sexta-feira, 4 de novembro de 2022

TUT-ANKH-AMON

Completam-se hoje 100 anos sobre a descoberta, por Howard Carter (1874-1939), de um túmulo (quase) intacto no Vale dos Reis, que, dias mais tarde, viria a revelar-se ser o do faraó da XVIII Dinastia, Tut-Ankh-Amon, também escrito Tut-Ankh-Amun ou Tut-Ankh-Amen.

O relato dessa maravilhosa descoberta foi feito pelo próprio Howard Carter em três volumes, o primeiro dos quais em colaboração com  Arthur Cruttenden Mace, curador associado do Metropolitan Museum of Art de New York, que participou nas escavações.

São os seguintes os volumes, convenientemente ilustrados:

I - The Tomb of Tut.ankh.Amen - Search, Discovery and Clearance of the Antichamber (1923)

II - The Tomb of Tut.ankh.Amen - The Burial Chamber (1927)

III - The Tomb of Tut.ankh.Amen - The Annexe and Treasury (1933)

Apesar de se tratar de um documento da maior importância, o trabalho de Carter (900 páginas no total) só em 1972 foi editado em língua francesa, em edição resumida (180 páginas) incluindo o I volume e um capítulo do II volume da edição inglesa, com a designação de La fabuleuse découverte de la tombe de Toutankhamon.

É sobre a edição francesa que teceremos aqui umas breves considerações.

Importa dizer que dos milhares de livros publicados em todo o mundo sobre Tut-Ankh-Amon e a descoberta do seu túmulo, a obra de referência continua a ser Vie et mort d'un pharaon - Toutankhamon, de Christiane Desroches Noblecourt (1963), conservadora em chefe dos Museus Nacionais de França, sem ignorar a magnífica edição da American University in Cairo Press, Tutankhamun - The eternel splendor of the boy pharaoh, de T.G.H. James, com ilustrações sumptuosas (2000). E ainda, fazendo extraordinárias revelações, Tutankhamen - The Life and Death of a Boy King, de Christine El Mahdy (1999).

Christiane Desroches Noblecourt

Após seis anos de infrutíferas pesquisas no Vale dos Reis, com o apoio financeiro de um grande apaixonado pelo Egipto Antigo, Lord George Herbert Carnarvon (1866-1923), Howard Carter estava prestes a desistir de prosseguir as suas escavações efectuadas numa zona próxima do túmulo de Ramsés VI, em cuja vizinhança haviam sido encontrados alguns objectos danificados com a inscrição de Tut-Ankh-Amon.

T.G.H. James

Em  28 de Outubro de 1922, chegou a Luxor para uma derradeira tentativa. Existiam na zona algumas cabanas construídas em tempos para utilização dos operários que trabalharam nos túmulos faraónicos. Essas cabanas ocultavam um espaço ainda não explorado. E foi aí que recomeçaram a escavar. 

Na manhã de 4 de Novembro, há precisamente 100 anos, houve um grande silêncio. Os operários tinham achado o primeiro degrau de uma escada. Na tarde de 5, os trabalhadores encontraram a parte superior da escada. Ao fundo havia uma porta selada. 

Na manhã do dia 6, Howard Carter enviou um telegrama a Lord Carnarvon a informá-lo da descoberta. Este decidiu dirigir-se imediatamente ao Egipto. No dia 20, desembarcou em Alexandria, viajou para o Cairo e no dia 23 estava em Luxor, acompanhado de sua filha, Lady Evelyn Herbert. Na tarde de 26, Carter retirou os selos, que se verificou serem de Tut-Ankh-Amon, e após as necessárias escavações entraram ambos na necrópole do faraó. Tinham penetrado na antecâmara, onde havia grande desordem de maravilhosos objectos. Os ladrões, apesar do selo reposto na porta de entrada, haviam chegado primeiro, mas, como posteriormente se constatou, teriam visitado o túmulo poucos anos depois da inumação e fugido precipitadamente devido a qualquer acontecimento. O túmulo foi novamente fechado e permaneceu desde então intacto até aos nossos dias, passados mais de 3 000 anos. 

Na antecâmara existiam objectos magníficos, preciosos, que se encontravam em grande desordem, devido certamente à intrusão dos ladrões de túmulos. Alguns tinham sido danificados, mas os assaltantes devem ter roubado apenas coisas de pequena dimensão, dada a estreiteza da passagem que tinham escavado para atingir o sepulcro. Foi entretanto encontrada, também selada (mas remexida) outra divisão com cerca de metade da superfície da antecâmara, recheada igualmente de notáveis obras, e a que se convencionou chamar o Anexo.

