domingo, 5 de maio de 2024

OS PODERES DAS TREVAS

Em 1986 comprei, por sugestão de um amigo, Les puissances des ténèbres (1981), de Anthony Burgess (1917-1993), publicado no ano anterior com o titulo Earthly powers. Conhecia do autor A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica), editado em 1962, de que Stanley Kubrick extraiu o filme homónimo, realizado em 1971, que vi pela primeira vez em Londres em 1973 (estava então proibido em Portugal) e que, dado o sucesso retumbante, haveria de dar a volta ao mundo.

Mas, como acontece com muitas centenas de livros, apesar do meu presumível interesse no assunto, deixei ficá-lo numa estante, aguardando oportunidade de leitura, já que então tinha outros compromissos. Por um acaso do destino (se é que há acasos do destino) o mesmo amigo falou-me dele há dias, e, interrompendo outras leituras, merecendo também prioridade, decidi lê-lo agora, sem mais demora, apesar das suas quase 1 300 páginas, na edição francesa a que me refiro.

Anthony Burgess (1917-1993) é um dos grandes escritores britânicos do século XX e, sendo vasta a sua obra, Earthly powers é um dos seus melhores livros, certamente superior a A Clockwork Orange, também famoso mas que beneficiou do incomparável sucesso do filme, onde Kubrick empenhou o seu génio criador.

Não tenho a pretensão de fazer aqui uma resenha do livro, até porque seria impossível, dada a extensão da obra e a variedade dos temas tratados. Pode, todavia, afirmar-se que o requintado sentido de humor de Burgess é magistralmente demonstrado nesta obra. Sendo um homem cultíssimo, o autor não é minimamente alheio a qualquer dos assuntos versados e são notáveis os seus conhecimentos de literatura, música, teatro, religião, sexualidade; bem poderíamos dizer, parafraseando Terêncio, que nada do que é humano lhe é estranho. Tratando-se de uma obra de ficção, ela está situada num período histórico que vai do começo da Primeira Guerra Mundial até próximo da altura em que foi escrita (1980), constituindo um grande fresco do meio século central do século passado. Por ela perpassam figuras reais, amigos e conhecidos do protagonista (e do autor), como James Joyce, E.M. Forster, Graham Greene,  Aldous Huxley, T.S. Eliot, Rudyard Kipling, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Alice Toklas e outros hoje menos conhecidos do público em geral.

Por curiosidade, transcreve-se o primeiro parágrafo do livro : «C’était l’après-midi de mon quatre-vingt-unième anniversaire, et j’étais au lit avec mon giton, lorsque Ali vint m’annoncer la visite de l’archevêque.»

A acção desenvolve-se em torno da vida do protagonista, Kenneth Toomey, escritor homossexual mundialmente conhecido (em alguns aspectos um alter ego do autor, porém mais precisamente do escritor britânico Somerset Maugham), mas Burgess incrusta numerosas estórias paralelas ao longo da narrativa (82 capítulos), porventura supérfluas para a economia do enredo mas possivelmente indispensáveis para a criação do clima em que pretende envolver o leitor. E o trajecto do romance é, também, de alguma forma, autobiográfico, reproduzindo em certa medida o percurso geográfico do autor. É por isso que as 1 300 páginas talvez não pudessem ser reduzidas a umas 600 ou 700, ainda que sem prejuízo da trama mas em detrimento de um horizonte que se desejava mais vasto.

As personagens centrais são o referido Kenneth Toomey (o narrador), sua irmã Hortense e o seu marido, Domenico Campanati, e o irmão deste, Carlo Campanati, que seria, nos últimos anos de vida, o Papa Gregório XVII (que nunca existiu na Santa Sé, embora tenha havido um prelado que assim se intitulou e a quem nos referiremos mais abaixo).

O romance de Anthony Burgess é uma crítica impiedosa, e irónica, da sua época e antecipa a emergência de alguns fenómenos que viriam a revelar-se por vezes de forma radical, nos nossos dias, como o feminismo, o climatismo, o racismo anti-branco, a disseminação de seitas religiosas.

Há uma questão que é recorrente ao longo do livro: a recusa da aceitação da homossexualidade pela Igreja Católica, cuja doutrina, cerimónias e história são do perfeito conhecimento do autor. Aliás, Burgess é um especialista em religiões, e as dissertações teológicas de Toomey nas conversas com o seu cunhado Carlo Campanati, o futuro Papa, revelam um profundo conhecimento da matéria.

Uma parte razoável do livro refere-se à permanência do narrador na Alemanha, antes e durante o período nazi, onde este tenta facilitar (debalde) a fuga de um célebre escritor judeu alemão, Strehler, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1935. Note-se que não existiu esse escritor Strehler e o Prémio não foi atribuído em 1935, o que evidencia que Burgess esteve sempre atento à relação da ficção com a realidade. Ainda na Alemanha, anteriormente, Toomey terá instintivamente salvo o Reichsführer Henrich Himmler de um atentado, o que lhe valeu a benevolência germânica ao envolver-se na tentativa de salvar Strehler.

