domingo, 13 de agosto de 2023

OS GRÃO-MESTRES PORTUGUESES DA ORDEM DE MALTA

 


Comunicação apresentada pelo Embaixador Fernando Ramos Machado no "Colóquio Portugal e a Ordem de Malta", na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 9 de Maio de 2022.

 

DOIS GRÃO-MESTRES PORTUGUESES

(E UM QUE NÃO O ERA)

 

INTRODUÇÃO

 

Os Hospitalários que, só muito mais tarde, viriam a ser designados por Ordem de Malta, foram reconhecidos pela Santa Sé, em 1113. Escassos 20 anos depois, iniciaram a sua implantação em território do então ainda Condado Portucalense

Foi o princípio de um relacionamento que dura até hoje. Ainda que o cenário da acção dos Hospitalários fosse o Mediterrâneo e Portugal tivesse estado presente sobretudo noutras zonas do Globo, não faltaram nunca portugueses combatendo nas fileiras da Ordem do Hospital, ou exercendo cargos relevantes nas suas estruturas de Governo. Quatro ascenderam mesmo à Dignidade suprema de Grão-Mestre; foram eles:

- Afonso de Portugal

- Luís Mendes de Vasconcelos

- António Manoel de Vilhena

- Manuel Pinto da Fonseca

(Entre 29 de Abril e 8 de Novembro de 2020 e, por poucos dias, em Junho de 2022, presidiu interinamente à Ordem, como Lugar-Tenente, o português Ruy Gonçalo Villas-Boas).

 

Vasconcelos e Vilhena foram eleitos com 100 anos de intervalo, em 1622 e 1722.Assim, em 2022, passam 400 e 300 anos, respectivamente, sobre as suas eleições. Foi essa dupla efeméride que a Sociedade de Geografia entendeu dever ser assinalada, com um Colóquio, a 9 e 10 de Maio. Nele proferi uma Conferência, da qual o presente trabalho é uma versão alargada, e que consta de 3 Partes:

1ª Parte -  “ Luís Mendes de Vasconcelos”

2ª Parte -  “O Grão-Mestre que não era português”

3ª Parte – “ D.António Manoel de Vilhena”

No que toca a Luís Mendes de Vasconcelos, dispomos, excepcionalmente, de uma pequena biografia, publicada em 1672, meio século exacto, apenas, após a sua eleição. Foi seu autor António Pereira de Lima, da Ordem de Malta, Comendador de Sernancelhe, sobrinho de outro António Pereira de Lima, que fora companheiro e protegido de Vasconcelos. A obra, em espanhol, é dedicada ao Grão-Mestre Nicolau Cotoner, cujo irmão e predecessor, Rafael, conhecera bem o biografado e prestou ao autor informações relevantes.

Em 1731, Miguel Lopes Ferreira publicou uma tradução em português, dedicada ao Grão-Mestre de então, precisamente António Manoel de Vilhena. No prefácio, assinala que “observou a natureza, parece que com mistério, que corresse todo um século desde o ano de 1622 em que aquele Heroe foi eleito, até o de 1722 em que Vossa Eminencia foi elevado”.

 Mesmo com falhas e limitações, “A Vida e Acções de Sua Alteza Sereníssima Fr. Luís Mendes de Vasconcelos” é uma obra única, fonte preciosa de informações, dando-nos o detalhe de uma longa carreira e traços do carácter dum português ilustre.

Não seria esta a ocasião adequada para uma nova edição da versão portuguesa de uma obra, que associa os dois Grão-Mestres que, neste ano, evocamos?

(Actualmente, mas não era essa a prática antiga, inclui-se o Beato Gerardo, Fundador da Ordem, na lista dos Grão-Mestres, como o primeiro deles. É nessa conformidade que, no presente trabalho, Luís Mendes de Vasconcelos, Antoine de Paule/António de Paula e António Manoel de Vilhena são referidos, respectivamente, como 55º, 56º e 66º Grão-Mestres).

 

          1ª PARTE

          LUÍS MENDES DE VASCONCELOS

Antes de mais, impõe-se uma clarificação. Houve dois portugueses ilustres (ainda que um deles controverso) contemporâneos e ambos de nome Luís Mendes de Vasconcelos, provavelmente parentes. São, com frequência, confundidos, aparecendo misturados os dados biográficos dos dois, como se se tratasse de uma só pessoa.

Um deles terá nascido em Lisboa, entre 1550 e 1560. Serviu nas tropas espanholas, em Itália e na Flandres. Capitão-Mor de uma Armada, que partiu para a Índia, em 1610; Governador de Angola, de 1617 a 1621, onde, contrariando as instruções régias, levou a cabo uma política belicista e violentamente esclavagista, pelo que sofreu uma devassa. Ignora-se o local e a data da sua morte.

Compôs várias obras, como “Arte Militar”, dedicada.a Cristovão de Moura, “Conquista da Índia”, oferecida a El-Rei, “Tratado de la Conservación de la Monarchia de España”, oferecido ao Duque de Lerma”; a mais célebre, porém, foi “Do Sítio de Lisboa”, cujo objectivo era convencer Filipe II a transferir para Lisboa a Capital do seu Império.

Mas é o “outro” Luís Mendes de Vasconcelos que nos interessa, neste contexto.

 Nasceu em Évora, provavelmente em 1543. Era filho de Francsco Mendes de Vasconcelos, que servira na Casa do Infante Cardeal D. Afonso.

A 12 de Setembro de 1571, uma comissão presidida pelo Lugar-Tenente de D. António, Prior do Crato, julgou por boas as “provanças” de sua nobreza, condição necessária para admissão na Ordem de Malta. Menos de um mês depois, teria lugar a Batalha de Lepanto. Considero pura fantasia afirmar-se, como às vezes se faz, que Vasconcelos nela participou. No entanto, é certo que, saindo de Portugal para Malta, serviu algum tempo junto de D. João de Áustria, o herói de Lepanto. O Generalíssimo do Mar, filho de Carlos V, entregou-lhe uma mensagem para o Grão-Mestre da Ordem, La Cassière, e despediu-se dele com ” honradas demonstrações de sentimento”, vendo-o “em presença como um grande Varão, e em profecia, como a um grande Mestre”; na versão espanhola, o jogo de palavras é mais evidente - “un gran Maestro”. O encontro, ainda que mitificado, foi como que um prenúncio auspicioso para o português, que iniciava então a sua carreira.

Chegou a Malta a 1 de Abril de 1572 e integrou-se, naturalmente, na Língua de Castela, que englobava Leão e Portugal.

Era ele “de estatura mais que mediana, de corpo com toda a perfeição proporcionado, muito composto e direito igualmente, de pés e pernas. De grave e alegre aspecto, de cara muito gentil-homem, bem provido de barba, boas cores, notavelmente discreto, singular cortesão e grandemente asseado no vestir. Sem mostrar facilidade, chegando a um lugar em que estivessem oito ou dez pessoas, a todas saudava, e assistia tão galantemente, que, dizendo a cada um seu dito com tanta graça, tanto em seu lugar, e com tanto modo o dizia, que estimando todos aquele favor os deixava com ensino e alegria”.

Irresistivelmente, vêm-nos à lembrança o retrato de Manuel de Sousa Coutinho, no “Frei Luís de Sousa e as palavras de Maria, sua filha: “O retrato daquele gentil cavaleiro de Malta que ali está. Como ele era bonito meu Pai, como lhe ficava bem o preto! E aquela cruz tão alva em cima.”. Manuel de Sousa Coutinho esteve em Malta, em 1576-77, como noviço, não tendo professado. Ele e Vasconcelos ter-se-iam, muito possivelmente, encontrado então.

No quadro dos seus deveres militares, Vasconcelos participou em seis “caravanas”, as expedições, promovidas pela Ordem e com a duração de seis meses; a primeira iniciou-se em Novembro de 1572, a última em Março de 1583. Fez ainda um “socorro”, na galera “S. Pedro”, em Agosto/Setembro de 1582. Foi capitão da galera “Esperança”, de Julho de 1586 a Julho de 1588, suportando todos os encargos.

Entretanto, crises da maior gravidade haviam afectado, tanto Portugal, como a Ordem de Malta.

Em 1580, Filipe II de Espanha subiu ao Trono de Portugal (como Filipe I). Opusera-se-lhe D. António, filho bastardo do Infante D. Luís e, tal como seu Pai, Prior do Crato. Foi espoliado do seu cargo e, durante a Dinastia da Casa de Áustria, o Priorado, principal instituição da Ordem de Malta no nosso Pais, foi geralmente administrado por estrangeiros, como o Arquiduque Cardeal Alberto, Vítor Amadeu do Piemonte e o Cardeal Infante D. Fernando.

