sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

AS RELAÇÕES ENTRE PORTUGAL E A RÚSSIA, NO SÉCULO XVIII

Grande admirador da Rússia, o professor Rómulo de Carvalho (conhecido poeta sob o pseudónimo de António Gedeão) publicou em 1979 Relações entre Portugal e a Rússia no século XVIII, uma obra pioneiro no género.

Começa o autor por mencionar os primeiros portugueses que estiveram na Rússia (e de que há conhecimento), salientando a figura de António Manuel Luís Vieira, que foi convidado a ir para aquele país por Pedro, o Grande, quando tinha apenas quinze anos, quando o czar o conheceu em Amesterdão ou em Inglaterra, e a que nos referimos no livro comentado aqui.

O notável médico Ribeiro Sanches, um dos muitos portugueses que estiveram na Rússia durante o século XVIII, escreveu a um amigo, em 1733, dizendo: "Eu sou o segundo português que aqui se conhece." O outro seria naturalmente Vieira, sobre cuja vida Rómulo de Carvalho não conhecia ainda todos os pormenores constantes do livro acima citado. Todavia, estava Ribeiro Sanches mal informado, pois outros portugueses haviam já passado pela Rússia antes dele, como os abades Tomás da Silva de Avelar e Vicente de Oliveira Durão, dois dos muitos enviados de D. João V às cortes da Europa Central e da Rússia para observarem as cerimónias solenes aí desenroladas e lhes satisfazerem encomendas de livros, vestidos, jóias, mobílias, coches, quadros, etc. Passaram por Dantzig, Praga (onde Durão ficou), Dresden, Viena e finalmente Moscovo e São Petersburgo. Avelar tentou esquivar-se à ida à Rússia, receoso da viagem e do clima, mas acabou por aí de deslocar por ordem do monarca, tendo ficado seduzido pela forma como foi recebido.

Tomás da Silva Avelar chegou a Moscovo em 16 de Maio de 1724, na antevéspera da coroação de Catarina I como co-governante do Império Russo. Pedro morreria no ano seguinte. De Moscovo passou Avelar a São Petersburgo, sempre desvanecido com a forma como foi recebido. Nesta cidade, falou duas vezes com o czar e encontrou-se também com o citado António Vieira, que o levou a visitar vários lugares do Império Russo, tendo-se igualmente avistado com um judeu português chamado Costa, que vivia igualmente na capital. 

Avelar passou quatro meses na Rússia e aí redigiu o relatório da sua missão. Nas suas cartas para Lisboa refere-se ao infante D. Manuel, irmão de D. João V, que desde os 18 anos começou a viajar pela Europa, contra a vontade do rei, dissipando fortunas mas sendo sempre recebido com as maiores honrarias. «A primeira notícia que colhemos a tal respeito provém de uma carta do conhecido diplomata português D. Luís da Cunha, então na Haia, dirigida a Diogo de Mendonça Corte Real, em Lisboa, datada de 3 de Agosto de 1730, onde se lê: "A todos tem posto em grande coriozid.e a jurnada do S. Infante D. M.el a Moscovia se as gazetas não mentem como de ordinario acontece."» (p. 15) . Pelos vistos, D. Luís da Cunha, habitualmente bem informado, soube do caso pelas gazetas. Mas em 28 de Setembro, D. Luís da Cunha escreve outras carta ao mesmo destinatário: "Esta serve som.te de remeter a VS. a copia da carta do Duque de Liria em que refere os passos que o S.r Infante D. M.el fes em Muscou e o modo com que a Czarina o tratou até que se despidiu. Do objecto daquella visita se falla defferemtem.te."» (p. 15). Nas suas viagens, o Infante D. Manuel arquitectou sempre planos de casamento com damas de alta estirpe. No caso da sua viagem à Rússia, a intenção era a de conquistar a mão ainda disponível da imperatriz então reinante Ana Ivanovna.

A estada do infante verificou-se em 1730. Estranha-se que Ribeiro Sanches, que chegou à Rússia em 1731, desconhecesse completamente a visita do irmão de D. João V, que o levou a dizer ser ele o segundo português a visitar a Rússia, depois de António Manuel Luís Vieira.

António Manuel Ribeiro Sanches nasceu em Penamacor em 1699. Frequentou a Universidade de Coimbra e, depois, a de Salamanca, onde se doutorou em Medicina em 1724. Exerceu clínica em Portugal, na região de Benavente mas deixou o país pouco depois, talvez em 1726, não voltando a regressar à pátria. Não sabemos o motivo da sua saída mas presume-se que, devido a pertencer a uma família de cristãos-novos, tenha receado ser vítima das perseguições que então ocorriam. Outra hipótese é não se ter adaptado ao ambiente nacional da época no que respeitava ao exercício da profissão médica. Ou ambas as hipóteses, que se complementam. Deve notar-se que Ribeiro Sanches sempre se esforçou por convencer os seus contemporâneos de que era católico, assim o declarando por escrito. Justifica-se a declaração já que praticara o judaísmo e, com sinceridade interior ou sem ela, se apresentava agora como católico.

