Em 2001, o escritor francês Michel Braudeau (n. 1946), [autor de cerca de 30 obras, prémio Médicis 1985 ( por Naissance d'une passion), director desde 1999 da "Nouvelle Revue Française" (NRF), fundada em 1909 por André Gide (o primeiro director), Jean Schlumberger, etc. e da qual Gaston Gallimard se tornou editor em 1911, criando as Éditions Gallimard], publicou um volumoso romance (quase 700 páginas) intitulado L'interprétation des singes.
Adquiri então a obra, que comecei a ler com interesse, mas, como muitas vezes acontece, compromissos com prazos obrigaram-me a suspender a leitura, ainda nas primeiras páginas. O livro voltou para uma estante, aonde permaneceu até há semanas. Nem o facto de ter conhecido pessoalmente Michel Braudeau, há uns sete anos atrás, em Paris, na sede das edições Gallimard, apresentados por um amigo comum, determinou que lhe voltasse a pegar.
Por razões que não consigo determinar, talvez o acaso, ou porque necessitei de algum volume da mesma prateleira, encontrei-me com L'interprétation des singes na mão.Que me encheu a mão. A volumosa edição original, porque existe agora uma edição de bolso.
Segundo o autor confessa no início, a ideia de escrever este texto foi-lhe sugerida pelas pesquisas de um homem extraordinário (e célebre no seu tempo, embora hoje, com a aceleração a que estamos sujeitos, pouca gente se recordará dele), o doutor Serge Voronoff, famoso por ter sido um pioneiro dos enxertos, nomeadamente dos enxertos de órgãos de macacos em homens, em especial dos testículos, para atenuar a diminuição da virilidade que o avanço na idade fatalmente provoca, embora nem sempre. Mas estando hoje a virilidade um pouco decadente, mesmo nos jovens, como facilmente se constata (uma das consequências da sociedade de consumo e dos malefícios de uma certa democracia), não admira que Voronoff seja ignorado.
A partir daí, Braudeau desenvolve um interessantíssimo romance, certamente desigual, mas, talvez por isso, não menos apaixonante. Narrado por Aliocha, pseudónimo russo de um jornalista francês encarregado de averiguar o desaparecimento de homens jovens, especialmente magrebinos, em Meudon (uma alusão a Céline?), onde o professor Sarastre (uma piscadela à Flauta Mágica, de Mozart?) possui uma clínica de operações estéticas e transplantes, frequentada pela nata da sociedade francesa e estrangeira, o jornalista assiste à perseguição e morte num bosque próximo de um rapaz marroquino, Saïd, cujo rosto irá substituir a cara desfeita de uma figura sinistra (Bayard G.), membro de uma influente seita esotérica e também financeira, uma daquelas organizações que supostamente controlam o mundo.
Decorrem em Meudon 500 páginas do livro, porventura as mais conseguidas. As outras 150 passam-se na Tailândia, também muito interessantes, mas por motivos diversos. As restantes, na Austrália.
O autor cruza com êxito diversas histórias, que são todavia uma e a mesma história, na complexidade e ambiguidade das suas relações. Há uma investigação policial sobre o desaparecimento dos magrebinos, que não chega a resultados concretos (os árabes, especialmente os não-documentados, desaparecem em França com facilidade, por razões várias); o professor encerra a clínica e foge para a Tailândia, após o transplante da cara de Saïd; o jovem e deslumbrante Damien, de 18 anos, que não sabe que é filho ilegítimo do professor, e a quem este terá inoculado inadvertidamente uma substância simiesca, desenvolve tendências homossexuais e passa á prática com um colega; a "filha", a igualmente deslumbrante e jovem Hermione (que afinal não é filha do professor mas de um seu colega) mantém indiferentemente relações com raparigas e rapazes e, até uma vez, com o suposto pai; uma prima de meia-idade de Sarastre, mas ainda muito tentadora, Laetitia, serve de ponte, e vai para a cama, com todas estas personagens, menos Damien.
Na Tailândia, para onde o sinistro Bayard, com um novo rosto, obriga o professor a mudar-se, seguem-no Hermione, e também, às escondidas Aliocha e Damien, que acabam por não resistir às tentações dos bares locais, onde se encomendam os rapazes pelos números que ostentam no palco. Damien não hesita obviamente em deitar-se com muitos e variados, e o próprio Aliocha, supostamente heterossexual, acaba por não resistir às tentações dos jovens com a pele cor de chá. Sempre com a maioridade verificada, para evitar as contrariedades das associações que zelam em todo o mundo pelos bons costumes dos menores de ambos os sexos, mas particularmente pelos dos rapazes. Que isto de menores tem mais a ver com o bilhete de identidade do que com a idade mental da pessoa.
Os desígnios da seita a que Bayard pertence, o Rayon Vert, vão agora no sentido de que Sarastre consiga aprisionar as almas dos pacientes que lhe são enviados (e mortos para o efeito) e conservá-las para aplicação futura (uma espécie do enxerto de almas), visto o professor ter em tempos começado a interessar-se pelo assunto. Mas este, perante a impossibilidade, suposta, do propósito, acaba por suicidar-se, frustrando as intenções da suprema cúpula da associação secreta.
Finalmente na Austrália, Damien e Hermione reencontram-se e resolvem, após se terem, finalmente apaixonado, dedicar-se às culturas aborígenes. Aliocha regressa a França. E Bayard morre, devido a uma deficiência do enxerto do rosto, a menos que tenho vindo a ocupar o lugar de outra pessoa.