No que toca à Ordem de Malta, uma facção de Cavaleiros destituiu, em 1581, o Grão-Mestre Jean Levesque de la Cassière e designou como Lugar-Tenente o francês Jean Lescout Romegas, “ valoroso soldado, mas fraco político, manipulado pelo clã espanhol”, nas palavras do historiador Alain Blondy, que acrescenta “o objectivo era fazer eleger um Grão-Mestre espanhol, que teria integrado a Ordem no dispositivo estratégico dos Habsburgos de Espanha. A França ameaçou então sequestrar as Comendas situadas no Reino e que asseguravam a maior parte dos rendimentos da Ordem; mas foi o Papa Gregório XIII quem pôs fim ao golpe de força”.

Neste quadro de luta de influências, os espanhóis tiravam partido da dependência em que Malta, frequentemente, se achava do fornecimento de trigo siciliano, para pressionar a Ordem a adoptar posições favoráveis à estratégia de Madrid. António Pereira de Lima destaca um episódio, de que não indica a data, dizendo apenas que teve lugar, quando era Vice-Rei da Sicília Marcantonio Colonna e, portanto, entre 1577 e 1584, período durante o qual os dois sucessivos Grão-Mestres, La Cassière e Verdalle, foram franceses. Tendo faltado o trigo em Malta, o Grão-Mestre ordenou a Vasconcelos que, “por seu bom modo e discreto estilo”, fosse a Palermo, diligenciar junto de Colonna. Por sua desdita, porém, Vasconcelos achou-se no local de um recontro, em Jacca, entre espanhóis e sicilianos. Foram mortos os seus criados e ele muito seriamente ferido, salvando-se por milagre.

A sua carreira ia prosseguindo, agora também com o exercício de cargos administrativos:

-Auditor de Contos, por três anos e quatro meses

- Procurador dos Encarcerados, durante quatro anos, acumulando, durante dois, como Comissário de Pazes

- Recebedor da Ordem em Portugal, de Maio de 1589 a Dezembro de 1598.

Seguiu-se uma função diplomática – por três anos e meio, foi Embaixador da Ordem junto do Papa. Era um cargo da maior importância e delicadeza. O relacionamento entre a Santa Sé e a Ordem de Malta nem sempre era fácil. O Papa, detentor supremo do Poder Espiritual, não renunciara ainda totalmente, nos princípios do Séc. XVII, a procurar dominar os Estados, além de ele próprio ser, também, Soberano Temporal. Por seu lado, a Ordem de Malta, ainda que Soberana e uma forte Potência naval, não deixava de ser uma Ordem Religiosa, estando o Grão-Mestre sujeito ao Soberano Pontífice, no plano espiritual. Não faltariam, pois, ocasiões para potenciais conflitos.

“Terminada a Embaixada ordinária, teve licença do Grão-Mestre, e se voltou ao Reino de Portugal”. Aqui estando, chegou-lhe a nomeação como Conservador Conventual. Mas, dada a sua ausência de Malta, só veio a exercer efectivamente aquela função, a partir de Julho de 1609, por três anos e meio.

Estaria, assim, provavelmente, em Portugal quando, em 1608, foi publicada a primeira edição de “Do Sítio de Lisboa”, do seu homónimo, Luís Mendes de Vasconcelos.

 Entre Julho de 1607 e Dezembro de 1608, durante a ausência de Vasconcelos, viveu em Malta Michelangelo Caravaggio. Pintou algumas obras-primas, expostas ainda hoje na Co-Catedral, bem como um conhecido retrato do Grão-Mestre Alof de Wignacourt com um pajem.

Em Janeiro de 1613, já perto dos 70 anos, Luís Mendes de Vasconcelos foi promovido a General das Galés. Exerceu, por dois anos, esse cargo, que requeria grande energia. Pereira de Lima refere alguns feitos daquele a quem designa por “freio impaciente do orgulho Maometano, açoute feroz da soberba Otomana”:

-Tomou a Cidade de Foja, no Levante;

-Em acções da sua responsabilidade e, noutras, acompanhando o Marquês de Santa Cruz, General das Galés de Espanha, foram apresadas diversas embarcações turcas e feitos numerosos cativos;

-Em 1614, repeliu uma “soberbamente furiosa Armada Turqueica, cujas velas muitas, e arrogantes, sulcavam os mares”, com o desígnio “ de atacar o Casal de Santa Catarina”. Os Turcos fugiram “deixando na praia muitos mortos com feridas e muitos feridos de morte”.

Quando era Embaixador em Roma, o Papa Paulo V desejou promovê-lo a Balio de Aquila, tendo ele “recusado, com humildade e prudência, como serpente e pomba”, suponho que para não pôr em causa, perante o Pontífice, a sua independência, como representante da Ordem. Veio a aceitar aquela Balia, quando já era Conservador Conventual, mas a ela renunciou, para aceder à de Acre, ao ser promovido a General. Como primeiro cabimento, teve as Comendas de Elvas e Montouto, que deixou, melhorando-se com a de Vera Cruz. Por graça, teve as de Vila Cova, Rossas, Frossos e Algozo, concedidas por Alof de Wignacourt; o Grão-Mestre quis ainda provê-lo na rica Comenda de Santarém e Pontével, mas ele, mostrando estar muito satisfeito com as que tinha, a pediu para António Pereira de Lima, tio do biógrafo; este sublinha que, “se o nosso General não tivera mais de Senhor, que de ambicioso, fora naquele tempo, o Cavaleiro dos maiores despachos, e importantes Comendas”.

Em 1616, foi nomeado Embaixador Extraordinário junto do Papa Paulo V e de Luís XIII, Rei de França. O objectivo era contestar as pretensões de Carlos Gonzaga, Duque de Nevers, a tornar-se Grão-Mestre da Ordem do Santo Sepulcro, separando-a da de Malta. “E, como o intento era do Duque, ao Rei Cristianíssimo parecia bem e, por esta via, a Sua Santidade não parecia mal”.

Os interesses em causa eram de monta, com risco de a Ordem de Malta vir a ter os seus rendimentos muito cerceados. Daí a escolha de Vasconcelos, “sujeito de cabais prendas, e Cavaleiro de conhecidos méritos, Cortesão tão prático, como discreto, Cavaleiro tão ajustado como político”.

Em Paris, defendeu com grande veemência a posição da Ordem de Malta.

 Começou a sua exposição a Luís XIII , recordando que a Ordem de Malta era a mais antiga de todas as de Cavalaria  e que sempre os Reis de França a cumularam de favores. Assim, exprimia confiança em que o Rei não permitiria “jamais, que o requerimento, que tem feito o Duque de Nevers a Sua Santidade de desmembrar da Ordem o que é do Santo Sepulcro tenha em algum tempo lugar, atendendo (…) à legítima possessão, que ela tem tido (…) depois de cento, e dez anos, e ao justo título, que tem por doação, e incorporação, que a ela se fez pela feliz memória do Papa Inocêncio VIII, com geral consentimento de todos os Reis, e Príncipes Cristãos, assim da Dignidade do Grão-Mestrado, como de todos os seus bem, que eles em suas terras possuem, como se mostra na Bula de 28 de Março de 1490”. Insistiu em que não se consentisse que, “por honra, utilidade, e proveito de um Príncipe particular, o comum de uma Ordem se empobreça, despreze e infame, como sem dúvida acontecerá, se Vossa Majestade, com sua poderosa mão, não reprimir este impulso, e atalhar este negócio”.

Luís XIII prontamente anuiu e prometeu iria instruir o seu Embaixador em Roma, no sentido de se suplicar ao Papa que nenhuma alteração se fizesse na matéria.

(Muito tempo depois, a meio do Séc. XX, voltou a levantar-se, ainda que em termos  diferentes, a questão do relacionamento entre Malta e o Santo Sepulcro, tendo  a Ordem de Malta atravessado então uma crise que pôs em causa  a sua existência. Sobre o assunto, escreveu Roger Peyrefitte  “Chevaliers de Malte”).

Na obra monumental do Abbé de Vertot , lê-se que, em 1618, as forças da Liga Católica tentaram, sem sucesso, apoderar-se da Cidade de Sousse, na costa da actual Tunísia. Pereceram seis Cavaleiros e ficaram feridos seis, entre os quais Luís Mendes de Vasconcelos; contava então 75 anos.

A 14 de Setembro de 1622, faleceu o Grão-Mestre Alof de Wignacourt. Segundo Pereira de Lima, ele teria, no leito de morte, recomendado que Luís Mendes de Vasconcelos fosse escolhido como seu sucessor. Sublinha o biógrafo que, três dias depois, Vasconcelos, “ sem dificuldade, nem controvérsia, foi eleito pela melhor, e maior parte do Convento”, acrescentando que “a sua eleição, em tudo acertada, foi universalmente aplaudida, não só na Corte Romana, mas também nas dos mais Príncipes da Europa”. Na verdade, houvera outro candidato, Antoine de Paule, Grão-Prior de Saint-Gilles, retenhamos este nome. Na altura, alguns viram De Paule e Vasconcelos como representando, respectivamente, as facções francesa e espanhola.

