras. Citemos, por exemplo, os músicos Alban Berg, Lutoslawski, Shostakovich, Palestrina, Pierre Boulez. 

Também, com insistência, Vannozza Cattanei e a sua filha Lucrezia Borgia, e Filipe II, e Teresa d'Ávila, figuram na galeria das personagens.

Menção especial para Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e mulher de Carlos Quinto, que é recorrentemente nomeada. Sendo uma das mulheres mais belas do seu tempo, de quem Francisco de Borgia foi camareiro, este, depois de vê-la morta, e em decomposição, na abertura do seu caixão em Granada, recusou-se a servir qualquer outro senhor que pudesse morrer. E, estando viúvo, ingressou na Companhia de Jesus.

Também minorias, como os judeus e os homossexuais, são tratadas na obra, que é uma grande fantasia teatral.

Bem como os Papas Paulo III, Júlio III, Pio V. E Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, onde Francisco acabaria por ingressar..

O livro salienta o grande interesse de Francisco de Borgia pela China, mas a longa descrição não cabe nos limites deste texto. 

Na impossibilidade de resumir esta viagem alucinante proposta por Szentkuthy, façamos algumas transcrições:

«Uma carta de Julio de Cunserioy Cunserrias deu a conhecer ao autor deste Breviário a descoberta de uma peça de Calderón intitulada El Gran Duque de Gandía, verdadeiro "drama jesuítico" de alto nível, representada em Viena em 1966. O herói desta peça não é outro senão Francisco Bórgia, Antínoo privado de Carlos V, ardente trovador da imperatriz Isabel. Mas Isabel morreu - Deus condenou a mais extrema beleza do corpo ao mais terrível efémero -, a mulher de Francisco (igualmente adorada) morreu também. Francisco dirige-se a Loyola e a última cena apresenta-o exactamente como acabamos de o descrever, penitente vestido de burel, pedindo esmola para os pobres. "O Mundo é um engano" - Die Welt ist Trug, na fórmula do tradutor alemão.» (p. 31)

«Ao mesmo tempo por ordem do papa e para seguir as suas próprias tendências, Francisco começou por atacar duas questões. A primeira dizia respeito às missões na China. O papa fizera-lhe chegar, com a tradução, uma carta que Roma recebera da imperatriz mãe Yung Li, convertida pelos jesuítas. Nada tendo esquecido dos ensinamentos de Carlos V, nem perdido de vista a ideia (de origem medieval) de um vasto império católico, quaisquer reservas que alimentasse quanto à possibilidade de levar a cabo tal sonho não tiraram a Francisco a satisfação de, a seguir ao Grande Processo, se ocupar de projectos tão longínquos; por outro lado, tinha uma confiança absoluta nos seus diplomatas jesuítas, gente de escol, que começam sempre por trabalhar os poderosos deste mundo e depois, sem meias medidas, deitam mão das grandes armadilhas da política europeia: assim, não importa se, para levar o povo a amar Jesus, se tiver que o apresentar como uma fútil variante ocidental e judaico-romana de Confúcio, de Buda, da Lao Tsé e de quantas outras velhas "superstições"! A empresa, desde que seja tentada junto de imperadores, vê multiplicarem-se as suas hipóteses de sucesso. A verdade é que, estimulado pela  carta de Yung Li, Francisco leu todos os livros sobre história da China. A outra questão que o preocupava era a de uma cruzada paneuropeia contra os Turcos. Em geral, este género de empreendimento estava votado ao fracasso e degenerava em aventuras criminosas mórbidas, estúpidas e mentirosas: reis cristãos matavam-se uns aos outros, o próprio papa sujava as mãos quando não se transformava em profeta estéril, organizador de procissões choronas. No entanto, embora não houvesse uma parcela do seu corpo ou da sua alma que não encerrasse uma doença - de sintomas eruptivos sob a forma de velas de árvore de Natal gastas ou então de medalhas cunhadas com o perfil de reis há muito destronados, moedas esburacadas presas com uma guita e manipuladas por crianças idiotas -, Bórgia devia obediência ao papa Pio V.» (pp. 34-35)

