sábado, 10 de abril de 2010

CARAVAGGIO EM ROMA


 
Após uma semana em Florença, detive-me dois dias em Roma para apreciar, nas Scuderie do Palácio do Quirinal (que foi residência dos papas e dos reis de Itália e é hoje a sede da Presidência da República), a exposição dedicada a Caravaggio, no quarto centenário da sua morte.

Esta mostra, que inclui 24 das cerca de 50 pinturas seguramente atribuídas a Caravaggio, constitui um acontecimento artístico da maior relevância a nível mundial. Inaugurada em 20 de Fevereiro, estará patente até 13 de Junho e tem sido visitada por dezenas de milhar de pessoas, estimando-se que o seu número, à data do encerramento, se eleve a um milhão. A multidão aguarda horas na fila, que se estende rua abaixo até à Via Nazionale e a única solução para uma entrada rápida é uma visita com marcação antecipada da hora (o que se pode fazer, e eu fiz, via internet).
 I Bari - Fort Worth (Texas), Kimbell Art Museum
Michelangelo Merisi nasceu em Caravaggio, próximo de Milão, a 29 de Setembro de 1571 e foi encontrado morto na praia de Porto Ercole, perto de Roma, a 18 de Julho de 1610, com 38 anos. Levou uma vida marginal, mesmo para os padrões da época, e terá sido muito provavelmente assassinado. Aliás, Michelangelo da Caravaggio, nome que passou a usar, era ele mesmo autor de pelo menos um homicídio, tendo sido diversas vezes preso e encarcerado por rixas, burlas e outros delitos. E também por uma vida sexual desregrada, apesar da sociedade do tempo, caracterizada por profundas contradições "morais", ser simultaneamente conservadora e libertina em matéria de costumes. Frequentador ocasional de prostitutas, era especialmente um amador (aquele que ama) de rapazes, com quem se deitava e que utilizava também como modelos na maior parte das suas pinturas. Certamente que nos nossos dias seria considerado um perigoso pedófilo, mas esse conceito não existia então, em pleno Renascimento, quando se prestava homenagem à herança helénica onde a efebofilia era de tradição.
 Suonatore di liuto - São Petersburgo, Museu do Ermitage
Rebelde por natureza, foi contudo protegido em Roma por duques e marqueses, cardeais e bispos, burgueses e artistas e até pelo próprio papa. Vivendo ora em tugúrios, ora em palácios, quando não em calabouços, onde passou parte da vida e donde os seus protectores o arrancavam cada vez com mais dificuldade, acabou por fugir para Nápoles, sob a ameaça de uma condenação à morte. Daí seguiu para Malta, onde aspirou, e conseguiu, o grau de cavaleiro da Ordem Soberana e Militar. Por razões não completamente claras viu-se constrangido a fugir novamente, agora para a Sicília, donde regressou a Nápoles, e veio a encontrar a morte quando tentava voltar mais uma vez a Roma.
 I Musici - New York, The Metropolitan Museum of Art
Escreveu Gilles Lambert: «Caravaggio é o pintor mais misterioso e, sem dúvida, o mais revolucionário da história da arte. Em Roma, trinta e quatro anos após a morte de Miguel Ângelo, ele esteve na origem de uma reacção violenta contra "o Maneirismo", ou seja, a forma de pintar dos mais velhos, que ele considerava limitados, afectados e académicos. Impôs uma nova linguagem, realista, teatral, escolhendo em cada tema o instante mais dramático, recrutando os modelos na rua, mesmo para as cenas mais sagradas como A Morte da Virgem, não hesitando em pintá-los de noite, o que poucos artistas, antes dele, tinham ousado, Ele proclamou o primado da natureza e da verdade.»
 Ragazzo con canestra di frutta - Roma, Galleria Borghese
Os seus temas preferidos são de natureza profana, mas na Roma Papal não hesita (até porque tem de sobreviver) aceitar encomendas de temas de carácter religioso, pinturas aliás muitas vezes recusadas pela ousadia na escolha dos modelos ou no posicionamento das personagens. Também em Nápoles, em Malta, na Sicília, deixa marcas indeléveis do seu génio artístico.
 Bacco - Florença, Galleria degli Uffizi
Caravaggio sempre preferiu o povo, e de preferência as suas franjas marginais, às classes mais elevadas da hierarquia social, com quem era obrigado a conviver por causa do seu trabalho. Por isso, é natural que surjam rostos e corpos pouco ortodoxos em figuras religiosas que era suposto serem objecto da maior veneração. Isso lhe valeu as censuras e rejeições que o seu génio sempre ultrapassou.
 Conversione di Saulo - Roma, Colecção particular
Não sendo intenção traçar aqui uma, mesma que magríssima, epítome da biografia do Caravaggio, importa dizer que as suas obras provocaram tal indignação e escândalo, que o artista acabou por ser esquecido durante três séculos. Só a partir dos anos vinte do século passado, devido aos trabalhos de Roberto Longhi, é que foi verdadeiramente redescoberto e reconhecido na sua verdadeira dimensão. Muitas das suas obras foram então atribuídas a rivais e só hoje foi devidamente comprovada a sua autenticidade, problema sempre complexo em relação a autores do período em questão. Disse o eminente crítico Bernard Berenson: «Depois de Miguel Ângelo, nenhum pintor italiano teve tanta influência.» 
 Cena in Emmaus - Londres, The National Gallery
A exposição ora realizada, que apresenta apenas (e já é muito) as principais telas emprestáveis e transportáveis, demonstra plenamente a colecção de obras-primas saídas das mãos de Caravaggio. Tivera ele uma vida ordeira, académica, bem-comportada, e jamais veríamos as inigualáveis pinturas hoje expostas nas Scuderie do Quirinale. Ainda bem que, apesar da desordem da sua vida, alguns dos grandes da época o protegeram e apoiaram quanto puderam, compreendendo que não era possível aprisionar o génio.
 San Giovanni Battista - Roma, Pinacoteca Capitolina
 San Giovanni Battista - Kansas City (MO), The Nelson-Atkins Museum of Art
 