O respeito por Vasconcelos era e tem-se mantido consensual. Desde a mais antiga História sobre a Ordem de Malta, a de Bosio, edição de 1643, até trabalhos recentes de divulgação, tem sido louvada a sua bravura destemida, em expedições navais contra os turcos, bem como a prudência e habilidade que manifestou, em várias missões, designadamente diplomáticas.

Foi o 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, o 2º a ser tratado por Alteza Sereníssima .O seu predecessor fora feito Príncipe do Império, em 1607, por Rodolfo II e, em 1620, Fernando II tornara esse estatuto permanente, para os Grão-Mestres; mas, durante o Magistério do sucessor de Vasconcelos, “ resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência (…) com que se acomodaram (…) por serem filhos muito obedientes à Igreja Romana”. Com Pinto da Fonseca, no Séc. XVIII,  o tratamento passaria a ser de Alteza Eminentíssima, até hoje..

O cargo de Grão-Mestre dos Hospitalários revestia-se de grande complexidade. Eleito vitaliciamente pelos seus pares, chefiava uma Ordem, que sendo religiosa, com uma vertente assistencial e vocacionada para o apoio aos peregrinos e o tratamento dos doentes, era também militar, forte Potência naval no Mediterrâneo, com papel de relevo na defesa da Europa contra o expansionismo otomano, e no combate aos piratas berberescos. O Grão-Mestre devia obediência ao Papa, no plano espiritual, sem que a Ordem deixasse de ser reconhecida como Soberana. Tal estatuto não decorria, aliás, (nem decorre) do exercício de Poder sobre um território, embora, historicamente, remontasse à conquista de Rodes pelos Hospitalários, no início do Séc.XIV; perdida aquela Ilha, fora-lhes cedido, por Carlos V, o Arquipélago Maltês, como feudo, sendo devido o tributo anual simbólico de um falcão, a entregar, ao Vice-Rei da Sicília. Como Príncipe de Malta, cabia ao Grão-Mestre administrar e defender a Ilha, base territorial e baluarte da Ordem. Além dos Cavaleiros, seus subordinados, eram também seus súbditos os autóctones malteses. A Ordem, transnacional, era internacional, pela sua composição, agrupando-se os Cavaleiros por Línguas, em número de 8. Nos vários Países do Mundo Católico, a Ordem estava implantada, com Comendas, que constituíam a sua principal fonte de rendimentos.

Vasconcelos contava já, ao ser eleito, uma longa e trabalhosa vida; restavam-lhe escassos seis meses, período durante o qual não ocorreram feitos de armas notáveis, e demasiado curto para realizar obra; como diz o Abbé de Vertot, o pouco tempo que sobreviveu a Wignacourt foi empregue a confirmar as sábias disposições do seu predecessor.

Numa História de Malta do Séc. XIX, lê-se que ele se mostrou disposto a restabelecer a Nação maltesa no exercício de todos os seus direitos e privilégios, mas a sua idade avançada não lhe permitiu dar execução a esse projecto.

No breve lapso de tempo do seu Magistério, mostrou-se fiel aos princípios que nortearam a sua vida e, no preenchimento de lugares, procurou não ceder a pedidos e empenhos, assegurando “repartir com justiça e equidade, os Benefícios que Deus lhe pôs nas suas mãos”. E “repartia larga, e liberalmente com os pobres as rendas, que possuía, tanto com esmolas públicas, como particulares, e secretas”. Sempre envergou um hábito ainda claramente monástico, enquanto as vestes dos seus sucessores viriam a assumir, progressivamente, um carácter mais mundano.

Faleceu a 7 de Março de 1623. “Pediu (…) o enterrassem sem mais pompa, que a um homem da plebe, que quis unir o que é bem se una, em um Cavaleiro Religioso, que é a generosidade na vida, e a humildade na morte”. E “a todos pareceu bem (…), julgou-se, porém, se observasse o costume, e estilo, que com os outros Grão-Mestres se usara, e assim o enterraram com as mesmas cerimónias Magistrais”.

Como os seus predecessores que haviam presidido à Ordem, desde que ela se instalara em Malta, Vasconcelos foi sepultado na cripta da Igreja Conventual, actualmente Co-Catedral; foi o 12º e era para ter sido o último, já que os seus sucessores passaram a sê-lo nas Capelas das respectivas Línguas, até à ocupação da Ilha, por Bonaparte.

Mas algo de imprevisto ocorreu:

Em 2017, o Grão-Mestre Matthew Festing foi “convidado”, pelo Soberano Pontífice, a resignar ao seu cargo, facto inédito, nos mais de 900 anos da Ordem.. A isto, já de si extraordinário, acresceu que, em Novembro de 2021, tendo ido a Malta, sentiu-se mal durante uma cerimónia, na Co-Catedral, e veio a falecer, dias depois. Foi decidido seria enterrado na cripta, o primeiro, pois, desde Luís Mendes de Vasconcelos. A Vida é, por vezes, tão romanesca como a Literatura.

 

            2º PARTE

            O GRÃO-MESTRE QUE NÃO ERA PORTUGUÊS

            História e Literatura

 

Em 1935, Ferreira de Castro viajou pelo Mediterrâneo, recolhendo material que viria a utilizar para redigir “Pequenos Mundos e Velhas Civilizações”.

Já em 1934, no prefácio a “Terra Fria”, o Autor revelara o seu amor pelos “povos minúsculos, pelas repúblicas em miniatura”, pelas “regiões onde existem ainda princípios feudalistas “, sublinhando que ” as pequenas ilhas, sobretudo, fascinam-me”.

Um dos capítulos de “Pequenos Mundos” foi dedicado a Malta, pequena ilha que, por mais de 250 anos, além do seu povo minúsculo, acolhera uma República em miniatura, ao tornar-se a Sede dos Cavaleiros Hospitalários, conhecidos, desde o Séc. XVI, como Ordem de Malta, instituição, aliás, imbuída de princípios feudalistas.

A Ordem esteve sempre sedeada na Região mediterrânica (Terra Santa, Chipre, Rodes, Malta, Catânia, Ferrara, Roma) excepto por um brevíssimo período, em S. Petersburgo, no Báltico, quando foi Grão-Mestre o Czar Paulo I (1798-1801). E o Mediterrâneo foi o palco da sua actividade. Por seu lado, Portugal não teve o Mediterrâneo como cenário da sua Expansão, ainda que esta se tivesse iniciado em Ceuta, na junção do Mediterrâneo e do Atlântico. Martim de Albuquerque revela que, em carta de 1529, o Duque de Bragança sugeriu, a D. João III, a cedência de Ceuta, sob certas condições, aos Hospitalários, que haviam perdido Rodes, anos antes; poderia, pois, ter havido uma Ordem de Ceuta, em lugar da Ordem de Malta, mas não façamos História Alternativa…

Seja como for, nunca faltaram portugueses combatendo nas fileiras da Ordem de Malta, ou exercendo funções governativas, até ao mais elevado nível. 

Três dos quatro Grão-Mestres portugueses que, ao longo dos séculos, presidiram à Ordem encontram-se sepultados em Malta – Luís Mendes de Vasconcelos, António Manoel de Vilhena e Manuel Pinto da Fonseca (o túmulo de Afonso de Portugal, que foi Grão-Mestre ainda na Terra Santa, está em Santarém). Os dois últimos, dos mais prestigiosos com que a Ordem contou, enriqueceram sobremaneira o património arquitectónico maltês.

Pelo interesse desta matéria para o púbico português, Ferreira de Castro dedicou-lhe algumas páginas; é de lá que retiro as seguintes passagens, que considero enigmáticas:

 “ Afastado da direcção da Ordem pelos próprios companheiros, o filho de Afonso Henriques deixa Jerusalém e recolhe a Portugal, onde a vida se lhe abrevia. Sem outro epitáfio além do seu nome, sepultam-no em Santarém, na Igreja de S. João de Alporão, comenda da Ordem. E outro Grão Mestre português ela não volta a ter durante os séculos em que os Cavaleiros andam por Chipre e Rodes. As gentes lusitanas, gulosas como as demais por dignidades e feitos que dêem lustre, afincadamente trabalham na sombra para que a um dos seus seja de novo entregue a chefia da Ordem. Mas, ou porque o filho de D. Afonso Henriques do seu génio houvesse deixado ruim memória, ou porque Portugal, apesar das comendas que oferece pròdigamente, é muito pequeno para a cubiça dos Cavaleiros, a honraria desejada tarda imenso. Bailios e priores muitos há; grão-mestres nem mais um.

Chega, porém, a era das descobertas e das conquistas. Nos séculos XVI e XVII Portugal já não é um país pequeno. Os Cavaleiros encontraram-se, então, em Malta. A aspiração da fidalguia portuguesa vai ser, enfim, satisfeita. Em 1622, Luíz Mendes de Vasconcelos, bailio de S. João de Acre, é eleito Grão Mestre da poderosa Ordem. Usa o título de Alteza, que o cargo lhe confere, e guarda, qual troféu da sua vida de combatente, o bastão de general das galés. Ainda desta feita Portugal não foi feliz. Mendes de Vasconcelos somava já oitenta anos quando o escolheram para Grão Mestre. Cinco meses depois ele morria, o que levou Frei Lucas de Santa Catarina a escrever que “se lhe dava o magistério mais para prémio do que para exercício”.    