Tendo saído de Portugal, encontramos Ribeiro Sanches em Londres, em 1727, em Montpellier, em 1728, em Leiden, em 1730, cujas universidades frequentou, tendo assistido nesta última cidade às lições de Herman Boerhave, o mais afamado médico do seu tempo e que muito apreciava aquele estudante que até era já doutorado. E foi Boerhave que lhe sugeriu a ida para Moscovo, pois recebera um pedido de escolha de três médicos competentes. Sanches, que se dispunha a partir para Paris, reconsiderou , aceitou e assinou (3 de Julho de 1731) o contrato de serviço como médico na Rússia. Munido com uma carta de recomendação de Boerhave e sob a protecção do príncipe Kurakine, que fora embaixador da Rússia na Haia, e a quem D. Luís da Cunha, nosso embaixador na mesma cidade, a pedira, Sanches entrou na Rússia em Outubro de 1731, e aí se iria conservar durante dezasseis anos. 

Na supracitada carta de 1733, Sanches passou a exercer em Moscovo como "médico do senado e da cidade", com direito de praticar a medicina livremente. Em 1734 foi transferido para os serviços do exército, o que lhe provocou a mudança de residência de Moscovo para Petersburgo. Indica aos seus interlocutores que a correspondência deverá ser endereçada a "Monsieur António Ribeiro Sanches, Docteur en médecine au service de Sa Magesté Imperialle de toutes les Russies à S.t Peterburg". Sem mais. O serviço dos correios saberia encontrar o destinatário. E nesse cargo se manteve pelo menos até 1735. O prestígio que lhe permitiu a colocação nos serviços do exército impô-lo a toda a sociedade russa. Deve ter sido nessa altura que ingressou na Academia das Ciências de Petersburgo e foi por seu intermédio que essa Academia ofereceu à nossa Academia da História vários livros publicados pela sua congénere russa. A Academia de Petersburgo foi fundada em 1725 [em 1724 segundo outras fontes] por Pedro, o Grande, com as mesmas leis e imunidades que a de Paris, instituída por Luís XIV.

 Não foi longa a estada de Sanches em Petersburgo. Em 1735, sendo Ana Ivanovna, sobrinha de Pedro, o Grande, a nova imperatriz da Rússia, reacendeu-se a guerra entre a Rússia e a Turquia, e Sanches viu-se obrigado a participar como médico de campanha, tendo estabelecido uma série de medidas destinadas a tratar mais convenientemente os feridos em combate. Em 1736, durante o cerco de Azov, escreveu o Tratado da conservação da saúde dos povos, mais tarde publicado em Paris, em 1756. É muito interessante o seu comentário sobre a vantagem dos banhos de vapor.

«Durante a guerra russo-turca teve Ribeiro Sanches oportunidade de apreciar, com delongas, o uso que os soldados faziam dos banhos de vapor chamados "banhos russos". Certamente que Sanches já conhecia essa prática dos anos em que até aí vivera na Rússia, visto serem de uso corrente naquele império. Sanches teve, pela prática daqueles banhos, o maior dos entusiasmos considerando-os de resultados maravilhosos para a saúde a ponto de ter escrito, numa das muitas páginas que publicou sobre o assunto, que os banhos russos poderiam com vantagem substituir metade dos remédios da maioria das farmacopeias. A eles atribui a robustez que é comum aos soldados russos e que os torna aptos para todo os serviços que exigem esforços físicos, tanto na vida militar como civil.» (pp. 29-30)

«Já depois de ter saído da Rússia e de estar instalado em Paris, onde permaneceu até ao fim da sua vida, se entregou Ribeiro Sanches à tarefa de redigir um trabalho exclusivamente dedicado aos banhos russos com o propósito de universalizar o conhecimento de tal prática por intermédio da língua francesa. Esse trabalho foi lido, e possivelmente pelo autor, na sessão de 5 de Outubro de 1779 da Sociedade Real de Medicina de Paris e publicado nos seus anais.» (p. 32) 

«Na continuação apresenta-nos Ribeiro Sanches um conjunto de pormenores que ainda não dera em escritos anteriores e que merecem ser expostos. Refere-se aos lugares dos banhos, já não improvisados como em campanha mas em edifícios apropriados, destinados a banhos públicos e que eram construídos junto de ribeiros ou de lagos para os utentes aí mergulharem o corpo, ou nadarem, na fase final do banho. Compunham-se os edifícios de quatro ou cinco grandes salas. Começavam as pessoas por entrar na sala considerada como a primeira, e que deveria estar medianamente aquecida. Aí se despiam para ingressarem na sala seguinte que era a do banho de vapor de água. Esta sala, de forma circular, era construída de pedra de cantaria, paredes e chão, e coberta por uma cúpula envidraçada ao centro para lhe dar luz. As pessoas sentavam-se no meio da sala numa banqueta redonda chamada poloc, e aí ficavam expostas ao vapor de água. Este ascendia por tubos de ferro ou de cobre ao longo das paredes da sala e provinha de água aquecida num forno subterrâneo. As pessoas, sentadas na banqueta, suavam abundantemente e mantinham-se no lugar enquanto pudessem resistir, após o que passavam à sala seguinte onde recebiam um banho de água tépida. Aí um banheiro friccionava-lhes as articulações, lavava as pessoas e dirigia-as para nova sala onde recebiam então um banho de água fria, podendo mergulhar nela ou até mesmo nadar por alguns instantes. Finalmente enxugavam-se e vestiam-se.» (pp. 33-34)

«Como preceito geral não se deveriam utilizar os banhos senão depois de passadas quatro ou cinco horas sobre as refeições e nunca se devia beber água fria durante a fase do suadouro, como naturalmente apetecia, o que já tinha provocado vítimas entre os que não resistiam ao apetite.» (p. 34)  

Ribeiro Sanches deve ter exercido serviço médico na guerra russo-turca até à queda de Azov em 1736, a cujo cerco se refere, e deve ter regressado a Petersburgo nesse mesmo ano ou no ano seguinte, eventualmente por falta de saúde, já que a guerra se prolongou por mais três anos. Em 1737, foi nomeado médico do Corpo de Cadetes de Petersbugo, o colégio militar da nobreza russa.  Refere-se a esse Colégio em algumas das suas obras, nomeadamente em Cartas sobre a educação da mocidade, datadas de Paris, em 1759, já depois de ter saído da Rússia. Estas Cartas tiveram uma influência decisiva na criação do Colégio dos Nobres de Lisboa, que foi o prelúdio da reforma do ensino científico executado pelo marquês de Pombal. Sobre a sua actividade médica propriamente dita deixou-nos o Método para aprender e estudar Medicina, datado de Paris, de 26 de Março de 1761. 

