terça-feira, 11 de outubro de 2022

ORGULHOSAMENTE SÓS

Foi publicado recentemente Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), do embaixador Bernardo Futscher Pereira, que constitui o último volume da trilogia dedicada à diplomacia do Estado Novo, composta por A Diplomacia de Salazar (1932-1949), editado em 2012 e Crepúsculo do Colonialismo - A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961), editado em 2017.

Neste terceiro volume, o autor revisita a diplomacia de Salazar, e depois a de Marcelo Caetano, no período da guerra colonial, dando especial destaque - porventura excessivo - à actividade nos teatros de operações (Guiné, Angola e Moçambique). É certo que existiu uma correspondência biunívoca entre actividade diplomática e actividade militar, mas a descrição pormenorizada de inúmeras operações especiais implica, por vezes, uma quebra da atenção sobre a forma como foi conduzida a política externa portuguesa. Omitindo muitos detalhes militares, talvez não fossem necessárias as cerca de 500 páginas.

Trata-se, contudo, de um trabalho da maior importância e eu, que sou já muito antigo, tive um especial prazer em ler a descrição de factos e a menção de pessoas que me foram familiares, através dos jornais, nesses longínquos anos 60 e 70 do século passado. Algumas das figuras citadas cheguei mesmo a conhecê-las pessoalmente. Sendo diplomata (é actualmente o nosso embaixador em Rabat) e filho de diplomata (o pai, Vasco Futscher Pereira foi igualmente embaixador e também ministro dos Negócios Estrangeiros) o autor está particularmente bem colocado para analisar o comportamento do Palácio das Necessidades nesse período conturbado da vida nacional.

Sempre constituiu para mim (e creio que para toda a gente) um enigma o facto de Salazar, sendo uma pessoa inegavelmente inteligente e conhecedora da política internacional, se ter recusado até ao fim da sua vida útil a admitir a independência dos territórios portugueses em África, quando todos os países europeus, que haviam partilhado por inteiro o continente africano, se haviam já retirado das suas possessões. Salazar era um legalista, e inflexível nos princípios (foi grande a sua indignação, como refere o autor, quando os americanos lhe propuseram uma soma fabulosa de dinheiro em troca da independência das colónias), mas prosseguir uma guerra, que viria a durar até 1974, quando toda a África era já independente (a própria Argélia, considerada uma extensão da França, adquirira esse estatuto em 1962) afigurava-se uma empresa destituída de sentido.

Parece hoje impossível como Portugal conseguiu manobrar diplomaticamente (em especial durante o tempo de Franco Nogueira) evitando grandes males perante a hostilidade de quase todo o mundo. Estávamos, de facto, "orgulhosamente sós", como afirmou Salazar em discurso à nação, em 18 de Dezembro de 1965. 

O regime teve algumas oportunidades para mudar de política. A primeira foi em Abril de 1961, caso tivesse triunfado o golpe do general Botelho Moniz, destinado a afastar Salazar e a inverter a posição de Portugal relativamente a África. A segunda foi em 1963, quando a situação política e militar era favorável e Franco Nogueira (cuja atitude só posteriormente se foi radicalizando) era nessa altura partidário de um plebiscito que Salazar impediu. A terceira foi em 1969, quando Marcelo Caetano sucedeu a Salazar e Caetano aceitou as condições de Américo Thomaz. A quarta, e última, foi em 1972, quando terminando o segundo mandato de Thomaz este foi proposto por Caetano como recandidato em vez de Spínola que poderia ter encontrado uma solução para o problema ultramarino, graças ao seu conhecimento do terreno e até porque havia já conversações com os movimentos de libertação.

O esforço de guerra de Portugal em 13 anos de guerra colonial foi imenso e não era antecipadamente imaginável. O país chegou a ter  330 000 homens em armas, incluindo a metrópole, a Guiné, Angola e Moçambique (p. 253), o que é notável atendendo à nossa dimensão.

Não subscrevendo por inteiro todas as teses do autor, e considerando que algumas interpretações são um tanto ou quanto subjectivas, reconheço que se trata de um livro importante, e necessário, para o conhecimento da nossa diplomacia à época. 

Discordo, por exemplo, quando Futscher Pereira afirma que Salazar era um homem eminentemente católico. Admito que o tenha sido no início da sua vida mas suponho que, com o passar dos anos, a sua fé tenha largamente esmorecido. Isto no campo estritamente pessoal, porque no político foi de grande reserva e hostilidade a sua atitude em relação à Igreja Católica, especialmente a partir de João XXIII e nomeadamente de Paulo VI, que foi à Índia e recebeu os dirigentes dos movimentos de libertação, embora tenha acedido depois a vir a Fátima no cinquentenário da aparições. Diria antes que Salazar utilizou a Igreja como suporte do regime.

Quando o autor refere que Salazar era vingativo não sei se exagera, embora seja bem verdade que nunca esquecia qualquer afronta ou atitude que lhe desagradasse. 

Na referência a muitos acontecimentos e documentos, Futscher Pereira indica obviamente as datas mas, especialmente na primeira parte do livro, menciona o mês, e mesmo o dia, esquecendo-se muitas vezes de indicar o ano, numa obra em que a cronologia não é, não poderia ser, rigorosamente respeitada, o que obriga o leitor a uma pesquisa pessoal. 

Existem também algumas imprecisões. Por exemplo, quando refere que «a Tanzânia resultava da fusão entre o Tanganica e o sultanato de Zanzibar - a antiga Madagáscar» (p. 141). Não vejo a relação entre Zanzibar e Madagáscar. Ou «O comandante Pedro Pinto, futuro Presidente da República de Cabo Verde» (p. 148). Deve estar a referir-se a Pedro Pires.

Existem outros lapsos que não anotei mas, no conjunto, é uma obra de grande valia.

 

3 comentários:

passotrocado disse...

há um lapso (óbvio) na data do golpe Botelho Moniz

Blogue de Júlio de Magalhães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Verifico agora que escrevi 1991. Vou corrigir.