No dia 29, o túmulo foi apresentado oficialmente às entidades que se puderam deslocar: Lady Allenby (mulher do Alto-Comissário britânico Lord Allenby, retido no Cairo por motivos oficiais), Abd el-Aziz Ben Yehia, governador da província, Mohamed Bey Fahmy, mamur do distrito, e um certo número de notáveis egípcios. No dia seguinte, a 30, o túmulo recebeu a visita de M. Tottenham , conselheiro do Ministério das Obras Públicas e de Pierre Lacau, director-geral do Serviço de Antiguidades, que não tinham podido deslocar-se na véspera.

A 3 de Dezembro o túmulo foi devidamente barricado e Lord Carnarvon regressou a Inglaterra.

Para exame e tratamento dos preciosos objectos, e dadas as reduzidas dimensões do hipogeu, foi concedida autorização para instalar um pequeno laboratório no túmulo, desocupado,  de Seti II, a fim de se proceder à indispensável identificação das peças e conveniente tratamento e embalagem antes de viajarem para o Cairo. [Refere Carter o túmulo de Seti II, que se encontra próximo, mas, consultando eu o mapa, o túmulo próximo do de Tutankhamon é o de Seti I. Será um lapso?]

Estando o trabalho na antecâmara terminado em meados de Fevereiro, foi resolvido desvendar o mistério da outra porta selada. No dia 17 de Fevereiro de 1923, às duas horas, entraram no túmulo os que deveriam ter o privilégio de assistir à cerimónia. Estavam presentes Lord Carnarvon, Lady Evelyn Herbert, Abd el-Halim Pacha Souleman, ministro das Obras Públicas, Pierre Lacau, director-geral do Serviço de Antiguidades, Sir William Garstin, Sir Charles Cust, M. Lythgoe, conservador do departamento das Antiguidades Egípcias do Metropolitan Museum, o eminente professor James Breasted, o doutor Alan Gardiner, M. Winlock, o Honorable Mervyn Herbert, o Honorable Richard Bethell, M. Engelbach, inspector em chefe do departamento das Antiguidades, três inspectores egípcios do mesmo departamento, o representante dos Serviços de Imprensa do Governo e os membros da equipa. Ao todo, umas vinte pessoas. 

Carter descreve em pormenor a delicadeza da operação. A divisão tinha o selo intacto mas também havia sido visitada. Ao fim de duas horas de trabalho, uma nova sala ficou à vista, que é como quem diz, encontraram uma imensa parede dourada, ou seja um dos lados de uma capela (sacrário ou relicário) que ocupava praticamente toda a divisão. Entre as as paredes da capela e as paredes da divisão mais não havia do que uns 60 cm de distância. Resumindo: a capela encerrava outra de menor volume, a qual, por sua vez encerrava uma terceira, e finalmente uma quarta. O trabalho de desmontagem e retirada destas armações foi árduo e complexo. A segunda capela tinha os selos intactos. Acabava de ser descoberta a câmara funerária de Tut-Ankh-Amon. Uma outra porta baixa, nessa divisão, e igualmente selada, foi também aberta e surgiu então aos visitantes um conjunto de peças deslumbrantes. Essa sala ficou conhecida como câmara do tesouro. Também os ladrões lá tinham penetrado mas apenas arrombaram dois cofres.

Entretanto, os acontecimentos políticos no país e a morte súbita de Lord Carnarvon em 5 de Abril seguinte determinaram a suspensão dos trabalhos e o encerramento provisório do túmulo.

Em 10 de Outubro de 1925, recomeçaram os trabalhos. Dentro da última capela existia um sarcófago de quartzito e dentro dele três sarcófagos de madeira e ouro e pedras preciosas. Encerrada no último sarcófago encontrava-se a múmia do faraó, coberta por uma máscara de ouro maciço e pedrarias. 

Dispenso-me, naturalmente, de entrar em pormenores sobre a mais espantosa descoberta do começo do século passado, mas a todos aconselho vivamente a leitura de qualquer obra descrevendo esta extraordinária aventura.

Sobre o final do reinado de Akhenaton e o advento de Tutankhamon, escreve a egiptóloga Christine El Mahdy: «Akhenaten has ruled for twelve years. When it must have seemed as if things in Egypt could not get worse, total chaos erupted. The second daughter of Akhenaten and Nefertiti, Princess Meketaten, died suddenly and unexpectedly. Was is this tragedy that finally warped the King's mind? Soon after the burial of the Princess, Queen Nefertiti was thrown out of the palace and the now insane King Akhenaten announced publicly for the first time that he was homosexual. Nefertiti was publicly humiliated. She withdrew to the Northern Palace in Tell el Amarna where she languished, rejected and isolated. Finally, she died of a broken heart.

In the royal palace, her place was taken immediately by the royal catamite Smenkhkare. Exactly who the young man was is uncertain except that he had a little brother, Tutankhaten. To try to settle public opposition, Akhenaten forced his lover to marry his eldest daughter, Princess Meritaten. Smenkhkare was crowned co-Regent, ensuring that after Akhenaten died, he would inherit the throne without dispute.