Tendo chegado ao Império no tempo de Ana Ivanovna, que morreu em 1740, e que designou como herdeiro um filho de sua sobrinha Ana Leopoldovna, Ivan VI, Sanches foi nomeado médico do novo czar, então com escassos meses. A mãe assegurou a regência durante um ano, mas Ivan foi deposto por Isabel Petrovna, filha de Pedro, o Grande e de Catarina I, da qual Sanches também se tornou médico. Entre as pessoas da família imperial  foi também médico da futura imperatriz Catarina II. 

Um irlandês de nome Smith que fora contemporâneo de Sanches em Leiden e exercia agora a profissão na Guarda Imperial, apesar de ter havido em tempos relações de amizade entre ambos, talvez devido a algum desentendimento resolveu denunciá-lo por práticas judaicas na sinagoga de Amesterdão. 

«Admite-se que o ataque do irlandês Smith a Ribeiro Sanches tenha origem na má vontade, despeito ou inveja da pessoa que era então primeiro médico da imperatriz Isabel, a qual tinha Sanches por segundo médico. Esse primeiro, de nome Lestocq, fora cabeleireiro da imperatriz, e também cirurgião, função que no passado andava ligada à de barbeiro. Isabel deu-lhe o título de conde e fê-lo seu primeiro médico. É natural que no convívio forçoso dos dois médicos imperiais as relações se azedassem, e que Lestocq, servindo-se de Smith, por via travessa, procurasse desembaraçar-se de Sanches que muito provavelmente lhe faria sombra.»  (p. 42)

Não sabemos exactamente as razões pelas quais Ribeiro Sanches abandonou a Rússia em 1747, se constrangido ou de livre vontade. Em 26 de Novembro de 1748 a imperatriz Isabel mandou excluí-lo da Academia das Ciências de Petersburgo. Tinha então 48 anos e foi viver em Paris, com a saúde já debilitada pelo rigoroso clima russo. Todavia, Catarina II, a quem havia tratado em criança, não o esqueceu, e quando se tornou imperatriz concedeu-lhe uma pensão anual de mil rublos. E correspondeu-se até ao fim da sua vida com Ivan Ivanovitch Beckoj, um favorito da soberana que lhe solicitava pareceres. Talvez por isso, escreveu em Paris, em 1765, um estudo muito importante: Sur la culture des Sciences et des Beaux-Arts dans l'Empire de Russie, que enviou a Beckoj e cuja descrição não cabe neste texto. 

A lista geral das obras da autoria de Sanches foi publicada pelo médico francês Andry, fazendo parte do Catálogo dos livros que Sanches possuía e que foram a leilão, em 1783, após o seu falecimento. 

A própria Catarina II procurou, por intermédio de Beckoj, obter a biblioteca de Sanches, propondo-se adquiri-la pelo valor em que ele a avaliasse, e deixando-lhe o usufruto em vida, conforme é confirmado numa carta de Vicente de Sousa Coutinho, embaixador de Portugal em França, a Luís da Cunha Manuel, em Lisboa. Ignoramos a sequência desta tentativa, sabendo apenas que a biblioteca, composta de 1113 lotes, foi vendida num leilão em Paris, iniciado em 15 de Dezembro de 1783, logo após a morte do célebre médico.

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No que respeita às relações diplomáticas entre Portugal e a Rússia, deve dizer-se que o seu estabelecimento foi um processo moroso, exclusivamente por causa do nosso país. O primeiro passo para se promover a aproximação oficial entre os dois países data de 1724, mas a nomeação do primeiro embaixador português na Rússia, Francisco José de Horta Machado, é de 1778 (1779, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros). O nosso Ministério indica que anteriormente houve uma carta credencial para um ministro plenipotenciário, José de Nápoles Tello de Meneses, mas não menciona data. Mas desde o início do século XVIII, ou mesmo antes, houve uma insistência da Rússia para o estabelecimento de relações, até por razões de natureza comercial. As conversas decorriam entre os ministros de Portugal e da Rússia nas diversas cortes europeus onde estavam acreditados. Em 1724, o ministro russo em Copenhague, o conde de Ostreman propusera ao seu homólogo português que se fizessem "Inviaturas". Também por essa altura o ministro russo em Madrid, o barão de Stackelberg, abordou o assunto com Aires de Sá e Melo, nosso representante naquela Corte. A partir de 1733 desenvolveram-se conversas em Londres entre o nosso ministro Marco António de Azevedo Coutinho e o representante russo, o príncipe de Cantemir. Caído o assunto no esquecimento, só em 1751 o nosso embaixador em Londres, Joaquim José Fidalgo da Silveira, voltou ao assunto relatando para Lisboa a vontade do representante russo, o conde de Zernichef (presumivelmente Tchernichev), no estabelecimento de relações. Em 1755 é Luís da Cunha Manuel (sobrinho do célebre D. Luís da Cunha) que escreve de Londres ao futuro marquês de Pombal referindo uma conversa com Tchernichev que estava admirado de não haver desenvolvimento do assunto. Entretanto Luís da Cunha Manuel fora substituído em Londres por Martinho de Melo e Castro e Tchernichev pelo príncipe Golitsin. E é este, perfeitamente ao par das conversações anteriores, quem regressa ao assunto perante a total ignorância do nosso diplomata e quem lhe fornece um relatório das diligências anteriores. Mas continua a não haver qualquer interesse em Lisboa. Só em 1763, era já José de Sá Pereira nosso ministro em Londres e o conde de Voronzov ministro da Rússia, o qual já tinha visitado Lisboa, onde se avistara com o futuro marquês de Pombal, é que o assunto voltou a ser objecto de conversa, mas sem resultados práticos. Em 1769, Francisco de Melo e Carvalho, nosso representante em Copenhague pede instruções ao conde de Oeiras, pois fora abordado pelo ministro da Rússia naquela Corte, M.r Filosofov. Decorridos mais três anos, José Vasques da Cunha (irmão de Luís da Cunha Manuel) escreve da Haia, em 1772, dando conta das conversas tida com «Monsieur Zenoviov, cavalheiro russo, primo co-irmão do conde Orlov, favorito da tsarina que então já era, desde 1762, Catarina II. 

