Revi e reouvi The Merchant of Venice, de André Tchaikowky, numa produção do Festival de Bregenz em 2013, com libretto de John O'Brien, a partir da peça homónima de William Shakespeare.
Importa desde já esclarecer que André Tchaikowsky nada tem a ver com o famoso compositor russo. Trata-se do compositor e pianista polaco Robert Andrzej Krauthammer (1935-1982), mais conhecido por ter legado o seu crânio à Royal Shakespeare Company para ser utilizado na cena de Yorick do Hamlet.
Judeu (e homossexual, segundo o extra do DVD), conseguiu fugir do ghetto de Varsóvia, com papéis falsos sob a identidade de Andrzej Czajkowski, vivendo escondido com a avó até 1945. Emigrou para Inglaterra em 1956, onde viria a morrer prematuramente vítima de cancro. Devem-se-lhe várias peças musicais, entre as quais dois concertos para piano e a presente ópera, escrita na sua maior parte em 1978. Em 1981 submeteu a obra à English National Opera, sob a presidência de Lord Harewood e a direcção artística de David Pountney, tendo a mesma sido recusada em Março de 1982. Gravemente doente, Tchaikowsky morreria três meses mais tarde, com o desejo de que a ópera fosse levada à cena.
A estreia absoluta teria lugar no Festival de Bregenz em 2013, com a Wiener Symphoniker dirigida por Erik Nielsen e encenação de Keith Werner, ocorrendo a estreia britânica em 2016, com a Welsh National Opera.
Admirador de William Shakespeare, Tchaikowsky compôs esta ópera com a intenção de refutar as acusações de anti-semitismo de que é frequentemente alvo o célebre dramaturgo inglês. Não julgo que o tenha conseguido, já que a personagem Shylock evidencia perfeitamente o tipo de usurário que caracterizava os judeus na época isabelina e se prolongou (ainda que em circunstâncias diferentes) até aos nossos dias. No próprio making-of da produção de Bregenz se faz alusão aos Rothschild, a grande família de banqueiros judeus europeus de que Shylock seria uma pré-figuração.
A ideia do compositor seria a de assinalar o contraste (ou semelhança) entre as duas personagens centrais da peça de Shakespeare: António (o mercador), claramente homossexual, e Shylock (o prestamista), realmente judeu, dois tipos de pessoas socialmente excluídas no Renascimento. Sendo Tchaikowsky homossexual e judeu, O Mercador de Veneza servia magnificamente para ilustrar a sua condição de marginal no mundo do seu tempo, ainda que não muito distante do momento actual.
A encenação situa a ópera no século passado e, segundo o propósito do autor (e obviamente o de Shakespeare), a afeição de António por Bassânio não deixa lugar a dúvidas. Tal como a cupidez de Shylock. Curiosamente, há também uma cena de clara ambiguidade sexual entre Pórcia e a sua aia Nerissa. A música é algo estranha, não se enquadrando nas correntes definidas do século XX.
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