terça-feira, 17 de junho de 2014

AS PROSTITUTAS E OS SOLDADOS




Agora, que o valor estimado da prostituição vai ser incluído no PIB dos países europeus, é oportuno revisitar o livro de Francisco Ignacio dos Santos Cruz, Da Prostituição na Cidade de Lisboa, publicado em 1841 e reeditado em1984, a que fiz referência no post que publiquei sobre a Preta Fernanda.

Trata-se do primeiro estudo sério sobre a prostituição feminina no nosso país, assunto abordado na literatura portuguesa do século passado em obras como A Princesa de Boivão, de Alberto Pimentel, Pérola, de Marcelino Mesquita, Severa, de Júlio Dantas, Rosa Enjeitada de D. João da Câmara ou Fado, de Bento Mântua. Também entre os autores estrangeiros a figura da prostituta foi largamente glosada, distinguindo-se o romance de Alexandre Dumas (Filho) A Dama das Camélias, que serviria de argumento à célebre ópera La Traviata, de Verdi.

O volumoso livro de Santos Cruz pretende, ao que parece, esgotar o assunto. Trata, e resumimos, da história da prostituição, das classes de prostitutas, de aspectos fisiológicos e patológicos das prostitutas, dos seus costumes e hábitos, do seu número e distribuição na cidade de Lisboa, dos lugares, famílias e idades das prostitutas, das causas da prostituição, do Virus venereo, das casas públicas de prostituição (taxas, polícia, visita sanitária, distribuição das casas pela cidade, donas das casas) e legislação antiga e moderna em Portugal e no mundo.

Pela sua curiosidade, transcrevemos da Secção Segunda (Virus venereo) da Primeira Parte, o Artigo 3º do Capítulo II (Meios influentes no incremento e propagação do Virus venereo - Exército de terra):


«É inegável que o aumento da propagação do Virus venereo está na razão directa do aumento da prostituição; e também se não pode duvidar de que o exército concorre para o incremento da prostituição. É portanto o exército uma causa influente na propagação do Virus venereo; a razão e a experiência provam suficientemente qualquer dos dois princípios enunciados. Todos os escritores sobre as enfermidades dos exércitos dizem que o maior número de moléstias que se encontram nas tropas são as venéreas, e até em número superior a todas as outras. A estatística provou a um escritor que as moléstias venéreas das prostitutas sujeitas à vigilância das autoridades administrativas eram na razão de 1:3 e que eram estas muito mais graves do que as outras. Também ele assevera que, se as leis da Natureza são sempre constantes e invariáveis, também as há na ordem social com esta constância e invariabilidade; sendo uma delas que por toda a parte onde se encontram soldados reunidos em certo número, aí se encontram prostitutas. Isto se observa em todas as nações e é o que se vê entre nós apesar de todas as leis repressivas e apesar de todos os rigores da disciplina militar.

Com efeito, os soldados são homens de ordinário bem constituídos, na flora dos seus anos, em plena liberdade, pela maior parte solteiros, e entregues a todo o fogo e violência das paixões da idade viril, etc. o que tudo produz infalivelmente o incremento da prostituição (e, portanto, o da propagação do Virus venereo, se não houver a devida fiscalização). Isto se observa nas meretrizes frequentadas pela tropa ou naquelas que acompanham a mesma tropa e que se pretendem decorar com o título de parentas ou como lavadeiras ou vivandeiras, etc. O nosso exército está hoje mui reduzido, por isso não representa aquela aluvião enorme de mulheres que se encontravam no tempo da campanha peninsular e quando todos os regimentos de infantaria de linha contavam acima de 1500 praças.
.....Os pais entregam para o serviço militar homens robustos e sadios, e pelos deboches de todos os géneros a que se entregam durante este serviço, quando voltam às suas casas, as suas famílias recebem em troca homens valetudinários e enfraquecidos pelo vírus sifilítico.....

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É, pois, indispensável inspeccionar com todo o escrúpulo os soldados semanalmente, ou maior número de vezes, e logo enviá-los ao hospital quando doentes; e além dos órgãos sexuais, também o ânus e os órgãos vocais, se na voz houver qualquer alteração.

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E é preciso atender à idade e ao fogo violento das paixões que arrastam os homens a acções que por tais motivos merecem a nossa consideração.....»


O diagnóstico de Santos Cruz é pertinente mas não exaustivo, dado que o seu propósito se circunscrevia ao problema da contaminação venérea. Tivesse ele escrito o livro um século mais tarde, e sem preconceitos, e a abordagem seria certamente diferente.

Hoje, que já não existe exército de conscritos mas apenas tropas mercenárias, os comentários de Santos Cruz perderam actualidade. Aliás, ainda no tempo do serviço militar obrigatório, e mesmo quando ainda existiam casas de prostituição legais no nosso país, muitos soldados já satisfaziam os seus desejos utilizando esquemas alternativos, que não os obrigavam a esportular o magro soldo mas, ao contrário, lhes permitiam auferir simbólica remuneração por serviços prestados.

A propósito da extinção do serviço militar obrigatório (SMO), registe-se que tal iniciativa deveu-se à pressão desenvolvida pelas juventudes partidárias (as inenarráveis "jotas") que desde há décadas porfiam em destruir a democracia em Portugal.

Todavia, o fenómeno não é exclusivamente doméstico. Nos outros países da Europa (comunitária) verifica-se idêntica atitude, não pela intenção piedosa de evitar que os mancebos percam um ou dois anos de vida no serviço público antes de ingressarem numa profissão, mas porque tropas de recrutamento são sempre susceptíveis de derrubar regimes impopulares e ilegítimos, como se verifica actualmente no Mundo Ocidental. Com tropas mercenárias certamente não teria havido o 25 de Abril em Portugal. E a desculpa de começarem a carreira profissional mais cedo também não colhe numa Europa em que desde há anos é dificílimo encontrar emprego.

Voltando ao tema, forçoso é concluir que sempre os soldados, pelo menos os do SMO, mantiveram uma relação estreita com a prostituição. O mesmo se dirá dos marinheiros, sobre os quais Santos Cruz igualmente elabora no seu livro.

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