«Zenoviov vinha decidido  a resolver, de vez, o estabelecimento das nossas relações com a Rússia e informava, da parte de Catarina II, ter a soberana publicado um regulamento segundo o qual os nossos vinhos, desde que fossem transportados por conta de portugueses, pagariam direitos muito mais módicos do que os das outras nações; que desejava que se nomeassem reciprocamente, e sem demora, ministros residentes nas capitais dos dois países; que se procedesse à elaboração imediata de um tratado de comércio entre ambos; que a proposta fosse comunicada já ao governo de Lisboa "pedindolhe uma reposta categorica, e com brevidade."» (p. 63)

Sem esperar pela nomeação de um cônsul português em Petersburgo, Catarina II nomeia um cônsul em Lisboa. Consta na Chancelaria de D. José, com data de 26 de Março de 1770, uma "Carta de Comsul da Nasçaõ Russiana nesta Corte e Reino" em que se lê que " a CZARINA de Moscovia e Russia nomiou Comsul da sua Nassaõ na cid.e de Lxª e Porttos deste Reyno a Joaõ Antonio Borcher." [o apelido deve ser Borchers, segundo um requerimento deste na alfândega]. Vaasques da Cunha informa ainda que estivera em Lisboa um príncipe russo, de nome Michelski, que, ao regressar à Rússia interfira junto da imperatriz a favor de uma rápida aproximação comercial com Portugal. e que a soberana, entusiasmada, chegou a nomear um ministro para Lisboa, não se realizando entretanto a efectivação da sua vinda.

«A intervenção decidida do enviado Zenoviov, junto de Vasques da Cunha, pedindo uma resposta categórica e urgente às pretensões russas, parece ter forçado o Governo Português, ou seja o marquês de Pombal, a ocupar-se do assunto e a tentar dar-lhe uma solução em breve tempo. Assim de facto se procurou fazer, não pela via directa de dar poderes suficientes ao nosso representante para estudar uma proposta concreta em colaboração com o diplomata russo, trocando impressões com os respectivos governos de um lado e do outro, mas por um caminha surdo, tortuoso e cheio de mistério, que consistiu em procurar alguém que fosse à Rússia, disfarçado, colher informações e ouvir pessoas interessadas no processo.» (p. 65) A escolha recaiu em António Rangel Pereira de Sá, nosso ministro plenipotenciário em Copenhague, que se apresentou disfarçado em Petersburgo, o que caiu mal na Corte russa. Depois de demorados episódios, e sempre com as hesitações do marquês de Pombal,  Pereira de Sá foi nomeado ministro plenipotenciário de D. José junto de Catarina II, a fim de poder "negociar, ajustar e asinar qualquer Tratado, ou Tratados de Amizade, Commercio, e Navegação," em Petersburgo, conforme documento existente na Torre do Tombo. Mas, espantosamente, mais uma vez nada aconteceu. Em 1776 o marquês de Pombal escolheu , em Lisboa, alguém a quem teria convidado para ser nosso ministro na Rússia. Relata Horta Machado, num ofício, uma conversa tida na Haia com um russo cujo nome não menciona que quando saiu de Lisboa estava já nomeado um nosso representante. Nesse ofício a pessoa apontada como tendo sido escolhida para ministro não é indicada pelo nome mas apenas citada como "hum Tenente Irmaõ do Capitam da Guarda do marques de Pombal". A nomeação desagradou à Rússia, que não estava disposta a aceitar um tenente como representante de uma nação estrangeira. A notícia teria chegado a Petersburgo por informação de Borchers, o cônsul russo em Lisboa. Estava-se no fim do ano de 1776 e o tenente não chegou a ir à Rússia, tendo D. José morrido em Fevereiro do ano seguinte. O trono foi ocupado por D. Maria I e o marquês de Pombal afastado do poder.