After seventeen years as King, Akhenaten finally died and Smenkhkare and Meritaten took the throne. They had ruled for only a very short time - perhaps a matter of few months - when they both disappeared mysteryously at the same time.» (p. 88)

«We know that Akhenaten exiled himself to Tell el Amarna after he had first moved there and that no evidence is available to suggest that he ever left there again. As Akhenaten elevated Smenkhkare to co-regency in year 12, the two men must have known each other for some time beforehand, and thus Smenkhkare must also have been living in, or was a regular visitor to, Tell el Amarna. At any rate, when promoted by the King, he must have been living there. If Tutankhamen is the little brother of Smenkhkare, then at the very moment that his brother openly entered the bed of the King, causing the eviction and public humiliation of Nefertiti, Tutankhamen's mother was actually giving birth to him. 

The picture that we must believe, then, is of a much older youth becoming the lover of the King of Egypt at the same time that this youth's mother was giving birth to a baby. Egyptian texts suggest that mothers breastfed their infants as long as they could -a practice still common in countries where weaning is often the riskiest time of a child's existence. The wisdom text of Ani, in the Cairo Museum, states that one should revere one's mother because 'she had her breast in your mouth for three years'. Thus, while Smenkhkare was dominating the palace, his mother must have been breastfeeding his baby brother around the place. In other words, we cannot immagine that Tutankhamen in any way jostled for the throne. There is no way that he could have decided to 'marry' Princess Ankhesenpaaten in order to take the throne. He was simply too young.» (p. 138)

«In order for Tutankhamen to become King, his predecessor must have died. In this case, it was his older brother Smenkhkare. We know that Smenkhkare married Princess Meritaten, the eldest daughter of Akhenaten. As far as we can ascertain, since neither of them are ever heard of again, thy must have died at the same time. We know that Meritaten was born soon after the start of her father's reign. Allowing Akhenaten's seventeen years of rule and Smenkhkare's two, this would have made around nineteen years old, and her husaband presumably must have been a similar age. It is highly unlikely that two nineteen-year-olds died of natural causes at exactly the same time. One must assume that someone who opposed everything Smenkhkare stood for must have removed them both. If this is the case, why did Tutankhamen become King at all? Why should someone kill the existing King  - presumably because of his homosexuality and heretical views - only to replace him with that person's seven -year-old brother? We know of several occasions in ancient Egypt when the official line of kings died out and the throne then went sideways into the hands of a vizier os similar official - at any rate, into the hands of some very powerful man. We are suggesting here that a man powerful and influential enough to murder the King and Queen should they stand aside for seven-year-old without the least right to the throne. It makes no sense.

When Tutankhamen was crowned, we know from inscriptions that as well as viziers, two extremly powerful old men were appointed viceroys on the King's behalf, presumably until he was old enough to take control for himself. These two men were Ay, the brother of Queen Tiye, Akhenaten,'s mother; and Horemheb, Commander-in-Chief of the Egyptian army. Both of them ultimately became King of Egypt in turn. If either of them murdered Smenkhkare and Meritaten, then it is astounding that they allowed Tutankhamen to be crowned; both were ambitious, both highly intelligent. Ay became Viceroy of Upper Egypt, based in Luxor; Horemheb, Viceroy of Lower Egypt, based in Memphis. One of them could have had total power by himself - so why settle for only half?» (pp. 140-1)

A autora prossegue depois com uma série de hipóteses de parentesco entre estas personagens que não cabe neste espaço.

NOTA: Ao reler a obra de Christiane Desroches Noblecourt, verifico que ela ainda considera Tut-Ankh-Amon como irmão de Amenófis IV (Akhenaton). Ora é hoje geralmente aceite que Tut era filho de Akhenaton, mas de outra mulher (Kiya) que não a rainha Nefertiti (as opiniões aqui também são diversas). Casou com sua meia-irmã Ankhesenamon, que seria filha de Nefertiti, ou não. A Akhenaton sucedeu no trono seu filho (ou irmão, ou genro, ou amante) Smenkhkare (casado com Meritaton, filha de Akhenaton e de Nefertiti)  e só depois da morte deste Tut-Ankh-Amon subiu ao trono. Pode ter acontecido que Smenkhkare tenha reinado ainda em vida de seu pai, associado a este, tendo morrido antes dele, ou pouco tempo depois. Restam pois, ainda hoje, muitas incógnitas sobre os laços de parentesco desta estranha família.

Importa recordar que no Egipto Antigo o casamento entre pais, filhos, irmãos, mães, filhas ou irmãs era uma coisa perfeitamente natural, não só na família real e nas classes elevadas mas mesmo nas classes populares. O tabu do incesto só foi introduzido mais tarde, especialmente nas sociedades monoteístas. Ainda hoje esse tabu não existe em diversas culturas mais periféricas. Freud e Lévi-Strauss escreveram sobre o tema.


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