Os Cavaleiros portugueses de Malta entenderam que, por efémero, o mestrado de Luíz Mendes de Vasconcelos não constituíra honraria que bondasse a Portugal, tão generoso em contribuir para a riqueza da Ordem. E bichana à direita, confabula à esquerda, protesta aqui, pede acolá, obtiveram que outro compatriota fosse eleito Grão Mestre, como se a morte do anterior não abrisse hiato no predomínio de Portugal em Malta. António de Paula se nomeava o escolhido; prior do Crato era e de sólidas influências gozava em terras extremas da Ibéria. Mas ainda desta vez a boa sorte não sorriu à pertinácia lusitana. Os candidatos de outras línguas, na eleição derrotados, deram por paus e por pedras e logo assacaram a António de Paula pecha de costumes dissolutos, muito em voga, então nos sumptuosos Albergues de Malta. Um Cavaleiro francês, tecedor de rimas, compôs canção de desgabo e obteve que ela andasse na boca do povo. Como, porém, não precisava o atingido, muitos Cavaleiros de Espanha e Itália, do mesmo mal acusados, viram na sátira referência individual e, uma noite, travados de razões com o autor das coplas, se envolveram em briga ruidosa. Os Cavaleiros de Portugal, alarmados com o borborinho feito em redor de António de Paula, de tudo se serviam para amainar a ondulação. Os seus inimigos, porém, não se deixavam facilmente convencer. Impugnando a validade da eleição, tentaram inutilizar definitivamente o Grão-Mestre português e, nesse sentido, recorreram ao Tribunal Pontifício, com um terrível libelo sobre a vida íntima de António de Paula – “informação tão injuriosa como a que tinha por relatores o ódio e a inveja”.

O escândalo começa a ser murmurado na Europa, comentado sorridentemente nas próprias cortes que sustentavam os famosos Cavaleiros.

Portugal desenvolve, então, as suas melhores influências em Roma, para que o acontecido seja abafado com a manutenção de D. António no posto. E consegue-o : “ pôs-se silêncio na causa, temendo-se convencidos os fautores dela”. Apesar disso, muitos dos Cavaleiros, negando mérito directivo a António de Paula, furtavam-se a obedecer-lhe quando ele traçava projecto de combate ao inimigo. Numa pequena batalha naval, a Ordem perdeu duas galés e centenas de combatentes de várias línguas, tudo fidalguia orgulhosa do seu valor.

Os homens que estavam habituados a sucessivos triunfos não perdoaram a derrota – e à inépcia do Grão-Mestre a debitaram. No prélio infeliz houve, porém, um português que conquistara póstuma admiração e simpatia. D. Jerónimo de Sousa da Cunha se chamava. “ roto o corpo todo a mosquetazos e sustentando com a mão esquerda os intestinos vivendo só na direita, em que meneava a espada, se dilatou nas mortes, que tirava, a vingar e a dar a conhecer o preço da que perdia”.

Mas, muito mal marchava o mestrado de António de Paula. Foi então que o Papa Urbano VIII, talvez a pedido de Portugal, resolveu, indo em seu auxílio, dar-lhe a autoridade que ele perdera entre os Cavaleiros. E num breve que lhe remeteu – informa Frei Lucas de Santa Catarina – “ com elegante estilo lhe troca em católico triunfo aquele primeiro lutuoso conflito aplaudindo-lhe e premiando-lhe a fortaleza e a vigilância”.            

Assim protegido pelo Pontífice, o Grão-Mestre português obteve alguma unidade nas suas hostes e, por mor disso, conseguiu vingar-se da derrota sofrida, derrotando, por sua vez, os infiéis, dois meses depois, no mar de Chipre.

Morreu António de Paula em 1636. Os Cavaleiros, porque ele já lhes não avivava as emulações, mandaram gravar sobre o seu túmulo pomposo elogio, pagando com esta póstuma moeda verbal, os desgostos que lhe deram em vida e as cóleras que lhe despertaram. E mais nove grão-mestres houve em Malta antes que outro português se sentasse sobre a cobiçada poltrona” (págs. 95-98).

E, mais adiante:

“ Vilhena foi, em Malta, um novo La Valete e dele os portugueses coevos se orgulhavam como de propriedade sua. Ele resgatava o patriotismo lusitano dos desaires sofridos, um século antes, durante o mestrado de António de Paula” (pág.100).

E ainda:

“Sob a capela-mor está, numa cripta, quási ignorado, quási invisível, o túmulo de outro Grão Mestre português, o de Luiz Mendes de Vasconcelos, que chefiou a Oordem durante cinco meses apenas. Do lusitano que se lhe seguiu, António de Paula, não encontramos a sepultura nem quem sôbre ela nos informasse, grande fosse embora o nosso empenho de ler a inscrição elogiosa que os Cavaleiros mandaram gravar na lousa do morto, depois de o terem combatido e injuriado em vida…” (pág.116).                                                                                                

Mas teria havido, então, mais um Grão-Mestre português, para além dos quatro habitualmente apontados? A História, sem hesitar, diz-nos que não, a Literatura, pela pena de Ferreira de Castro, responde que sim

 Com o nome Luís Mendes de Vasconcelos, houve duas personagens históricas, contemporâneas, uma das quais 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, cujas biografias aparecem, com frequência, fundidas, como se se tratasse de uma só; já, no que toca a Antoine de Paule/António de Paula, 56º Grão-Mestre, houve uma só personagem mas, ao lado da versão propriamente histórica, a fantasia de Ferreira de Castro criou uma figura diferente; duma parte, temos a História, da outra, a Literatura.

Quem sucedeu a Vasconcelos, como 56º Grão-Mestre da Ordem de Malta, foi Antoine de Paule, nascido em Toulouse, possivelmente em 1554. Não era português, mas francês, não era Prior do Crato, mas Prior de Saint-Gilles, não gozava de sólidas influências, em terras extremas da Ibéria, mas, nas da Gália, certamente que sim.

Pertencia a uma família originária de Génova, instalada no Sul de França em 1475 e que entrara na Magistratura tolosense, tendo seu avô sido nobilitado em 1512. Por sua mãe, estava relacionado com a Casa de Joyeuse, que alcançara grande valimento, graças a Anne, primeiro Duque de Joyeuse, “archimignon” do Rei Henrique III.

Antoine de Paule terá tido uma juventude agitada e, possivelmente, pouco exemplar, numa França dilacerada pelas violências entre Católicos e Protestantes.

Da sua carreira na Ordem de Malta não se conhecem proezas militares, mas foi Comendador do Forte de S. João, que defendia o porto de Marselha. A ascensão, no quadro da Língua de Provença, culminou como Grão-Prior de Saint-Gilles. A Língua de Provença era a mais antiga das 8 da Ordem, compreendia dois Grão-Priorados, Toulouse e Saint-Gilles, sendo este o mais antigo e de maior importância dos dois, pelo número de Comendas dependentes.

Em Setembro de 1622, Antoine de Paule candidatou-se à sucessão de Alof de Wignacourt ; o eleito, porém, foi Luís Mendes de Vasconcelos. Mas, à morte deste, menos de seis meses depois, suceder-lhe-ia, como Grão-Mestre.

A partir de Antoine de Paule, Grão-Mestre, francês, personagem histórica, Ferreira de Castro constrói a figura de “António de Paula”, português, Prior do Crato, que à morte do seu compatriota, Luís Mendes de Vasconcelos, teria ascendido à chefia da Ordem de Malta.

(Em Portugal, traduzem-se, tradicionalmente, os nomes de Imperadores, Reis, Papas, Santos etc. Frei Lucas de Santa Catarina traduziu os nomes próprios dos Grão-Mestres da Ordem de Malta, mantendo os nomes de família na versão original; no caso de Antoine de Paule, cujo nome de família era, em si, um nome próprio – Paule, afrancesamento do italiano  Paolo - traduziu nome próprio e apelido, e Antoine de Paule torna-se António de Paula. Recordem-se, a este propósito, os casos de S. Francesco di Paola e S. Vincent de Paul, cujos nomes são traduzidos como S.Francisco de Paula e S. Vicente de Paulo.

É a versão “António de Paula” que Ferreira de Castro utilizou, legitimamente, ainda que, talvez, com a intenção de reforçar, de modo subliminar, no espírito do leitor, a ideia de que se tratava de um português.

 

Note-se, ainda, que Hospitalários  são sempre mencionados pelo seu nome próprio e apelido. Ora, Ferreira de Castro, numa ocasião, alude ao 56º Grão-Mestre apenas como D. António; D. António e, supostamente, Prior do Crato, tal como o fora, em 1580, o candidato infeliz à sucessão no Trono português… A que leitor ocorreria, assim, pensar que o Grão-Mestre também não fosse português?