«O novo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Aires de Sá e Melo (que aliás já fazia parte do governo anterior) compreendeu a urgência de se dar solução definitiva à representação diplomática portuguesa em Petersburgo,  e como naturalmente estaria a par do desagrado que a nomeação do tenente suscitara na corte russa, escreveu para o nosso embaixador em Londres, que era então Luís Pinto de Sousa Coutinho, pedindo-lhe que se informasse junto do seu colega russo se a imperatriz Catarina II ainda mantinha a disposição de nomear um ministro seu para Lisboa e de aceitar um nosso para Petersburgo.» (pp. 72-73) A resposta da imperatriz foi naturalmente positiva, manifestando os maiores desejos numa mútua correspondência.

Estando o caso posto nestes termos não havia tempo para mais delongas. Foi por isso nomeado nosso ministro na Rússia António Rangel Pereira de Sá, a quem estivera anteriormente confiada a missão de agente secreto para sondar o estabelecimento de relações. Mas ainda não foi desta vez que a situação se resolveu, pois o nomeado acabou por invocar razões de saúde (reais ou fictícias) para ocupar o lugar.

Decidido a resolver definitivamente o assunto, o Secretário de Estado indica então para o posto o nosso representante na Haia, Francisco José de Horta Machado, que viria a ser o primeiro embaixador de Portugal na Rússia, que é convidado para o lugar em 14 de Julho de 1778, mas só recebe de D. Maria I as credenciais oito meses mais tarde. Na sua correspondência, Horta Machado revela o esplendor da Corte russa e as deferências com que foi recebido pela Czarina e pelos altos dignitários. Em 11 de Janeiro de 1779,  Catarina II nomeou o conde Guilherme de Nesselrod como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em Lisboa.

As relações comerciais com a Rússia, também desejáveis há muitos anos,  adquiriram expressão quando o negociante português, do Porto, Manuel Pinto de Paiva Garcês se abalança a viajar até à Rússia, em 1755, e começa a tratar da exportação dos nossos vinhos, e de outras mercadorias, sem a intervenção de terceiros, como acontecia até aí. 

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«Quando Horta Machado chegou a Petersburgo (1779) algumas potências europeias estavam em guerra. Três anos antes as colónias inglesas da América tinham proclamado a sua independência (4-VII-1776), o que obrigou os Governos das outras nações a declararem a atitude , de aceitação ou de repúdio, que tomariam em presença do novo Estado. A Inglaterra não aceitou aquela independência e dispôs-se à luta; a França e a Espanha, regozijadas com o enfraquecimento que a nova situação criava na soberania marítima dos ingleses, apoiaram os americanos. Uma consequência imediata da independência foi o encerramento dos ports britânicos a toda a navegação americana, enquanto a França e a Espanha a permitiam e facilitavam. Portugal, obrigado a definir uma atitude seguiu as conveniências do seu velho aliado inglês, e o marquês de Pombal já em vésperas de terminar a sua vida política, mandou fechar os nossos portos aos navios americanos. Debalde, Benjamin Franklin, o célebre físico que viera à Europa como diplomata da jovem nação, escrevia de Paris ao Governo Português, já então com D. Maria I, para que a ordem fosse revogada. A situação, era para nós, de muita delicadeza porque a Inglaterra dispunha dos nossos portos como se fossem seus [comentário meu: a aliança luso-britânica, considerada a mais antiga da História, foi utilizada pelos ingleses sempre que lhes foi conveniente mas nunca houve reciprocidade de tratamento. Mesmo quando as tropas britânicas vieram a Portugal para combater as invasões francesas foi porque isso era conveniente para a Inglaterra e foi um problema para se retirarem. E quando Salazar invocou a aliança aquando da invasão indiana de Goa, os ingleses apresentaram razões para rejeitarem o pedido], e em particular do porto de Lisboa que lhe servia de base de operações e onde estacionava, normalmente, uma sua divisão naval. Os barcos ingleses perseguiam, atacavam e aprisionavam navios franceses e traziam-nos para o porto da nossa capital. Os protestos dos atacados acumulavam-se e Portugal expunha-se a ser vítima de graves represálias. A guerra dos mares trazia prejuízos não só às nações beligerantes como às neutras que viam dificultadas as trocas das suas mercadorias, e como se tratava de uma actividade vital tornou-se urgente institucionalizar um sistema que facultasse as vias marítimas ao movimento dos navios neutros. A propostas veio da Rússia e consistiu no princípio de que "a bandeira cobre a mercadoria", ou seja, a bandeira do navio do pais neutro garante que a mercadoria transportada não é contrabando bélico e, portanto, pode seguir a sua rota. Os navios nessas condições poderiam entrar e sair livremente dos portos das nações que estavam em guerra.» (pp. 87-88)

Assim, Catarina II propôs aos países beligerantes e neutros a assinatura de um Tratado a que chamou "de Neutralidade Armada", que foi aceite pelos neutros e também pela Espanha e França e naturalmente pela Rússia mas que foi rejeitado pela Inglaterra, e também por Portugal. Nesselrod chegou a Lisboa a 4 de Junho de 1780 e teve audiência régia no dia 10 para apresentação de credenciais. Exprimiu a D. Maria I o interesse de Catarina II no estabelecimento do Tratado de Neutralidade Armada. Mas a resposta portuguesa foi negativa. Entretanto a Dinamarca e a Noruega tinham aceitado a proposta da imperatriz, que pretendia igualmente marcar a presença da Rússia como potência marítima. Em meados de 1780 saiu de Cronstadt uma frota de guerra a qual se deveria dividir em três esquadras que iriam operar no mar do Norte, no Mediterrâneo e em Lisboa. O ministro plenipotenciário russo avisa o Secretário de Estado e pede que os barcos sejam recebidos amigavelmente. A esquadra entrou em Lisboa em Setembro de 1780, possivelmente a primeira a demandar tal porto. Compunha-se de seis navios de guerra e era comandada pelo contra-almirante Ivan Borissov. O número de seis correspondia exactamente ao limite permitido à presença de navios estrangeiros no porto de Lisboa, por nacionalidade. Havia mais barcos que ficaram ao largo, possivelmente por essa razão, mas foram passando a barra e entrando pouco a pouco. Os navios acabaram por ser doze e deixaram o porto de Lisboa em Outubro. Houve um operário português que partiu a cabeça a um marinheiro russo, por uma futilidade, o que provocou o desagrado do almirante, agravado por não ter sido dada uma salva à saída, para ele poder corresponder à saudação. Mais tarde entrou uma segunda esquadra e o governo português manifestou-se desvanecido pela correção do comportamento da equipagem durante a estadia. Também os russos ficaram encantados com esta segunda visita, e com os convites recebidos em Lisboa, e o comandante da frota, Palibin, ofereceu no regresso uma grande recepção ao ministro português em Petersburgo. 

