A vida de Michelangelo Merisi, dito o Caravaggio (1571-1610), tem inspirado numerosos escritores e cineastas.
Li agora La Course à l'abîme, de Dominique Fernandez, que comprara em 2002, quando o livro foi publicado. Trata-se de um romance (talvez não caiba na designação de romance histórico) em que o autor traça uma biografia imaginária (ainda que respeitando os factos essenciais) de Caravaggio, sob a forma de uma autobiografia do pintor, até às vésperas da sua morte, obviamente.
Homem de uma erudição imensa, cultivando todos os géneros literários, dotado de notável sensibilidade, crítico musical e historiador da arte, profundo conhecedor da Itália e da Rússia, Dominique Fernandez (n. 1929), completará 95 anos no próximo dia 25 de Agosto. Em 1974 obteve o Prémio Médicis, em 1982 o Prémio Goncourt e em 2009 o Prémio François Mauriac. Em 2007 foi eleito para a Academia Francesa, da qual se tornou o decano, em 5 de Agosto de 2023, por morte de Hélène Carrère d'Encausse. A sua obra conta mais de 70 títulos.
Abertamente homossexual, esteve casado entre 1961 e 1971 com Diane de Margerie, de quem tem dois filhos, Laëtitia Fernandez e Ramon Fernandez.
Dominique Fernandez |
O livro, de quase 800 páginas, percorre, numa escrita barroca, o itinerário de Caravaggio, semeando estórias inventadas pela imaginação fértil do autor (embora verossímeis) na descrição dos factos reais. Sendo escassa a documentação sobre o "pintor maldito", mesmo assim Dominique Fernandez investigou pormenorizadamente a sociedade do tempo, o que lhe permitiu conferir à narrativa um considerável grau de autenticidade. Também os imensos conhecimentos do autor em História Sagrada e História da Igreja, em vida de santos e mitologia, em pintura e em música, contribuíram para outorgar ao romance um carácter didáctico.
Ao longo da obra aparecem as personagens da Igreja Católica que, de uma forma ou de outra, protegeram Caravaggio. A começar pelo cardeal Francesco Del Monte e depois pelos cardeais Pietro Aldobrandini, Scipione Borghese, Federico Borromeo, Ascanio Colonna, Odoardo Farnese, Ferdinando Gonzaga ou Benedetto Giustiniani e mesmo os papas Clemente VIII e Paulo V. Ou figuras como monsenhor Maffeo Barberini (mais tarde papa Urbano VIII), o marquês Vincenzo Giustiniani, a marquesa Costanza Colonna Sforza, etc.
O livro dedica especial atenção aos ajudantes, discípulos e amantes de Caravaggio. Especialmente a dois que viveram largo tempo com ele e lhe serviram de modelo para muitos quadros.
Em primeiro lugar Mario Minniti (1577-1640) um rapaz siciliano de 16 anos que conheceu em Roma e posou para várias telas: "Rapaz com um cesto de fruta" (1593), "A Adivinha" (1594), "Os Músicos" (1595), "Rapaz mordido por um lagarto" (1596), "O Tocador de alaúde" (1596), "Baco" (1596), "A Vocação de São Mateus" (1599-1600), "O Martírio de São Mateus" (1599-1600).
O sucessor de Mario foi Francesco Boneri, que Caravaggio abrigou em 1601, tinha o rapaz 12 anos. Boneri, que era tratado pelo diminutivo de Cecco (e ficou conhecido por Cecco del Caravaggio), substituiu Mario, que se afastou do pintor por ciúmes e também porque, na tradição siciliana, pretendia casar-se. Cecco terá nascido por volta de 1589 e desapareceu de circulação em meados dos anos 1620, tendo sido, não obstante o seu feitio insuportável, um razoável pintor. Serviu de modelo para "Amor vincit omnia" (1602), a célebre pintura que se encontra na Gemäldegalerie de Berlim, "Saul I" (1601), "São João Baptista no deserto II" (1602), "O Sacrifício de Isaac II" (1603), "David com a cabeça de Golias II" (1606), "David com a cabeça de Golias III" (1607). O historiador australiano Peter Robb, indica em M (1998), a sua biografia de Caravaggio, quais os rapazes (e homens e mulheres) que serviram de modelo para as suas pinturas.