Referir-me-ei à personagem histórica como Antoine de Paule e, à criação literária de Ferreira de Castro, como “António de Paula”).

 

Ferreira de Castro pega, depois, num facto real - as acusações de que Antoine de Paule foi alvo, após ter sido eleito. De relatos antigos, consta que “ o seu Magistério foi perturbado por dissensões que se elevaram novamente entre os Cavaleiros e por diversas acusações, dirigidas contra ele”. Com efeito, “a este Grão-Mestre não faltavam inimigos, e dessas pessoas que, com a ajuda do seu atrevimento, se orgulham de fazer passar, por verdades, as mais negras calúnias. Apresentam ao Papa um memorial no qual dizem que este Grão-Mestre é um homem dissoluto nos seus costumes, grande simoníaco, e que comprou a sua Dignidade com dinheiro”. Os termos variam, mas permanece o mesmo sentido; também concorrem, geralmente, em que ele “acabou por se justificar” e, mesmo, que o fez “com muito sucesso e glória” de “todas estas calúnias, tendo enviado a Roma, para o defender, “o Comendador Fr. Denis Polastron de la Hillière, Cavaleiro de vida exemplar”.

 

A acusação mais grave dizia respeito aos seus “costumes dissolutos”. Que se quereria dizer, com esta expressão? Não está explícito, mas parece-me depreender se pretendia aludir a práticas homossexuais. E teriam algum fundamento? Seria por  o Grão-Mestre levar um estilo de vida de um refinamento julgado impróprio de uma Ordem Religiosa? Quarenta anos antes, o comportamento, requintado e extravagante dos “mignons” de Henrique III, incluindo o “archimignon” Anne, primeiro Duque de Joyeuse e parente chegado de Antoine de Paule, tinham estado na base de idênticas acusações.

Com o sucesso da “justificação” em Roma, a imagem e a autoridade do Grão-Mestre terão saído restauradas, e a questão não voltou a afectar o seu Magistério. Ferreira de Castro, porém, carrega fortemente as tintas com que alude às acusações e dá um tratamento muito diferente a esta matéria, que ganha uma relevância central.

 É uma versão cheia de fantasia, literariamente interessante e de leitura agradável, mas incoerente e implausível. Assim, vejamos:

Os candidatos derrotados “assacaram a António de Paula pecha de costumes dissolutos”. Ora, como levar a sério a gravidade de tal acusação, quando se acrescenta que os mesmos estavam “muito em voga nos sumptuosos Albergues de Malta” e, de tal forma, que muitos Cavaleiros se sentiram visados numa canção satírica alusiva?

 Por outro lado, “muitos dos Cavaleiros, negando mérito directivo a António de Paula “ (por causa da natureza das acusações?) “ furtavam-se a obedecer-lhe quando ele traçava projecto de combate ao inimigo”; mas, então, não lhe obedecendo e sofrendo derrota em batalha, como poderiam acusar o Grão-Mestre de inépcia militar?

Prossegue, afirmando “ Portugal desenvolve, então, as suas melhores influências em Roma, para que o acontecido seja abafado com a manutenção de D. António no seu posto. E Consegue-o”. No entanto, Portugal não dispunha, na altura, de grandes influências em Roma, estava, até, privado de independência política. Mas, nem para Portugal, nem para Filipe III, poderia ser uma alta prioridade a defesa da reputação de um Grão-Mestre, ou mesmo da sua posição, ainda que, por hipótese, ele fosse  português. O Grão-Mestre tinha estatuto de Chefe de Estado, com Embaixador acreditado junto do Papa, e era a ele que cabia a defesa dos seus direitos e interesses. 

 

Ferreira de Castro pretende fazer passar a ideia de que Urbano VIII, talvez a pedido de Portugal (!), resolveu ir em auxílio do Grão-Mestre, dando-lhe a autoridade que ele perdera junto doa Cavaleiros e enviando-lhe um Breve elogioso, munido do qual o “Grão-Mestre português obteve alguma unidade nas suas hostes e, por mor disso, conseguiu vingar-se da derrota sofrida, derrotando, por sua vez, os infiéis, dois meses depois, no mar de Chipre”. Ora, encontra-se truncada a frase de  Frei Lucas de Santa Catarina que, na sua obra, com toda a clareza afirma que, à “vingança” no mar de Chipre, “acresceu (…) outra não menos estimável glória para o Grão-Mestre em um Breve que lhe remeteu o Pontífice Urbano VIII (…)”. Assim o Breve veio depois, não antes do combate, foi um prémio, não um estímulo. E não deixa de ser irónico que o Autor mostre o Grão-Mestre como “protegido” por Urbano VIII, quando foi sempre tenso o relacionamento entre ambos.

 

Por que razão quis Ferreira de Castro “inventar” um Grão-Mestre português, onde havia um francês e, tendo-o feito, por que motivo se empenhou em dar dele uma imagem  tão negativa? Dir-se-ia que uma antipatia pessoal o move.

Afinal, sobre o 56º Grão-Mestre histórico (francês), Frei Lucas de Santa Catarina escreveu, em termos elogiosos, que “celebrou um Capítulo geral com grande utilidade da Ordem. Foi Príncipe igualmente pio, generoso, liberal e magnânimo, virtudes que o fizeram, e conservaram temido, e vitorioso de seus émulos, venerado de todos, e amado com especialidade de seus Cavaleiros”..

 Já quanto ao supostamente português “António de Paula”, criação literária de Ferreira de Castro, contentemo-nos com que não tenha sido mais do que isso, uma criação literária, cuja vida decorreu, apenas, nas páginas dum livro de viagens.

Assinale-se que, no papel de historiador, Ferreira de Castro “descobriu” um suposto Grão-Mestre português, “António de Paula”, mas, na pele de viajante, não teria encontrado o seu túmulo, por mais que o tivesse procurado. No entanto, na Capela da Língua de Provença, na Co-Catedral de S. João, ergue-se, imponente, o mausoléu do 56º Grão-Mestre, Antoine de Paule; estará o Autor, subtilmente, a enviar-nos a mensagem de que “António de Paula” não existiu?

Com aquelas passagens de “Pequenos Mundos”, estamos, claramente, fora do domínio da História e situados no campo da Literatura. Mas a divergência entre o texto e a realidade ultrapassa a licença, concedida aos autores de Ficção Histórica, empurrando-nos para a História Alternativa. Trata-se de um género legítimo, mas muitos leitores, como foi o meu caso inicialmente, terão sido induzidos em erro, julgando estar perante uma obra de informação, e não de ficção.

Mais interessante que a questão da legitimidade (duvidosa) do procedimento, seria conhecer quais as motivações do Autor. Mas, a menos que se encontre alguma referência escrita por ele deixada, estaremos reduzidos a tecer especulações e divagações.

 Não deixa de ser curioso que Ferreira de Castro tenha abordado a relação entre História e Literatura, mais adiante, no mesmo livro, no capítulo sobre o Castelo de If:

“Contudo, as gentes que devassam, agora, o remoto castelo, não vieram até cá pelos homens de carne e osso que padeceram aqui demorada angústia, mas sim por uma figura literária que não esteve aqui, que não existiu sequer (…); a fantasia seduz mais do que a realidade, a Literatura atrai mais do que a História”.E acrescenta: ” O guia do sinistro presídio declama ‘eis aqui, meus senhores e senhoras, o calabouço onde viveu aquele que havia de tornar-se o famoso Conde de Monte Cristo (…) e tenta adivinhar se eles são cultos, ou se, tendo lido obra impressa, tomaram a fábula por verdade”.

E se estivéssemos perante um jogo, uma aposta (consigo próprio)? Ferreira de Castro, como o cicerone, estaria a testar a cultura dos seus leitores, ou a tentar adivinhar se tomaram a fábula por verdade. Contudo, tal atitude parece pouco conforme à seriedade que se reconhece ao Autor, além de que envolvia o grave risco de pôr em causa a sua credibilidade, se algum leitor denunciasse, como falsa ou errada, a versão apresentada. Era um jogo em que ele não tinha nada a ganhar e, talvez, muito a perder.

 A verdade, porém, é que, em mais de 80 anos, a divergência entre História e Literatura não foi constatada ou, caso o tenha sido, não deu origem a qualquer polémica; Ferreira de Castro teria, pois, “ganhado” a hipotética aposta….

Todavia, uma “explicação”deste tipo, a que poderíamos chamar puramente “lúdica”, ou “gratuita”, não me satisfaz Admito, antes, que Ferreira de Castro, ao criar a figura de “António de Paula”, teria em mente alguma personagem relevante, de muito elevado estatuto, em relação à vida privada da qual tivessem circulado rumores/acusações, e que ele não quereria ou não poderia criticar abertamente; estaríamos, assim, perante uma personagem “à clef”.