Quanto ao tratado de Neutralidade caiu por um tempo no esquecimento, até porque o que na verdade nos interessava era o tão falado Tratado de Comércio. A imperatriz nomeou uma comissão ministerial para o efeito, o que assustou D. Maria I, que recorreu ao nosso ministro em Londres, Luís Pinto de Sousa, para saber o que ele pensava acerca dos dois Tratados. Pinto de Sousa respondeu que não havia qualquer relação entre os dois Tratados.

«Entretanto os reveses sofridos pelos ingleses na guerra desencadeada pela declaração da Independência dos Estados Unidos permitiam prever uma paz próxima, o que viria dar alívio á nossa precária situação perante os acontecimentos. Pouco tempo depois [...], em Maio de 1782, ano em que a Inglaterra reconheceu a independência americana, Aires de Sá comunica ao embaixador da Rússia em Portugal, Nesselrod, que a rainha resolvera aceder à convenção da Neutralidade Armada e que iria partir para Petersburgo um emissário com as condições portuguesas para a redacção dos dois Tratados, o da Neutralidade e o de Comércio.» (p. 97)

O "Acto de Accessão de neutralidade armada" foi assinado em Petersburgo em "13 de Julho, velho estilo, q corresponde aos 24 do mesmo mez, segundo o nosso modo de contar", subscrevendo pelo lado russo o conde João de Ostermann, vice-chanceler, o major-general Alexandre de Bezborodko e o conselheiro de Estado Pedro Bacounin, e pelo lado português o nosso ministro plenipotenciário Francisco José de Horta Machado.

Por razões diversos o Tratado de Comércio foi protelado mas finalmente assinado em 20 de Dezembro de 1787, sendo signatários pelo lado da Rússia o conde de Ostermann, o conselheiro privado conde Alexandre de Woronzow, o primeiro mordomo da Corte conde Alexandre de Bezborodko e o conselheiro de Estado Arcádi de Morcoff.

«O cumprimento das determinações expressas no Tratado de Comércio exigia a criação de consulados e de vice-consulados nos territórios português e russo, pois é a essas instituições que compete proteger o comércio e a navegação dos países que representam, assim como quaisquer interesses dos naturais desses países no estrangeiro. Como, porém, já se vinham efectuando trocas comerciais entre Portugal e a Rússia desde anos muito anteriores ao da assinatura do Tratado, já se considerara, em devido tempo, a necessidade da criação desses consulados cujo estabelecimento é autorizado pelo artigo IV do referido Tratado. Este é de 1787; o estabelecimento do consulado da Rússia em Lisboa é de 1770. O primeiro cônsul português na Rússia só foi nomeado onze anos depois da nomeação do cônsul da Rússia em Portugal: este para Lisboa, aquele para Petersburgo.» (pp. 106-107)

Em 1781 foi nomeado "Consul Geral da Naçaõ Portugueza nos Dominios do dito Imperio, Cidade de S. Petersburgo, e mais Portos Maritimos dos referidos Estados" José Pedro Celestino Velho, negociante do Porto. A nomeação de um vice-cônsul em Petersburgo só foi efectuada três anos e meio depois da chegada de Celestino Velho, em 1784, e coube também a um portuense, Miguel Setaro, que já se encontrava na Rússia desde 1781. Quando Celestino Velho deixou o lugar de cônsul para se entregar a outras ocupações, Setaro foi nomeado cônsul em sua substituição. 

«Além do consulado português em Petersburgo só colhemos notícias de outros dois, no século XVIII, até à data limite deste nosso estudo, um em Riga e outro em Cronstadt, este indicado num documento como vice-consulado, e aquele, noutro documento, como consulado.» (p. 109) 

O primeiro cônsul em Riga foi José Severim, nomeado em 1789, e que já vivia na Rússia, que faleceu no ano seguinte. Foi substituído por Venceslau Teodoro Glama, em 1791. O primeiro cônsul português em Cronstadt foi Francisco José Pereira. 

O primeiro embaixador russo no nosso país, o conde Nesselrod, que chegara em 1780, pediu a demissão em 1785, pelo facto de ter enviuvado. Foi substituído provisoriamente por Henri Forssman. Havendo muitos pretendentes russos à Enviatura de Portugal, só foi escolhido um novo representante em finais de 1789, tendo recaído a escolha no conde de Rechteren de Borgbeuningen, que fora, durante anos, ministro plenipotenciário dos Países Baixos na Rússia e se resolveu a oferecer os seus serviços a Catarina II. Chegou a Lisboa em 1791. O cônsul da Rússia em Lisboa, Jean Antoine Borchers manteve-se em funções de 1770 até 1795, ano em que morreu.  Sucedeu-lhe André Dubstchévski, nomeado em 1799. Houve um cônsul russo no Porto, Pedro Vanzeller, nomeado por Catarina II em 1795; e um vice-cônsul em Setúbal, Jacob Frederico Portade.