«Segundo os cronistas, Bórgia chegou a Roma a 28 de Setembro de 1572 e morreu três dias depois. Segundo outros cronistas, morreu durante a viagem, mas a sua morte foi mantida em segredo, por causa do conclave. Quando, do seu campo de visão, desapareceu, como muitas outras coisas haviam de desaparecer, a forca-cruz, Francisco pronunciou a única frase racional que o homem pode formular ao longo da sua existência: "Está consumado!" E eis o apêndice em tudo racional que podemos acrescentar a esta frasezinha: Francisco tinha dez anos à data da morte de sua mãe e, a seguir ao enterro, as dueñas eternamente faladoras fartaram-se de lhe encher os ouvidos ainda pouco abertos com mil ternuras: bisbilhotices, terrores voluptuosos, mimalhices, substitutos de mãe, cocktail arcaico de todas as manias religiosas. No seu último sonho, Francisco, chegado a Roma, viu, num quadro que representava a Madonna, a sua própria mãe aleitando o filho e recebendo a extrema-unção: seios brancos, cera amarela, padres negros, combinação de rendas com abertura para uma minimamada e, enquanto o seu menino sugava a alma à mãe bebendo-lhe as entranhas, esta recomendava vivamente aos padres, mestres de torneios cavaleirescos, que velassem pela saúde de Francisco como pela menina dos seus olhos.

El Greco: El Entierro del Conde Orgaz. Substituamos os despojos couraçados do conde por Francisco Bórgia e o bispo de casula pelo príncipe de Lerma, neto de Francisco Bórgia - nada mais simples de que tal substituição.» (pp. 42-43)

«- Tudo isso não passa de conversa - disse Renée. - o inimigo principal, o Anticristo negro é Carlos, o imperador romano. Não se consola de não ser papa. Foi por isso que pôs a circular o boato segundo o qual o rei de França suborna o papado e quer fazer do sultão da Turquia senhor da Europa. Carlos sonha com o papado de manhã à noite. Quer ser ordenado padre e tornar-se monge ascético. Fica tudo comovido até às lágrimas ao ver o grande imperador flagelar-se, vestido de burel. Porque é que ele faz isso? Porque está assombrado pela tiara: ora quer adquiri-la pelo sangue, ora, na sua raiva impotente, deseja destruir em si próprio aquela imagem. Nos seus momentos de desespero, inflige a si próprio exercícios de penitência para se livrar do pesadelo da sagração pelo Vaticano.

- É o Francisco que te conta essas historinhas de adormecer? - perguntou Bórgia. [Ercole II, duque de Este, filho de Lucrezia Borgia]

- Não, é o próprio Carlos V que me serve estas realidades. Porque é que ele não executou os decretos de excomunhão do papa Leão contra Martinho Lutero e os seus companheiros? Veja-se que, se ele deixou Lutero seguir o seu caminho foi porque não perdoava ao papa ter dirigido a palavra a Francisco I e sobretudo por não ser ele o próprio papa. Sei que, de vez em quando, Carlos se retira para castelos isolados onde, vestido com os ornamentos do papa, se passeia durante horas diante do espelho. E entretanto, deixa Lutero e os seus companheiros atacar com toda a tranquilidade todo o território do Império. É certo que há aqui uma lógica complexa, a lógica subtil do princípio de identidade ibérico, que os pensadores da plebe não pode entender.»  (p. 272)

«Mas tudo isso não impede a França de se submeter inteiramente à vontade do Santo Padre, nem de empreender o recrutamento dos novos cruzados. Tornou-se já evidente que a França é a única a querer e sobretudo a poder organizar tal empresa, pois ela é actualmente a única grande potência idealista da Europa. Um membro da delegação, um padre francês, deu a saber confidencialmente a Francisco Bórgia que Carlos IX tinha um favorito, um jovem efebo, partidário entusiasta da cruzada. Esse jovem duque seria, segundo certos rumores, espião de Filipe II em França. Pertencia, por parte da avó, a uma família espanhola, todas as suas amantes eram espanholas, mas o rei de França não podia passar sem ele. O padre recomendou a Bórgia que contactasse esse jovem com a maior urgência.» (p. 290)