É matéria que se me afigura de aprofundar, mas não tenho, de momento, conclusões definitivas. Acrescentarei, porém, como base para divagação / especulação:

1)

Manuel Teixeira Gomes nasceu, em Portimão, em 1869.Diplomata, Político e Escritor.  Logo após a implantação da República, foi nomeado Ministro em Londres, onde permaneceu 13 anos, com uma breve interrupção. Em 1922, Delegado de Portugal, junto da Sociedade das Nações, vindo a assumir uma das Vice-Presidências. Eleito Presidente da República, em 6 de Agosto de 1923, viria a resignar, em 11 de Dezembro de 1925. Auto-exilou-se de imediato. Em 1931, instalou-se em Bougie, na Argélia, onde morreu, dez anos depois, tendo o seu corpo vindo para Portugal, em 1950.

É considerado um dos mais insignes autores portugueses da primeira metade do Séc. XX. Pela sua obra perpassa uma intensa sensualidade. Todos os que se têm ocupado da biografia de Teixeira Gomes referem-no como brilhante, refinado, mundano, esteta, literato e cosmopolita. Também aludem, por vezes ainda com algum embaraço, à sua orientação sexual, não havendo consenso a tal respeito; alguns recusam-se a aceitar a sua alegada homossexualidade, outros não hesitam em afirmá-la. Inclino-me a pensar que, na sua vida e na sua obra, não faltariam indícios a apontar no sentido da bissexualidade de Teixeira Gomes. Ele nunca o confirmou, antes pelo contrário, mas outra atitude não seria expectável, à época. Mesmo assim, não evitou rumores, insinuações e acusações, por vezes como arma de arremesso, da parte de adversários políticos.

Seria em Teixeira Gomes que Ferreira de Castro se inspirou ao compor a personagem “António de Paula”? Há paralelismos. Assim, tal como o Grão-Mestre, ele foi Chefe de Estado e, tal como ele, foi eleito para um elevado cargo na esfera internacional (Vice-Presidente da Sociedade das Nações). A eleição de Teixeira Gomes à Presidência da República, em Sessão do Congresso, foi um acto muito disputado, sendo necessários três escrutínios; por seu lado, Antoine de Paule teve de se candidatar duas vezes, antes de ser eleito Grão-Mestre, e, nos “Pequenos Mundos”, “António de Paula” ascende à Dignidade suprema da Ordem, apenas graças à aguerrida campanha dos Cavaleiros portugueses. Finalmente, tanto a vida íntima de Teixeira Gomes, como a do Grão-Mestre, foram objecto de críticas.

 Mas está totalmente fora de questão que Teixeira Gomes pudesse ter sido o modelo do retrato, tão negativo, do Grão-Mestre supostamente português. É que ele e Ferreira de Castro comungavam na hostilidade para com o Estado Novo. Além disso, Ferreira de Castro nutria o maior respeito pelo talento literário do antigo Presidente, e referia, como testemunho precioso da amizade entre ambos, um fauno em bronze, que dele havia recebido (e que se  encontra guardado na Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra).

 2)

Ainda que sem ter que ver, pelo menos directamente, com a matéria que nos ocupa, não resisto a juntar mais um enigma, uma nova figura “à clef”.

Em Maio de 1924, Paul Morand, diplomata e escritor francês, que alcançou grande sucesso, sobretudo no período de entre as Duas Guerras, esteve, pela primeira vez, em Lisboa. Dessa visita, resultou a curta novela “Lorenzaccio ou o Regresso do Proscrito”, incluída na colectânea “Europa Galante”, publicada no ano seguinte. É a estória de um ex-ditador português, Tarquínio Gonçalves, derrubado em tempos, preso em S. Tomé, exilado em Londres e que, graças a uma reviravolta política, retornou a Lisboa, após uma longuíssima ausência. Termina com uma cena de cariz sexual, em Sintra, entre Tarquínio e um jovem marinheiro enviado, pelos seus inimigos, para o assassinar.  

Por curiosa coincidência, quando Morand visitou Lisboa, o Presidente era Teixeira Gomes, homem de hábitos e requintes mundanos, tal como Tarquínio Gonçalves, e regressado, há pouco, como ele, de uma longa ausência em Londres; as iniciais de ambos - T.G. - eram as mesmas.

Mas não foi Teixeira Gomes que, numa entrevista concedida em 1956, Paul Morand referiu, ao revelar: “ Construí a personagem de “Lorenzaccio” inspirando-me num amigo meu, um jovem português que era o chefe dos pederastas de Lisboa. Divertiu-me transformá-lo num ditador, isto dois anos antes de Salazar ter aparecido e quando Portugal estava muito longe da ditadura! Mas os portugueses julgaram que eu tinha feito um retrato de Salazar, e andámos de candeias às avessas, durante vinte anos”.

 É muito duvidoso que “os portugueses” tivessem visto em Tarquínio Gonçalves um retrato de Salazar, poucos, aliás, teriam lido a novela; Ferreira de Castro talvez tenha sido um deles, mas o próprio Salazar foi-o certamente, quando lha mostraram, em 1943, quase 20 anos depois de ter sido escrita. O texto irritou profundamente Salazar, a ponto de ter recusado o “agrément” à nomeação de Morand como Encarregado de Negócios do Regime de Vichy, em Lisboa.

Assim, “António de Paula” não era Teixeira Gomes que, tão pouco, teria inspirado o retrato de Tarquínio Gonçalves Este último, por seu lado, não era uma representação de Salazar. E Salazar, homem de costumes austeros, certamente não era “António de Paula”.

 3)

Nem Teixeira Gomes, nem Salazar.

Muito agradeço ao meu caro Amigo Arquitecto Segismundo Pinto, com quem tenho abordado este assunto, o ter-me sugerido a seguinte pista : estaria Ferreira de Castro a visar Gustavo Cordeiro Ramos.?

Gustavo Cordeiro Ramos, cujo nome, hoje, não nos diz nada, nasceu em Évora, em 1888.Foi Ministro da Instrução Pública, em três Governos da Ditadura Militar e nos três primeiros meses do Estado Novo. Procurador à Câmara Corporativa (1935 – 1949). Presidente do Instituto para a Alta Cultura, depois Instituto de Alta Cultura (1942-1964). Como governante, participou na criação da Mocidade Portuguesa. Nutria grande  admiração e cultivou laços estreitos com a Alemanha Nazi. Em 1938, escreveu o prólogo de uma antologia alemã de discursos e outros textos de Salazar, com prefácio de Joseph  Goebbels. No ano seguinte, foi recebido pessoalmente, em Berlim, por Adolf Hitler, a quem entregou um exemplar de Os Lusíadas, em tradução alemã.

A sua demissão do Governo, em Julho de 1933, precedida do afastamento, em Maio, do Chefe de Gabinete, o seu irmão, Armando Cordeiro Ramos, “está rodeada de mistério”. Queixou-se a Salazar de ser vítima de conspiração, mas o Presidente do Conselho “explicou” que a demissão se devia a duras críticas, por parte dos professores, pela tentativa de politizar o ensino primário.

Para o historiador Luís Reis Torgal, foram as posições germanófilas, “demasiado claras”, plenamente mantidas, após a subida de Hitler ao Poder, que ditaram o seu afastamento. A investigadora São José Almeida afirma que Gustavo Cordeiro Ramos “tinha fama de homossexual, com um comportamento impróprio, em face das suas responsabilidades políticas”, pelo que fora afastado.

A sua obra mais importanta, “O Fausto de Goethe, no seu duplo significado filosófico e literário”,foi alvo de acusação de plágio por Sant’Anna Dionísio, na “Águia”, em 1929, o que levou à proibição, pela Censura, do número seguinte da revista e de novos artigos sobre o assunto.

 A sua reputação, entre a comunidade intelectual, era má, possivelmente sintetizada numa frase de Abel Salazar: “ O Cordeiro Ramos é um homem sem categoria intelectual nem moral. A todos os respeitos, um desastre”.

O “puzzle” começa a fazer sentido – Ferreira de Castro teria certamente a maior animadversão pelas posições ideológicas de Gustavo Cordeiro Ramos, e por algumas das decisões por ele tomadas, como responsável político, além de ele aparecer conluiado e protegido da Censura. A Censura era uma faceta do Estado Novo que particularmente desagradava a Ferreira de Castro e que o levara, em 1934, a renunciar à prática do jornalismo (no ano anterior, pois, às suas viagens no Mediterrâneo). Com as vestes do Grão-Mestre, estaria, assim, Gustavo Cordeiro Ramos, personagem contemporânea de Ferreira de Castro, de muito elevado estatuto, cujos alegados “costumes dissolutos” eram criticados, e a quem o Autor não poderia ou não quereria referir-se abertamente. A própria Censura não descobriu o disfarce.

Hoje, quando Gustavo Cordeiro Ramos é menos que uma nota de pé de página, temos dificuldade em reviver as paixões de há 80 anos e em compreender que Ferreira de Castro tenha empregado alguma da sua criatividade a compor um texto críptico que, já na altura, poucos terão entendido em todas as suas implicações. Durante décadas, sob disfarce de um suposto Grão-Mestre português, Gustavo Cordeiro Ramos manteve-se encerrado, naquilo que era “uma tão grande gaiola para tão pequeno pássaro”.