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O livro aborda depois os estabelecimentos portugueses na Rússia e o movimento comercial entre Portugal e a Rússia, aspectos que omitiremos para não alongar este texto.

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Ribeiro Sanches, a quem já nos referimos, não foi o único português nomeado para a Academia das Ciências de Petersburgo. Pelo menos um outro português, João Jacinto de Magalhães, cientista de mérito, correspondente de várias academias, internacionalmente reconhecido no século XVIII, também pertenceu a essa instituição. Existe uma carta de Jean-Albert Euler, filho do famoso matemático suíço Leonardo Euler, endereçada a Monsieur de Magellan [como Magalhães era conhecido] Gentil-Homme Portugais Membre de l'Academie Imperiale des Sciences de Saint-Pétersbourg. Tal como Ribeiro Sanches, recebiam ambos pensões da Academia, o primeiro 1 000 rublos, Magalhães 290 rublos.

Dado o entusiasmo verificado no século XVIII pelo estudo de animais, plantas e minerais, começaram a organizar-se gabinetes de história natural. E a proceder-se a intercâmbio entre diversos países. Sendo o príncipe herdeiro D. João (futuro D. João VI) um interessado na matéria, o nosso embaixador na Rússia Horta Machado remeteu para o seu gabinete museológico diversos caixotes com minerais, exemplares de mamíferos e aves, e numerosos livros. O conde de Cheremetiev ofereceu um lince e o marechal-general Razoumovski um lobo. 

Além do gabinete do príncipe também foi contemplada a Ordem Terceira de São Francisco, instalada no Convento de Jesus, em Lisboa.  O Primeiro Geral, o franciscano José Mayne, promoveu a craição de um museu de história natural no convento. Vivia então no Porto um homem de negócios chamado Nicolau Kopke, de origem hamburguesa, aparentado com José Severim que vivia na Rússia, possivelmente aquele que foi o primeiro cônsul de Portugal em Riga. Mayne, que conhecia Kopke, pediu-lhe o envio de alguns exemplares para o seu museu, tendo Severim enviado caixotes com pássaros e animais secos, minerais do Cáucaso e da Sibéria, etc. 

«Ainda de acordo com o entusiasmo pela observação e estudo da Natureza planeou-se, na Rússia, sob os auspícios de Catarina II, a redacção de uma obra que envolvesse o estudo de todas as plantas daquele império. A obra foi encomendada a um naturalista alemão, residente na Rússia, sócio da Academia das Ciências de Petersburgo, de nome Pallas, e divulgada a sua projectada publicação por intermédio dos embaixadores das várias cortes naquela cidade. Para o efeito foi mandado imprimir um prospecto de quatro páginas, redigido em francês, com o título Annonce d'ouvrage botanique sur les Arbres, Arbustes et Plantes de l'Empire de Russie, qui sera publié par ordre et sous les auspices de Sa Majesté Impériale. O prospecto, assim realizado e distribuído segundo as normas modernas da propaganda editorial, foi enviado por Horta Machado, para Portugal, em 1782, e dele existe um exemplar no Arquivo da Torre do Tombo.» (p. 168)

«A propaganda fora feita com fins culturais porque a obra, Flora Rossica, em dois volumes, paga pelo Estado russo, só se destinava a ofertas. Do primeiro volume, saído em 1787, vieram para Portugal quatro exemplares, destinados ao príncipe regente (futuro D. João VI), ao Secretário de Estado Melo e Castro, à Biblioteca da Universidade de Coimbra e à Academia das Ciências. O segundo volume da mesma obra saiu em 1789 e dele também vieram exemplares para Portugal.» (p. 168)

Também Catarina II encomendou ao naturalista Pallas, que devia abarcar vários ramos do conhecimento, a organização de um Dicionários dos vocábulos de todas as línguas e dialectos que existem no mundo, Para este fim, Pallas deve ter-se socorrido dos embaixadores das várias cortes acreditadas em Petersburgo, incluindo Horta Machado que solicitou elementos  a Melo e Castro. O Dicionário Universal começou a imprimir-se na Rússia em 1787, e dele dizia Horta Machado que "pode ser que deste grande trabalho venha a conseguir-se alguma ideya da existência de huma lingôa May de todas as que hoje se falaõ, e que inutilmente até agora tem buscado muitos Escriptores."» (p. 169)

«Além dos portugueses que faziam parte do pessoal da nossa embaixada na Rússia e dos comerciantes que nesse país se estabeleceram, vários outros, por motivos diversos, se deslocaram até àquele longínquo império com permanência mais ou menos demorada, durante o século XVIII. Ao todo, desde António Manuel Luís Vieira até ao fim do século, tivemos notícia de cerca de quarenta portugueses que se demoraram na Rússia, sem falar nas tripulações dos navios que aí aportaram.» (p. 170)

Entre esses portugueses deve mencionar-se um fidalgo, Caetano José Correia Botelho de Mendonça Furtado Teixeira, que saíra de Portugal por motivos não declarados e que mais tarde pretendia regressar. De Portugal foi respondido a Horta Machado, que se interessara pelo seu caso (estava sem dinheiro e cheio de dívidas), que se D. Caetano estava "no Serviço Militar Russiano, fará muito bem em ficar nelle." Sabemos que, dez anos depois, em 1789, ainda se encontrava na Rússia.