 San Giovanni Battista - Roma, Galleria Nazionale d'Arte Antica di Palazzo Corsini
Entre as telas expostas, destacam-se I Bari, Suonatore di liuto, I Musici, Ragazzo con canestra di frutta, Bacco, Canestra di frutta, Conversione di Saulo, Cena in Emmaus (2), San Giovanni Battista (3), Cattura di Cristo nell'Orto, Amore Vincitore, Flagellazione di Cristo, Davide com la testa di Golia
 Amore vincitore - Berlim, Staatliche Museen, Gemäldegalerie
Os quadros expostos são provenientes de colecções italianas e estrangeiras. Em Roma, podem ver-se ainda (porque não figuram na exposição) pinturas de Caravaggio na Galleria Borghese, no "Casino" Ludovisi, no Palazzo Barberini, na Igreja de Santa Maria del Popolo, no Museu Capitolino, na Galleria Doria Pamphilj, na Igreja de San Luigi dei Francesi, na Galleria Corsini e na Pinacoteca do Vaticano.
 Cattura di Cristo nell'Orto - Dublin, National Gallery of Ireland
Sobre Caravaggio, podem consultar-se, além do catálogo da Exposição, de Claudio Strinati, as obras de Roberto Longhi, Gilles Lambert, Andrew Graham-Dixon, Sebastian Schutze, Helen Langdon, Timothy Wilson-Smith, Neil Griffiths, Rossella Vodret e Francesco Buranelli, Francine Prose, Stefano Zuffi, etc.
 Davide con la testa di Golia - Roma, Galleria Borghese

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente(em geral) post,excelente iconografia. A ausência de comentários até agora só vem provar que a iliteracia que nos assola,e que tão bem resumiu Graça Moura recentemente no D.N.,tambem se reflecte afinal na blogosfera. Algumas rápidas observações,dada escassez de tempo ocasional,e que poderão ser prosseguidas posteriormente Aliás parece-me óbvio que observações e discordâncias só enriquecem os debates e a própria blogosfera. Se nem toda a gente pensa assim,mais sinais de iliteracia...
1)Marginalidade. Pelo próprio texto se verifica que o "Pictor Praestantissimus" não seria um marginal no sentido corrente do conceito. Protegido por Papas,Cardeais,famílias aristocráticas,congregações eclesiásticas,vivendo anos no palácio do Cardial Del Monte,seu primeiro protector,não parece estarmos perante um Rimbaud ou um Basquiat,autênticos marginais.Digamos que tinha um pé nas elites do poder,e outro no sub-mundo das tabernas e das aventuras amorosas irregulares, então de facto facto bem menos chocantes do que hoje (senão mesmo nada chocantes para os contemporâneos).
2)Olvido. Desde pelo menos os anos 70,com a importante exposição co Grand Palais "Caravage et les Caravagesques" que este comentador (e a crítica em geral)sabe a enorme e longa influência que a pintura de Caravaggio teve em toda a Europa,pela sua teatralidade,pelo seu chiaroscuro,pelo seu realismo de modelos populares,etc. É verdade que o século XIX o ignorou,compreensivelmente com o classicismo de um David ou Ingres,menos com o romantismo de Delacroix. Mas dirijam-se os atentos leitores do blogue para o site da Skira,e verão como se prepara uma obra monumental sobre os discípulos do Mestre em toda a Europa.
3)Anti-Maneirismo. Este é um assunto sério,pois o estilo do nosso pintor não seria possivel sem a aventura formal e conceptual do Maneirismo,de um Rosso,de um Pontormo,etc.,mesmo se é verdade que se "reagiu".Mas o meu tempo esgotou-se,e espero prosseguir.

Anónimo disse...

Olá! Sou apaixonada por história da Arte e por ela já fui a Florença 2 vezes. Com a descoberta deste blog (Em pesquisas do Caravaggio) Soube desta exposição. Farei de tudo para lá voltar tentar a minha sorte nas longas filas que presumo serem uma constante nesta exposição. Obrigada pelo post e parabéns pelo blog!

Claudia