Foi publicado recentemente Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), do embaixador Bernardo Futscher Pereira, que constitui o último volume da trilogia dedicada à diplomacia do Estado Novo, composta por A Diplomacia de Salazar (1932-1949), editado em 2012 e Crepúsculo do Colonialismo - A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961), editado em 2017.
Neste terceiro volume, o autor revisita a diplomacia de Salazar, e depois a de Marcelo Caetano, no período da guerra colonial, dando especial destaque - porventura excessivo - à actividade nos teatros de operações (Guiné, Angola e Moçambique). É certo que existiu uma correspondência biunívoca entre actividade diplomática e actividade militar, mas a descrição pormenorizada de inúmeras operações especiais implica, por vezes, uma quebra da atenção sobre a forma como foi conduzida a política externa portuguesa. Omitindo muitos detalhes militares, talvez não fossem necessárias as cerca de 500 páginas.
Trata-se, contudo, de um trabalho da maior importância e eu, que sou já muito antigo, tive um especial prazer em ler a descrição de factos e a menção de pessoas que me foram familiares, através dos jornais, nesses longínquos anos 60 e 70 do século passado. Algumas das figuras citadas cheguei mesmo a conhecê-las pessoalmente. Sendo diplomata (é actualmente o nosso embaixador em Rabat) e filho de diplomata (o pai, Vasco Futscher Pereira foi igualmente embaixador e também ministro dos Negócios Estrangeiros) o autor está particularmente bem colocado para analisar o comportamento do Palácio das Necessidades nesse período conturbado da vida nacional.
Sempre constituiu para mim (e creio que para toda a gente) um enigma o facto de Salazar, sendo uma pessoa inegavelmente inteligente e conhecedora da política internacional, se ter recusado até ao fim da sua vida útil a admitir a independência dos territórios portugueses em África, quando todos os países europeus, que haviam partilhado por inteiro o continente africano, se haviam já retirado das suas possessões. Salazar era um legalista, e inflexível nos princípios (foi grande a sua indignação, como refere o autor, quando os americanos lhe propuseram uma soma fabulosa de dinheiro em troca da independência das colónias), mas prosseguir uma guerra, que viria a durar até 1974, quando toda a África era já independente (a própria Argélia, considerada uma extensão da França, adquirira esse estatuto em 1962) afigurava-se uma empresa destituída de sentido.
Parece hoje impossível como Portugal conseguiu manobrar diplomaticamente (em especial durante o tempo de Franco Nogueira) evitando grandes males perante a hostilidade de quase todo o mundo. Estávamos, de facto, "orgulhosamente sós", como afirmou Salazar em discurso à nação, em 18 de Dezembro de 1965.
O regime teve algumas oportunidades para mudar de política. A primeira foi em Abril de 1961, caso tivesse triunfado o golpe do general Botelho Moniz, destinado a afastar Salazar e a inverter a posição de Portugal relativamente a África. A segunda foi em 1963, quando a situação política e militar era favorável e Franco Nogueira (cuja atitude só posteriormente se foi radicalizando) era nessa altura partidário de um plebiscito que Salazar impediu. A terceira foi em 1969, quando Marcelo Caetano sucedeu a Salazar e Caetano aceitou as condições de Américo Thomaz. A quarta, e última, foi em 1972, quando terminando o segundo mandato de Thomaz este foi proposto por Caetano como recandidato em vez de Spínola que poderia ter encontrado uma solução para o problema ultramarino, graças ao seu conhecimento do terreno e até porque havia já conversações com os movimentos de libertação.
O esforço de guerra de Portugal em 13 anos de guerra colonial foi imenso e não era antecipadamente imaginável. O país chegou a ter 330 000 homens em armas, incluindo a metrópole, a Guiné, Angola e Moçambique (p. 253), o que é notável atendendo à nossa dimensão.
Não subscrevendo por inteiro todas as teses do autor, e considerando que algumas interpretações são um tanto ou quanto subjectivas, reconheço que se trata de um livro importante, e necessário, para o conhecimento da nossa diplomacia à época.
Discordo, por exemplo, quando Futscher Pereira afirma que Salazar era um homem eminentemente católico. Admito que o tenha sido no início da sua vida mas suponho que, com o passar dos anos, a sua fé tenha largamente esmorecido. Isto no campo estritamente pessoal, porque no político foi de grande reserva e hostilidade a sua atitude em relação à Igreja Católica, especialmente a partir de João XXIII e nomeadamente de Paulo VI, que foi à Índia e recebeu os dirigentes dos movimentos de libertação, embora tenha acedido depois a vir a Fátima no cinquentenário da aparições. Diria antes que Salazar utilizou a Igreja como suporte do regime.
Quando o autor refere que Salazar era vingativo não sei se exagera, embora seja bem verdade que nunca esquecia qualquer afronta ou atitude que lhe desagradasse.
Na referência a muitos acontecimentos e documentos, Futscher Pereira indica obviamente as datas mas, especialmente na primeira parte do livro, menciona o mês, e mesmo o dia, esquecendo-se muitas vezes de indicar o ano, numa obra em que a cronologia não é, não poderia ser, rigorosamente respeitada, o que obriga o leitor a uma pesquisa pessoal.
Existem também algumas imprecisões. Por exemplo, quando refere que «a Tanzânia resultava da fusão entre o Tanganica e o sultanato de Zanzibar - a antiga Madagáscar» (p. 141). Não vejo a relação entre Zanzibar e Madagáscar. Ou «O comandante Pedro Pinto, futuro Presidente da República de Cabo Verde» (p. 148). Deve estar a referir-se a Pedro Pires.
Existem outros lapsos que não anotei mas, no conjunto, é uma obra de grande valia.
3 comentários:
há um lapso (óbvio) na data do golpe Botelho Moniz
Verifico agora que escrevi 1991. Vou corrigir.
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