No título original, L'heure des prédateurs (2025), em português, A hora dos predadores é o último livro de Giuliano da Empoli (n. 1973). uma curiosa incursão nos meandros das vidas dos decisores políticos, e técnicos, da hora actual.
Trata-se de um livro breve, escrito talvez apressadamente, abordando aleatoriamente os temas e as circunstâncias, quiçá pretensioso e sem a estrutura consistente da sua obra anterior, O Mago do Kremlin (2022), que o tornou famoso, lhe valeu o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa e que comentámos aqui. Mas nem por isso a sua leitura é despicienda.
Começa o autor por evocar a queda do Império Azteca às mãos dos espanhóis, devido à hesitação de Montezuma, comparando o comportamento dos responsáveis políticos das democracias ocidentais aos aztecas do século XVI que careciam da tecnologia de Cortés.
Limitemo-nos a alguns comentários.
O livro refere várias situações e personagens, situações que o autor presenciou e personagens com quem contactou, de perto ou de longe, com especial destaque para Trump, Putin, Netanyahu, Arafat, Macron ou Zelensky. Descreve com pormenor a decisão de Mohammed bin Salman (MBS), príncipe herdeiro da Arábia Saudita, que num golpe genial, mandou prender no Hotel Ritz.Carlton de Riad algumas das personalidades mais importantes do Reino, o que lhe permitiu que o Estado Saudita recuperasse mais de cem mil milhões de dólares. E a presença na Assembleia Geral das Nações Unidas do presidente Nayib Bukele, de El Salvador, que mandou prender oitenta mil pessoas pelo facto de estarem tatuadas e que foram consideradas como perigosos criminosos. Também é devidamente mencionado o regresso de Donald Trump à Casa Branca, com a sua corte de empresários. Estes novos dirigentes, a que o autor chama borgianos, a partir de Maquiavel, que está omnipresente na narrativa, «concentram-se no fundo, não na forma. Eles prometem resolver os problemas reais do povo: a criminalidade, a imigração, o custo de vida. E o que respondem os seus adversários, os liberais, os progressistas, os gentis democratas? Regras, democracia em perigo, protecção de minorias...» (p. 67) [Temos ouvido isto recentemente entre nós].
O perigo das novas tecnologias é devidamente enfatizado, a pretexto da reunião de Setembro de 2024, em Montreal, patrocinada por Justin Trudeau com a presença dos cérebros da inteligência artificial.
«Até aqui, as elites económicas, os actores da finança, os empresários e os dirigentes das grandes empresas apoiaram-se numa classe política de tecnocratas - ou de aspirantes a tecnocratas - de direita e de esquerda. moderados, enfadonhos, mais ou menos indiferenciados, que governavam os seus países com base nos princípios da democracia liberal, de acordo com as regras do mercado, por vezes temperadas por considerações sociais. Era o consenso de Davos. Um lugar onde as pistas azuis, gentilmente balizadas pelos limpa-neves, haviam substituído as convulsões desmesuradas de A Montanha Mágica.» (p. 90)
««Na hora dos predadores, esse equilíbrio rebentou. As novas elites tecnológicas, os Musks e os Zuckerbergs, nada têm a ver com os tecnocratas de Davos. A filosofia de vida deles não se baseia na gestão competente do que existe, mas antes numa sagrada vontade de semear a confusão. A ordem, a prudência, o respeito pelas regras são considerados anátema por aqueles que aprenderam a andar depressa e partindo as coisas, segundo o lema do Facebook.» (p. 91)
O livro explica também como, por aplicação de engenharia informática, Barack Obama conseguiu ser reeleito presidente dos Estados Unidos em 2012, por «51% dos votos, menos três milhões e meio do que na vez anterior, mas estrategicamente distribuídos de maneira a permitir-lhe conquistar a maioria dos eleitores. Se a vitória de 2008 foi de natureza política, a de 2012 é essencialmente técnica.» (p. 95)
«O grande dilema que estruturou a política no século XX é a relação entre o Estado e o mercado: que parte da nossa vida e do funcionamento da nossa sociedade deve estar sob o controlo do Estado e que parte deve ser deixada ao mercado e à sociedade civil? No século XXI, a clivagem decisiva passa a ser entre o humano e a máquina. Em que medida as nossas vidas devem estar sujeitas a poderosos sistemas digitais - e em que condições? No fim de contas, os indivíduos e as sociedades terão de decidir quais os aspectos da vida a reservar para a inteligência humana e quais os aspectos a confiar à IA ou à colaboração entre o homem e a IA. E sempre que eles escolherem privilegiar o humano, quando uma IA pudesse ter garantido resultados mais eficazes, haverá um preço a pagar.» (pp. 107-108)
«O verdadeiro romance de antecipação sobre a IA é O Processo, de Kafka, no qual ninguém compreende o que se passa, nem o acusado, nem mesmo os juízes que o indiciaram, e ainda assim os acontecimentos seguem o seu curso inexorável. No outro grande romance de Kafka, quando ele tenta concentrar-se no centro de poder que lhe controla o destino, sem nunca ter acesso a ele nem obter de lá a menor luz, o olhar de K, o protagonista, "desliza sobre o Castelo, sem poder fixar-se em nada". E quando tenta telefonar, do outro lado da linha ouve apenas um canto de vozes distantes ou, do lado oposto, uma voz severa e orgulhosa que recusa dar-lhe a menor explicação. Para alguns, o Castelo já lá está. Quando dizemos que o futuro está entre nós, mas que está distribuído de maneira desigual, geralmente queremos dizer que os privilegiados já têm acesso às tecnologias do futuro, enquanto os outros ficam para trás. No caso que nos ocupa, a situação é inversa. O Castelo, por enquanto, é apenas uma hipótese para as classes abastadas, enquanto já é uma realidade para os que estão na base da escala. O pessoal das entregas, por exemplo, praticamente já não tem nenhum contacto com um ser humano no decurso do seu trabalho. O único interlocutor deles é uma aplicação que trazem no telemóvel. É ela que lhes atribui as tarefas a efectuar, é ela que os orienta no seu trabalho, é ela que lhes avalia o desempenho, segundo uma lógica que às vezes parece compreensível e depois, de repente, impenetrável. Se alguma coisa não corre bem, se a pessoa que faz a entrega é confrontada com um acontecimento imprevisto ou se o mecanismo emperra, não há ninguém a quem recorrer. A aplicação tira as suas conclusões e emite o seu juízo. O bom senso e a sensibilidade de um ser humano foram deliberadamente postos de lado. Na melhor das hipóteses, pode dirigir-se, por formalidade, a um centro de recursos localizado a milhares de quilómetros de distância, onde, após uma longa espera, encontrará o conforto de um ser humano tão desprovido de poder quanto ele.» (pp. 114-115-116)
Quando passa dos comentários sobre acontecimentos concretos à evocação de situações gerais e abstractas, o livro assume uma dimensão relevante. Giuliano da Empoli obriga-nos a encarar, de olhos bem abertos, o admirável mundo novo que nos espera. O mundo tem subsistido a grandes choques tecnológicos ao longo da História. Mas a ciência e a técnica tinham-se unido para ajudar o homem a vencer dificuldades. Agora, o desafio é outro: a IA propõe-se substituir o próprio homem! Consegui-lo-á? É o homem uma paixão inútil, como em tempos escreveu Sartre? Mas não é ele, segundo as religiões, o centro da Criação? E onde fica então Deus se é inútil a Criatura criada pelo Criador?
O autor não responde a estas perguntas. Eu também não.

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