Há duas coisas nesta obra que me interpelam. A primeira é existência em Milão (à época) de uma Igreja de São João Evangelista dos Portugueses, onde Caravaggio, então com 17 ou 18 anos e aprendiz de pintor na loja de Mestre Simone, teria tido, pela primeira vez, relações homossexuais com um rapaz de 25 anos, Matteo, que era já pintor e seu colega naquela loja. É que, segundo o autor, esta igreja serviria de ponto de encontro da Seita dos Portugueses, ou seja um grupo de homens e rapazes que aí se reuniam e entregavam a práticas sexuais. Mais tarde, viriam a ser todos presos e condenados pela Inquisição. Caravaggio foi também preso mas devido à intercessão da marquesa Colonna ("suserana" da sua aldeia natal), Caravaggio escapou à morte.
A outra interrogação reside no facto de Fernandez chamar Gregorio ao segundo companheiro e modelo de Caravaggio, quando é amplamente sabido que o rapaz se chamava Cecco. Já em 2002, quando o livro foi publicado, a identidade era bem conhecida e certamente não desconhecida do autor. Então, porquê Gregorio em vez de Cecco?
Pode resumir-se assim a vida de Caravaggio:
1571-1584 - Infância em Caravaggio (Bérgamo).
1584-1595 - Estada em Milão, como aprendiz de pintor, na oficina de Mestre Simone.
1595-1606 - Estada em Roma (incluindo um breve exílio em Génova para onde fugira devido a graves desacatos). Em 1606, mata um sicário, Ranuccio Tomassoni, é condenado à morte pelo Papa e foge para Paliano (a alguns quilómetros a sul de Roma), feudo do príncipe Filippo, sobrinho da marquesa Colonna. Não se encontrando, todavia, em perfeita segurança, parte para Nápoles.
1606-1607 - Estada em Nápoles, aguardando a prometida graça pontifícia, que tarda em chegar.
Alof de Wignacourt, Grão-Mestre da Ordem de Malta (1547, 1601-1622). Encontra-se no Museu do Louvre |
1607-1608 - Estada em Malta, para onde se dirigiu com a recomendação do príncipe Fabrizio Sforza Colonna, filho da marquesa e almirante da frota maltesa. Com derrogação de alguns princípios, é feito cavaleiro de Malta pelo Grão-Mestre Alof de Wignacourt (de quem pinta o retrato, acompanhado por um jovem pajem). Em 1608 é preso por gravíssimo delito, nunca explicitado. Segundo a estória de Dominique Fernandez, Caravaggio teria seduzido (ou sido seduzido) pelo pajem do Grão-Mestre (que seria amante deste) e tê-lo-ia raptado, alojando-se ambos inadvertidamente no Albergue da Língua de Castela. Seriam ambos presos. [Segundo um amigo meu, que é cavaleiro da Ordem de Malta, o pajem seria Nicolas de Paris]. Caravaggio consegue evadir-se e ruma numa barcaça para Siracusa, na Sicília.
1608-1609 - Estada em Siracusa, onde os agentes do Grão-Mestre o perseguem.
1609-1610 - Parte para Nápoles, onde o príncipe Luigi Carafa lhe concede alojamento. Continuando a perseguição, e julgando eminente a graça do Papa Paulo V, resolve abandonar a cidade de barco e instalar-se a norte dos Estados Pontifícios à espera do iminente indulto. Está febril e esgotado. É encontrado morto na praia de Porto Ercole (a norte de Roma), devido a doença (ou a assassinato para lhe roubarem algumas pinturas que transportava), sendo o óbito registado no hospital local em 18 de Julho de 1610. Tinha 38 anos.
A única tela assinada pelo pintor (Michelangelo) é "A Degolação de São João Baptista", que se encontra no Oratório da Co-Catedral de São-João, em La Valetta (Malta).
Registei em meia-dúzia de linhas alguns aspectos da vida do pintor após ter lido o livro de Dominique Fernandez que, sendo ficção, ilustra as obras realmente históricas que já conhecia. A verdadeira biografia de Caravaggio, apesar de desconhecermos muitos factos da sua vida, ocupa largas centenas de páginas.
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