O padre Carlo Campanati é uma figura fundamental na obra. Irmão do compositor Domenico Campanati, que se casaria com Hortense, irmã de Toomey, viria a ser cunhado do protagonista. Homem corpulento e vulgar, possuía ideias pouco ortodoxas sobre a religião católica. Escreveu mesmo um livro, a coberto do nome famoso do cunhado (capítulo 44), A Verdadeira Reforma: Projecto de Reorganização das Instituições do Cristianismo, Acompanhada de Algumas Notas sobre as Técnicas da Associação com as Confissões Aparentadas), onde expunha a sua concepção do catolicismo, desejando uma transformação profunda das práticas vigentes e a convocação de um Concílio. Mais tarde, seria diplomata da Santa Sé na Nunciatura Apostólica em Washington, bispo de Moneta (esta cidade não existe, talvez seja uma piscadela de olho a Modena ou a invocação da deusa Juno, de que é um epítome), arcebispo de Milão, cardeal e finalmente Papa, com o nome de Gregório XVII, após a morte de Pio XII em 1958. No Conclave que o elevou ao sólio pontifício fora eleito o débil Patriarca de Veneza, que recusou a eleição e caiu fulminado por um ataque de coração. O caso foi mantido no segredo do Conclave e foi realizado novo escrutínio em que Carlo Campanati obteve a necessária maioria de dois terços. 

Devo esclarecer que pela Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, do Papa João Paulo II a regra dos dois terços foi substituída pela maioria absoluta.

Voltemos a Campanati. Como o leitor já compreendeu, Gregório XVII é de alguma forma uma personificação de João XXIII, sem todavia se poder identificar com ele. O Papa ficcionado de Burgess identificaria o cristianismo com o marxismo, viajaria até Moscovo e por todo o mundo, o que neste caso o torna mais próximo de João Paulo II, o Papa globetrotter. Também é curiosa a morte no Conclave do Patriarca de Veneza, que teria sido envenenado pelo próprio Campanati antes do escrutínio fatal. Outra piscadela de olho de Burgess à História, já que o Papa João Paulo I, que morreu misteriosamente após 33 dias de pontificado, fora Patriarca de Veneza.

Importa, todavia esclarecer que houve realmente um Papa Gregório XVII, Clemente Domínguez y Gómez, membro da Igreja Cristã Palmariana e homossexual público, que foi proclamado Papa após a morte não de Pio XII mas de Paulo VI, em 1978. A Igreja Palmariana ainda hoje existe, em Sevilha. Por sua morte, em 2005, foi eleito Manuel Corral, que tomou o nome de Pedro II e exerceu funções até à sua morte em 2011. Também teve um sucessor, Ginés de Jesús Hernández, com o nome de Gregório XVIII, que renunciou em 2016, para casar com uma freira. Sucedeu-lhe Markus Joseph Odermatt, com o nome de Pedro III, suíço, o primeiro não espanhol a aceder a essa cátedra e que ainda se mantém em funções. Anthony Burgess nada deixou ao acaso.

A Igreja Cristã Palmariana é uma seita religiosa tradicionalista, que tem entre os seus santos Francisco Franco, Luis Carrero Blanco, Primo de Rivera, Calvo Sotelo e Escrivá de Balaguer, mas reconhece todos os santos canonizados pela Igreja Católica até à morte de Paulo VI.

Voltemos ao romance. Estando Campanati em missão nos Estado Unidos, onde também habitava o seu irmão Domenico, encontrou-se com Toomey (em digressão literária) num hospital onde se encontrava moribundo, vítima de um atentado da Máfia, o seu outro irmão Raffaele. É nessa altura que Campanati opera um milagre, curando uma criança. Quando no começo do livro se refere que ele é visitado (em Valeta, onde então residia) pelo Arcebispo de Malta, a missão do prelado é exactamente pedir o seu testemunho para a canonização de Carlo, que entretanto morrera em odor de santidade. Toomey habitou um certo tempo (depois de deixar Marrakech e Tânger) em Valeta com o seu secretário e amante, o jovem e belo negro americano Ralph Pembroke, irmão de Dorothy Pembroke, uma outra negra, bela e inteligente, que vivia com Hortense, a irmã de Toomey, que tendo-se separado de Domenico se tornara lésbica (ou sempre o fora). 

Deve ainda notar-se que Campanati procedia a exorcismos e que no dia da sua morte um dirigente de uma seita religiosa americana, Godfrey Manning, procedeu ao extermínio pelo fogo de milhares dos seus seguidores para tentar fugir dos Estados Unidos. Manning fora a criança que Campanati salvara outrora da morte através de um exorcismo.

A vastidão de episódios narrados por Burgess ao longo do livro não permite mais do que alguns apontamentos. Por exemplo, a oposição de Campanati (então no Vaticano) ao Duce a propósito do Tratado de Latrão (11 de Fevereiro de 1929), entre a Itália e a Santa Sé, assinado por Mussolini e o Cardeal Pietro Gasparri, Secretário de Estado. Escreve Anthony Burgess (capítulo 43) que na realidade não houve um tratado mas três. Em primeiro lugar, o Pacto de Latrão, que criava o novo Estado da Cidade do Vaticano. A seguir, uma convenção financeira, nos termos da qual a Itália entregava ao Vaticano o equivalente a noventa milhões de dólares, uma parte em fundos líquidos e a outra em títulos do Estado e concordava em pagar o salário dos sacerdotes das paróquias. Por fim, uma concordata que isentava de imposto o clero e reconhecia ao Vaticano o controlo financeiro de certas organizações ditas eclesiásticas em toda a Itália. A concordata interditava também a Bíblia protestante e as reuniões evangélicas, mesmo privadas. O catolicismo era reconhecido como religião oficial do Estado italiano e ensinado nas escolas. 

A sucessão de lugares onde a acção decorre, o elevado número de personagens te o vasto horizonte temporal torna por vezes difícil seguir o "fio da meada" mas o livro é verdadeiramente fascinante.

Anthony Burgess

Não me alongarei, recomendando com insistência a leitura desta obra de grande fôlego.

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