                                                   

             3ª PARTE                                          

             D. ANTÓNIO MANOEL DE VILHENA

 

D. António Manoel de Vilhena nasceu em Lisboa, a 28 de Maio de 1663, filho de D. Sancho Manoel, 1º Conde de Vila-Flor, Herói da Guerra da Restauração.

Partiu muito jovem para Malta e, logo que completou as três caravanas, condição necessária para seguir na Ordem do Hospital, foi nomeado Patrão da Capitânia de uma armada. Nesse posto, foi ferido, em 1680, em combate contra dois navios de Tripoli, que acabaram por ser apresados.

Em 1684, foi Capitão de um dos navios da Ordem, encarregados de auxiliar os venezianos na conquista da Moreia. Foi depois promovido a Major e a Coronel das milícias de campanha. Em 1692, foi-lhe confiado o comando da 8ª galé e, no ano seguinte, o da galé S. António.

Além de cargos militares, exerceu também altas funções administrativas e governativas. Assim, em 1713, ascendeu a Grão-Chanceler e Chefe da Língua de Castela (Leão e Portugal). Em1720, foi nomeado Procurador do Tesouro.

No que toca a honras, em 1694, fora promovido a Grã-Cruz; em 1716, foi feito Balio da Acre.

Tendo morrido o Grão-Mestre Marco António Zondodari, foi, por unanimidade, D. António Manoel de Vilhena eleito seu sucessor, a 17 de Julho de 1722.

Afirma-se, por vezes, que, além dos méritos do ilustre português, terá também pesado, na sua eleição, o prestígio alcançado, pelo nosso País, no Reinado de D. João V, com a vitória naval do Cabo Matapan, sobre os Otomanos, cinco anos antes; inclino-me a partilhar este entendimento.

No epitáfio de Vilhena, lê-se: “ Elevado à suprema dignidade do mestrado, por causa da sua virtude, mais parecia príncipe por nascimento, do que por eleição”. Podemos acrescentar que esse Príncipe, no Trono de Malta, nunca esqueceu que era português. Frei Lucas de Santa Catarina, escrevendo em 1725, exalta “este Herói, tão benemérito dela, como o mais esclarecido Vassalo desta Coroa, (por mais que independente de todas, cinja agora a sua)”. E, em 1731, na Dedicatória, ao próprio António Manoel de Vilhena, da tradução da Vida e Acções de Luis Mendes de Vasconcelos, Miguel Lopes Ferreira sublinha “as repetidas demonstrações com que Vossa Eminência justifica o amor que lhe deve a sua Pátria, e o Rei que felizmente a governa”.

Dessas “demonstrações”, era particularmente apreciado o envio de falcões à Corte de Lisboa. Carlos V, como atrás se disse, ao ceder Malta aos Hospitalários, em 1530, impusera o tributo simbólico de um falcão, a ser entregue, anualmente, ao Vice-Rei da Sicília; ao longo dos tempos, os Grão-Mestres passaram a presentear os Reis de Espanha e França, não por obrigação jurídica, mas por cortesia diplomática, que Vilhena, agora, alargava, por afecto, ao País do seu nascimento, e por deferência para com o seu Soberano.

Durante todo o Grão-Magistério de Vilhena, era D. João V o Rei em Portugal. E, fosse por casualidade, influência ou por ser esse o ambiente político-ideológico do tempo, creio ver, no Grão-Mestre, alguns dos traços positivos que atribuímos a D. João V, dele se podendo dizer, verdadeiramente, que foi Magnânimo.

Essa proximidade a D. João V talvez também explique o que um autor francês actual considera como tendo sido, com António Manoel de Vilhena, uma “monarquização” da figura do Grão-Mestre. A esse propósito, Alain Blondy menciona um projecto de 1736, a que a morte de Vilhena veio pôr termo, e que visava obter, do Papa e dos Príncipes cristãos, a autorização de usar um boné escarlate, fechado com dois círculos de ouro, enriquecidos de pedrarias e pérolas, formando uma Cruz de Malta”. Não se inspiraria este plano na memória de um dos mais brilhantes momentos do Magistério, a oferta pelo Papa a Vilhena, em 1725, do Estoque – espada de prata dourada, de cerca de cinco pés - e do Barrete – género de boné de veludo púrpura, bordado de ouro, guarnecido de um Espírito Santo de pérolas?

 Era distinção muito rara, concedida só a Príncipes e personagens notabilíssimas; em mais de 400 anos, fora-o, apenas, umas 50 vezes, só uma delas a um português, o Rei D. Manuel, nenhuma a um Grão-Mestre de Malta. O último a recebê-la, antes de Vilhena, havia sido o Príncipe Eugénio. Visava premiar quem se tivesse destacado na luta contra os infiéis.

António Manoel de Vilhena teve de enfrentar os Otomanos, logo nos primeiros dias do seu Grão-Magistério.

Contando tirar vantagem de uma revolta dos escravos muçulmanos, que estaria em preparação, uma esquadra otomana de dez navios surgiu em frente de Valeta. Constatando, porém, as medidas defensivas que haviam sido adoptadas, retirou-se, não sem mandar ao Grão-Mestre uma missiva, em que ordenava a libertação dos escravos. Ora, não obstante o tom insolente, Vilhena viu uma oportunidade interessante e preparou uma resposta cortês, entregue não em Tunis, como fora requerido, mas em Constantinopla, por intermédio do Marquês de Bonnac, Embaixador de França. Nela se exprimia a disposição da Ordem em negociar a libertação recíproca dos escravos. A reacção do Grande Vizir foi muito positiva, mostrando mesmo interesse em avançar para uma trégua de 20 anos com a Ordem de Malta. Infelizmente, a oposição do Ministro turco responsável pela Marinha, vexado por não ter sido incluído nas negociações, fez fracassar o projecto.

Assim, as hostilidades mantiveram-se, como foi a regra durante séculos. Além da perseguição, com sucesso, aos corsários berberescos, assinale-se o bombardeamento de Tripoli, em 1728,numa acção de grande envergadura.    

Vilhena reforçou ainda mais as defesas da Ilha, em particular com a construção do notável Forte Manoel, numa ilhota que controla o acesso ao porto de Marsamxett, um dos dois de Valeta. Além do valor propriamente militar, na sua edificação estiveram também presentes preocupações de ordem estética. Em 1728, D. João V fez uma oferta de numerosas peças de artilharia, em bronze, com destino ao Forte.

Mandou erguer outras edifícios. Em Mdina, a antiga Capital, fez elevar um Palácio, para residência dos Grão-Mestres. Não só procurava revitalizar a Cidade, como marcava, com imponência, a grandeza da Ordem, perante a velha Nobreza de Ilha, que ali tinha os seus solares.

Entre Valeta e as fortificações de Floriana , mandou construir um bairro novo, que foi chamado Burgo Vilhena e, nele, dois asilos, que sustentou, um para idosos, outro para incuráveis de ambos os sexos.

 (Será, admito, uma lenda piedosa que o nome Floriana tenha sido dado pelo Grão-Mestre, em honra do seu pai, primeiro Conde de Vila Flor. As linhas defensivas começaram a ser levantadas por ordem de Antoine de Paule, em 1635, e desenhadas pelo Arquitecto italiano Pietro Paolo Floriani).

Reconhece-se a Vilhena o mérito de ter lançado os trabalhos preparatórios do que viria a ser conhecido como Código Rohan (do nome do seu sucessor Emmanuel de Rohan-Polduc), concluído em 1782, com a revisão e a síntese de todas as regras da Ordem, desde os seus inícios.

Como Mecenas protector das Artes, a coroa de Vilhena é o belíssimo Teatro Manoel, em Valeta, o mais antigo Teatro Nacional em funcionamento, no Mundo. Inicialmente chamado Teatro Público, a sua construção foi financiada pessoalmente pelo Grão-Mestre. Destinava-se à “honesta recreação do povo” e foi Inaugurado, em 1731, com a representação da tragédia “Mérope”, de Maffei.   

Por coincidência, tanto o Abbé de Vertot como Frei Lucas de Santa Catarina terminam as suas obras, com referência ao ano de 1725, não cobrindo toda a duração do Magistério de Vilhena.

Por minha parte, embora houvesse muito ainda a dizer, concluirei também, acrescentando apenas, que, eleito Grão-Mestre em 1722, 100 anos após Vasconcelos, a morte de Vilhena ocorreu em 1736, 100 anos após a de Antoine de Paule. O seu túmulo é considerado o mais imponente na Co-Catedral de S. João.

