sábado, 26 de novembro de 2022

PETRA VON KANT E PETER VON KANT

ESTÁ LÁ TUDO!!!

Decorridos cinquenta anos sobre o filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), de Rainer Werner Fassbinder, surge este ano Peter von Kant (2022), de François Ozon. Como peça de teatro, Die bitteren Tränen der Petra von Kant tivera estreia em 1971, em Frankfurt.

O texto de Peter von Kant  é praticamente idêntico ao de As Lágrimas Amargas..., mutatis mutandis a indispensável adaptação às circunstâncias das personagens. A relação entre duas mulheres transforma-se na relação entre dois homens. Adaptação realizada de forma magistral por François Ozon, que vai ao ponto de incluir no elenco Hanna Schygulla, atriz-fetiche de Fassbinder, no papel de Mãe, ela que interpretara há cinquenta anos o de amante da protagonista de As Lágrimas...   

Em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Petra, uma designer de moda apaixona-se por uma rapariga de condição social modesta (Karin), instala-a em sua casa mas as relações deterioram-se e Karin, já celebrizada pela amante como manequim, acaba por abandoná-la. Petra fica devastada.

Em Peter von Kant, Peter, realizador cinematográfico, apaixona-se por um rapaz árabe (Amir), instala-o em casa, mas as relações entre ambos tornam-se também tempestuosas e Amir, já promovido no cinema pelo amante, vai também abandoná-lo. Peter fica igualmente devastado.

Enquanto no primeiro filme as duas personagens são alemãs, no segundo Amir é árabe (e o próprio actor que interpreta o papel é também árabe, Khalil ben Gharbia) para tornar mais picante a relação. Em fin connaisseur do meio, François Ozon cede à "tentation arabe" de que nos fala Frédéric Mitterrand no seu livro La Mauvaise vie. E baptiza o rapaz de "Amir" (ou Emir), que em árabe significa "Príncipe".

Repare-se que Ozon não hesitou mesmo em conservar a cena de Fassbinder em que é revelada a infidelidade conjugal dos amantes. Enquanto Karin diz a Petra que o facto de ter chegado muito tarde a casa uma noite se deveu a ter estado na cama com um negro, com uma pele de seda e um volumoso pénis, também Amir confessa a Peter que dormiu com um rapaz negro, igualmente de pele sedosa e generosamente dotado em termos sexuais. A alusão à performance sexual dos negros é perfeitamente compreensível em Fassbinder, que teve vários amantes negros, em especial El Hedi ben Salem, fiel à tradição de que os negros são os homens que a natureza privilegiou com falos de maior tamanho.

Em entrevista a "L'Obs"(nº 3011, de 30.06.2022), Denis Ménochet, que interpreta magistralmente o papel de Peter, diz: «Et puis Peter von Kant, c'est aussi François [Ozon]».

É indiscutível que Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) foi um dos mais notáveis e prolíferos realizadores alemães (também dramaturgo, actor e encenador) da segunda metade do século passado. Na sua curta carreira, devem-se-lhe cerca de 40 filmes e 20 peças de teatro.

As suas grandes preocupações foram a questão das relações sexuais (especialmente homossexuais) e sentimentais, a diferença das idades e das classes sociais, o espírito pequeno-burguês de crítica e de denúncia dos relacionamentos afectivos quando considerados impróprios pela sociedade, e, sobretudo, a solidão. Muitos dos seus próprios problemas transitaram para a sua produção artística. A sua desilusão com a humanidade levou-o a mergulhar no álcool e nas drogas que haviam de vitimá-lo. Sendo certamente homossexual e homem de esquerda, Fassbinder foi estranhamente acusado de não ter mostrado correctamente nos seus filmes a realidade que retratava, quer pelas associações homossexuais (e ainda não havia "me too" ou "LGBTI", nem o politicamente correcto tinha assomado à porta), quer pelas forças políticas marxistas ou esquerdistas e até pelos movimentos anti-semitas. E, naturalmente, foi atacado pelos conservadores. Possivelmente, hoje, nem conseguiria fazer filmes ou apresentar as suas peças em teatros.

A peça As Lágrimas Amargas de Petra von Kant foi representada várias vezes em Portugal. Estou a recordar-me da produção pelo Grupo Teatro Hoje, no Teatro da Graça (1986), com encenação de Carlos Fernando e interpretação de Lia Gama, Elisa Lisboa, Fernanda Alves, Sara Lima, Maria José Pascoal e Isabel de Castro. Um grande espectáculo a que tive o privilégio de assistir.

Como aconteceu com Fassbinder, talvez o filme Peter von Kant venha a ser ainda (inversamente na criação) uma peça de teatro. Para já, é um filme excepcional! 

 

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