«Tirando proveito da sua vitória em Lepanto, Don Juan pretende tornar-se senhor de todo o Oriente, de Granada a Damasco. Sem ter a menor intenção de utilizar o seu triunfo no serviço dos interesses da cristandade, quer tornar-se sultão, um tirano digno das Mil e Uma Noites.  Don Juan iniciou já negociações com o paxá de Alexandria. Os dois homens avistaram-se na ilha de Antiparos. Don Juan chegou a bordo de um navio árabe, na companhia de fabulosas huris de harém, o paxá num navio cristão unido de velas cor-de-rosa estampadas às cruzes lilases, pois esse soberano afirma que a cruz é o símbolo da Europa Política e não de uma religião oposta ao Islão e, enquanto tal, utilizável, com cortesia e diplomacia, como símbolo das negociações pacíficas. O ideal de Don Juan é Frederico II de Hohenstaufen, o Anticristo do Levante, Antínoo gibelino, o Dominus Mundi místico dos tigres, das mulheres e dos judeus, o libertino negro que se coloca acima da banal oposição entre Oriente e Ocidente. Frederico nunca quis lutar contra o papa, mas a sua amizade com Don Juan é uma ideia mil vezes mais ignominiosa.» (p. 300)

Destes breves apontamentos se poderá ajuizar da riqueza da obra. 

Recordemos:  

 «Là, nell'avello dell'Escurial» (Don Carlo, de Verdi)

 

terça-feira, 3 de junho de 2025

A ESTRATÉGIA DA ARANHA


O TRAIDOR E O HERÓI

Em 1944, Jorge Luis Borges publicou Ficciones, livro posteriormente editado em português com o título Ficções, e que inclui 17 contos, agrupados em duas partes.

Um dos contos intitula-se “Tema do Traidor e do Herói” e trata de um caso (imaginado) ocorrido na Irlanda, em 1824, em que um herói nacional, Kilpatrick, atraiçoa a sua própria causa, aceitando depois ser imolado pelos companheiros de forma a não prejudicar a pátria.

Assim, ele mesmo combina com os conjurados os pormenores da sua execução, que ocorrerá num teatro, durante a realização de um espectáculo. Inspirando-se em Shakespeare, concebe cenicamente o seu assassinato, recorrendo a cenas de Júlio César e de Macbeth para conferir maior autenticidade ao acto.

Anos mais tarde, um bisneto, Ryan, visita a localidade para averiguar das circunstâncias da morte do seu antepassado. Depara-se com um muro de silêncio, mas acaba por descobrir a verdade. Todavia, para não macular a lenda do herói, também ele ocultará a sua descoberta, tornando-se assim cúmplice da genial intriga.

* * * * *

Apropriando-se do tema, o realizador italiano Bernardo Bertolucci apresentou, em 1970, o filme Strategia del Ragno (A Estratégia da Aranha)com argumento de Marilù Parolini e Eduardo de Gregorio, e interpretação de Giulio Brogi e Alida Valli.

Este filme breve, considerado um dos melhores do realizador, transporta a acção para a Itália, no tempo de Mussolini, sendo o herói/traidor um militante anti-fascista. Para descobrir a verdade, envolta numa teia de mentiras, o descendente, neste caso o próprio filho, encontra-se com os amigos do pai, e mesmo com a sua amante. Sabe que a conspiração visava matar Mussolini quando este fosse inaugurar o teatro local, onde se cantaria o Rigoletto. O Duce não comparece e é o próprio pai que é morto pelos seus companheiros, a quem tinha traído.

No decorrer da película ouve-se, em fundo, apropriadamente, música de óperas de Verdi.