 

                  ANEXO I

“ LIV Seguiu-se o Grão-Mestre Luís Mendes de Vasconcelos, Bailio de Acre, português de nação, e o segundo, que com a nobreza hereditária, e glória adquirida, confirmou no Magistério, a honrosa nomenclatura de Alteza. Subiu a esta pelos autorizados degraus dos cargos da Religião, detendo-se neles o largo espaço da sua vida, não porque o retardasse o demérito, mas porque tendo muitos, em todos deixasse exemplos. Nestes exercícios conheceram, e veneraram, com especial experiência, a sua prudência capacíssima (nas funções de importantes Embaixadas) a Coroa Francesa e a Coroa Romana, como seu valor as ocupações militares, que lhe puseram na mão o bastão de General das Galés, não conseguindo menos glória naquelas, facilitando os negócios, que nestas, repetindo os triunfos. Assim parece que contendessem sempre o Sago, e a Toga sobre qual lhe serviria mais vezes de gala.

Nos seus primeiros anos abraçou o Sagrado militar Instituto desta Religião, a que o levaram os espíritos de nobreza e o génio Português, com que teve sempre simpatias o exercício das armas, como oficina da glória, e das façanhas. Dispô-lo para elas um estremo perigo, de que antes ressuscitou, que saiu com vida, como se já fosse dispondo a fortuna, que começasse, perdendo o medo à morte, quem depois havia de arrancar das mãos dos perigos as coroas da imortalidade. Colocaram-no no Trono as acções com que mereceu esta; mas sem mais, que a posse de cinco meses, o perdeu com a vida. Fatalidade das virtudes heróicas, que se lhe abrevie aquela glória lograda, já que se não lhe pode negar merecida! Roubou-lha a morte quando já contava oitenta anos, no de mil seiscentos e vinte e três, como se quisesse mostrar a superior providência (que não restando mais que obrar à prudência, e ao valor) se lhe dava o Magistério, mais para prémio que para exercício; bastando que as grandes acções que obrara merecendo-o, fossem fiadoras das que executaria exercitando-o. Mas glória singular deste Herói, a que impossibilitado o prémio, ocupou toda a vida o merecimento! No comum jazigo dos Grão-Mestres, tem sepultura, em que se lhe abrevia o epitáfio um elogio, que em seu lugar nos tornará a dar assunto, como sempre às vozes da Fama, que ele soube executar melhor cronista”.

Frei Lucas de Santa Catarina, “Memórias da Ordem Militar de S. João de Malta”

                                                              

                      ANEXO II

“ LV Seguiu-se o Grão-Mestre D. António de Paula, Prior de S. Gil, e o terceiro com título de Alteza, que ainda que assustado com o insuperável inimigo da peste, assim dispôs a guarda sua Cidade, que triunfando brevemente dele, passaram logo as suas Galés a sinalizar-se com importantes presas e singulares vitórias. Não foi de menos glória a que logo no princípio do seu Governo alcançou da malevolência de seus émulos, que infamando seus costumes de dissolutos, como a sua eleição de inválida, recorreram ao tribunal Pontifício, com uma informação tão injuriosa, como a que tinha por relatores o ódio, e a inveja; mas pôs-se silêncio na causa, temendo-se convencidos os fautores dela. A este crédito se seguiu ao mesmo Grão-Mestre o que lhe resultou da facção de Santa Maura, Praça combatida, e entrada com galharda resolução, e bravozidade Maltesa, contra a opinião de alguns que de difícil a passavam a inexpugnável, saindo assim cavaleiros, como Soldados, tão coroados com o triunfo, como premiados de despojo. Emudeceu brevemente os vivas desta  vitória, a funesta notícia de um conflito naval, em que o valor Hospitalário , mais por emulação indiscreta , que por falta de vigorosa resistência, deixou duas Galés (e muita Nobreza de todas as línguas) nas mãos do comum inimigo, nem por vitorioso, menos castigado de considerável, e sensível perda, como admirável de resistência católica, em que se fez o maior lugar D. Jerónimo de Sousa da Cunha, Português, que (roto todo o corpo a mosquetazos, e sustentando com a mão esquerda os intestinos, vivendo só na direita, em que meneava a espada) se dilatou nas mortes, , que tirava, a vingar e a dar a conhecer o preço da que perdia. Mas esta perda, que foi a única para o Grão-Mestre, se vingou dous meses depois no mar de Chipre, castigados os bárbaros (em que se contavam trezentos mortos, e grande numero cativos) tomada a sua mais soberba , e famosa Capitania, com a glória de inferior número de Soldadesca, com que intrepidamente foi entrada, e rendida.

Acresceu a esta vingança outra não menos estimável glória para o Grão-Mestre, em um Breve , que lhe remeteu o Pontífice  Urbano VIII, que com elegante estilo lhe trocou em Católico triunfo aquele primeiro lutuoso conflito, aplaudindo-lhe, e premiando-he a fortaleza, e a vigilância, com que promovia a sua Religião à reputação mais gloriosa, nos exercícios da piedade, e da milícia, na providência de máquinas, e petrechos de guerra, na reforma dos costumes em toda a Ilha, no exercício quotidiano dos Cavaleiros, e na observância inviolável dos Estatutos; o que tudo coroou o seu Magistério de gloriosos acertos. Pendendo deles a disposição das funções marítimas, se recolhiam as suas Galés , como por foro vitoriosas, o  que se experimentava também nos baixéis do mesmo Grão-Mestre, em que pareceu, que a sua direcção e experiência , influíam valor, e fortuna.

Celebrou um Capítulo geral com grande utilidade da Ordem. Foi Príncipe igualmente pio, generoso, liberal e magnânimo, virtudes, que o fizeram, e conservaram tímido (sic) ,e vitorioso de seus émulos, venerado de todos, e amado com especialidade de seus Cavaleiros. Testemunhou-o o sentimento, e lutuosas demonstrações, com que se lamentou sua morte, no ano de mil seiscentos e trinta e seis, em que depois de oitenta de idade, ainda se lhe julgou a vida por breve. Deixou na Ilha monumentos de sua religião, piedade e grandeza. Das com que se adquiriu imortal memória, se lêem elegantes testemunhos em sua sepultura”.

Frei Lucas de Santa Catarina, “Memórias da Ordem Militar de S. João de Malta”

 

                         ANEXO III

 “ LXV Seguio-se o Gram Mestre D. António Manoel de Vilhena, de inclyta, e Régia ascendência, trazendo sua origem do esclarecido Rey D.Fernando III, de Castella, cognominado o Santo. Mais immediatos exemplares de valor o execurarao nos prelúdios, e progressos da milícia Hospitalária, (a que o destinou o valor, e a nobreza) em seu heróico pay, (hum dos famosos Generaes, que virão as Campanhas Portuguesas, coroado de vitórias) D. Sancho Manoel, de que ainda soão nos ouvidos da admiração deste século, os militares vivas, que acclamarão suas proezas.

Occupou D. António os primeiros lugares da Religião, com antecipadas mostras de ânimo guerreiro, que o adiantarão ao cargo de Commandante, nas Galés contra os  bárbaros, na guerra da Morea, em que se houve com tão valerosa e militar destreza, que de idade de trinta e dous annos lhe honrou o peito a Gram Cruz, passando à dignidade de Gram Canceller, Cabeça da Língua de Portugal, e Castella, e logo à de Ballio de Acre, degraos, porque dando-lhe a mão o valor, a nobreza, e a benevolência, (que o fez bem quisto) sobio ao Throno do Magistério, seguindo aos votos dos Eleitores o commum applauso de seus Cavalleiros, e Vassallos, que comaçarão a experimentar, e reconhecer, na abundância, que se vio na Ilha, (pelas grossas prezas, que a enriquecerão, não fallando dos muitos Cathólicos, que se resgatarão) um plausível vaticínio das felicidades de seu governo. Não foy nelle menos estimável prelúdio, a prompta providência , com que , com militar idéa, começou a fortificar a mesma Ilha,  ameaçada do formidável apparato do commum inimigo, a que sem dúvida desarmou os projectos a fama da sua vigilância, como também desenganaria depois o valor da sua resistência, commo já uma machina naval com que o ameaça.

No anno de mil setecentos e vinte e cinco (que isto escrevemos) conta dous no seu governo, apalavrando, com os acertos delle, as atenções do Christianíssimo, e merecendo ao nosso Augusto Monarcha D. João o V, o Magnífico, não só as demonstrações do Real agrado, com que estima, e preza tão generosa, esclarecida, e Sagrada Milícia, mas o estimável lugar, que offerece aos seus Heroes Hospitalários, no immortal Templo da Lusitânia Sacra, que com grandiosidade Régia, prudência, e direcção generosa, lavra, erige, e consagra à sua, como à glória Portugueza.

Nas deste Heroe, tão benemérito della, como o mais esclarecido Vassalo desta Coroa, (por mais que independente de todas, cinja agora a sua) não alargamos mais a penna, reservada para mais singular escritura, em que nos tornará a servir de assumpto, e sempre de crédito)”.

Frei Lucas de Santa Catarina, “Memórias da Ordem Militar de São João de Malta”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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