Outra figura militar notável que combateu em solo russo foi o oficial Gomes Freire de Andrade, a primeira vez, ao serviço de Catarina II, alistando-se no seu exército para combater os turco na guerra de 1788-1791, a segunda vez, contra a Rússia, em 1812, fazendo parte das tropas napoleónicas invasoras desse império. Gomes Freire foi apresentado à imperatriz e a toda a família imperial e governo em 20 de Julho de 1788. Manifestou então o desejo de ingressar no exército do príncipe Potemkine. Em 1789 foi condecorado pela imperatriz com a Ordem Militar de São Jorge, a qual lhe mandou entregar em 1790, pelo príncipe de Nassau, uma espada de ouro com a inscrição "Pelo seu valor". 

Outro oficial português que combateu na Rússia foi Manuel Inácio Martins Pamplona Corte-Real, mais tarde conde de Subserra e ministro de D. João VI. Esteve a primeira vez ao serviço de Catarina II e a segunda vez ao serviço de Napoleão. 

Há ainda notícia do português José Sanches de Brito, capitão de mar e guerra, presumível autor da obra crítica da vida portuguesa, publicada anonimamente, com o título O piolho viajante. [Verifico que João Palma-Ferreira atribuiu a autoria a António Manuel Policarpo da Silva.]

O português mais notável que esteve na Rússia no século XVIII foi D. João Carlos de Bragança, 2º Duque de Lafões, fundador da Academia das Ciências de Lisboa e homem que viajou por toda a Europa. A sua presença na Rússia data de 1774, anterior à chegada do nosso primeiro ministro plenipotenciário. 

O poeta russo Sumarokov, em 1774 dedicou-lhe um poema intitulado "Ao duque de Bragança", lapso pelo facto de ser Bragança o duque de Lafões. Escreve Sumarokov: "O Sol que ilumina a Rússia é o mesmo que ilumina Portugal, e russos e portugueses são tudo homens com cabeça, pés e mãos e almas semelhantes. O que qualifica os homens, incluindo os poetas (e a propósito cita Camões, entre outros), não é o clima como algum sábio poderia afirmar, mas a sua cultura, a sua educação, as suas virtudes."

D. João de Bragança só regressou a Portugal depois de o ministro de D. José ter sido destituído do poder e foi nessa altura nomeado por D. Maria I Governador das Armas da Corte e Província da Estremadura. 

«Quanto a personalidades russas que tivessem estado em Portugal no século XVIII, sem falar nos representantes diplomáticos e na guarnição das esquadras que vieram ao Tejo, tomámos conhecimento de três a respeito dos quais não conseguimos informações quanto aos motivos que os teriam trazido até nós e dos passos que entre nós teriam dado. Um deles foi o conde de Voronzov, ministro plenipotenciário da Rússia na Inglaterra, que esteve em Lisboa em data anterior a 1763 e aqui se avistou com o marquês de Pombal; outro foi o príncipe Michelski, talvez em 1767 admitindo que a pessoa que escreveu a carta de quem extraímos a notícia trocasse os dois algarismos finais do ano em causa pois escreveu 1776 quando a carta é de 1771. A terceira personalidade russa em Lisboa, segundo o que apurámos, foi o príncipe Yossopof, a quem o marquês de Pombal se refere em carta escrita ao reitor  da Universidade de Coimbra em 6-VI-1776, nos seguintes termos: "Passando a esta Corte o Príncipe Yossopof se recolhe para a Rússia sua Patria. Aqui o tratei, e o achei muito digno de toda a estimaçaõ naõ só pelas suas qualidades, mas taõ bem pela sua boa instrucçaõ, e civilidade: Com estes motivos o recomendo a V. Exª: Previnindo-lhe, que ainda que no recebimento delle não deva haver algum ceremonial; sempre V. Exª o fará tratar com toda a attençaõ: Mandando-lhe mostrar tudo que nessa Universidade he notavel sem reserva alguma; e fazendo-o acompanhar para esse effeito pelas Pessoas, que a V. Exª parecerem mais proprias, e ceviz, e que bem se expliquem na lingua Franceza, afim de que o mesmo Príncipe possa na sua Patria especializar a attençaõ com que foi hospedado, e tratado nas Terras mais notaveis destes Reinos, assim como o foi nesta Corte".» (pp. 176-177)

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A obra inclui em apêndice 35 documentos citados no texto. 

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O livro Relações entre Portugal e a Rússia no século XVIII constitui uma notável contribuição para o estudo das nossas relações com a Rússia naquele período, pela pena de um erudito investigador, homem amante da Rússia, poeta notável e professor de elevado mérito.

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O último ministro plenipotenciário português no Império Russo foi Jaime Batalha Reis, que deixou São Petersburgo em 1918.

O Estado Novo nunca manteve relações diplomáticas com a União Soviética, embora não tivesse cortado relações com Cuba quando Fidel Castro assumiu o poder em 1959.

A III República Portuguesa estabeleceu relações com a União Soviética em 1974, sendo nomeado embaixador Mário Viçoso Neves. O nosso último embaixador na URSS foi Sérgio Ayres Trindade de Sacadura Cabral, que esteve no posto até 1990.

Ainda em 1990 foi nomeado um embaixador na Federação Russa, António Leal da Costa Lobo. O nosso atual embaixador em Moscovo é Sara Feronha Martins, que apresentou credenciais em 2025. 

 

 

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