A intriga do romance é perfeita, embora Braudeau não resolva as suas personagens, ou porque não quis, ou porque não encontrou a conveniente solução a dar-lhes, o que nos suscita alguma frustração. Mas o livro lê-se, do princípio ao fim (ou quase) com inegável prazer. E está escrito com indesmentível bom gosto, coisa de que nem todos os autores se podem gabar.
Também o título L'interprétation des singes nos conduz a "l'interprétation des songes", ou l'interprétation des rêves", convocando, e muito bem, Freud para este "pesadelo", que é de alguma maneira o "Sonho" que parece conduzir toda a vida de Damien, de quem ficamos sem saber se foi ou não inoculado pelas mãos do pai com algum vírus simiesco que pudesse suscitar a homossexualidade, como Sarastre receava, ou se tudo não passou de uma dúvida no cérebro afinal atormentado e ambicioso do professor, não obstante a convicção do rapaz de possuir um "dom" cuja origem ignorava ou fingia ignorar.
* * *
Uma das mais-valias da obra tem a ver com as considerações que Michel Braudeau faz, en passant, sobre muitos aspectos da sociedade contemporânea. A propósito do presente endeusamento da juventude, cuja pureza os zeladores públicos ou privados entendem dever ser preservada ad aeternum, mesmo contra a vontade dos interessados, de todos os males ou pseudo-males deste mundo, na mesma altura em que os velhos, agora ditos idosos ou da terceira idade (um eufemismo) são despejados em lares, quando não escorraçados para a valeta, o autor escreve:
«Nous vivons une époque de jeunisme superlatif, totalitaire et maniaque, voire maniaco-dépressif. Le jeune seul compte, seul le jeune est beau, désirable. Le jeune achète beaucoup de choses conçues pour les jeunes, par d'autres jeunes ou de vieux malins, le jeune a raison, il a l'innocence ou l'intuition, il faut écouter le jeune en toutes circonstances, c'est lui le thermomètre, le baromètre, l'indicateur de tendance, le futurologue, On ne peut pas avoir raison contre les jeunes. Faites un sondage démocratique. Si les résultats vous contrarient, vérifiez la proportion de jeundes qui a été consultée. Accordez-lui au besoin une double voix. On ne peut pas aller contre la jeunesse, ils ont l'oeil plus frais, ils sentent mieux l'avenir avec leurs narines non souillées par le tabac, les excès, ils paieront nos retraites et nous enterreront le moment venu. Donc le vote des jeunes est le plus digne d'être écouté et les vieux n'ont qu'à se taire, depuis le temps qu'ils ont menti, changés d'avis, vu le nombre de fois où ils se sont trompés dans l'histoire des cents dernières années, un peu de décence, ils ne devraient pas trop la ramener.
«Le jeune est sur toutes les affiches, promeut tout et n'importe quoi. À part les apareils auditifs pour les sourds et les couches pour les prostatiques, on ne voit pas ce qu'un vieux pourrait faire vendre. Même un modèle de chaise roulante sera illustré par un jeune. Un paraplégique jeune, peut être beau. Alors, les voitures, les vêtements, les sous-vêtements, les articles de sport, les boissons gazeuses, n'en parlons pas. Les vieux n'ont qu'à suivre, boire des choses pétillantes et sucrées, s'habiller en fluo. Et, d'ailleurs, ils le font. Certains chaussent même des rollers et se lancent comme de pauvres pantins sans ficelles ni haubans, roulent de façon très jeune vers leur suicide programmé. Mais en même temps, et c'est bien ce qui rend les vieux ou les non-jeunes malades de frustration, presque schizophrènes, ces jeunes admirables et partout célébrés comme des références et des divinités, il ne faut pas s'y frotter. Past avant tel ou tel âge, selon les pays, les législations, les rapports de parenté. Sinon c'est un crime de pervers. Les couples divorcés aux États-Unis, nation toujours en pointe, s'orientent volontiers vers ce genre d'arguments: il a trop savonné notre petite fille dans la baignoire, elle s'occupe trop de son zizi, etc., pour obtenir la garde au profit du parent vertueux. Si bien qu'on ose plus passer la main dans les cheveux d'un enfant sans penser aux dommages et intérêts, à la psychanalyse qu'il faudra payer; qu'on osera bientôt plus lui parler.
«Parce que le jeune est si intact, si vierge, si fragile, que tout geste déplacé le meurtrit à jamais. On se demande comment il fera pour cesser d'être jeune puisq'un jour les années le chasseront de cet enclos, le feront tomber du piédestal dans la foule des anciens jeunes, Comment franchira-t-il la frontière, l'apprentissage ne sera-t-il trop rapide et cruel? On s'en moque, puisqu'il ne sera plus jeune, il sera fort, d'un jour à l'autre, sans jamais avoir appris. Inutile de dire que cette vogue moralisante me paraît être une invention démoniaque du marché mondiale de la consommation et des fanatiques chrétiens associés, lesquels ont fort à faire sur le sujet avec leur propre clergé. Le résultat est qu'on ne sait plus penser aux âges de la vie autrement qu'en termes de souillure et de protection. Obsession de la tache bien normale dans une civilisation de la lessive et du blanchissement. Cela ne me pourrit pas l'existence comme à d'autres, parce que j'ai des goûts très élastiques, mais je considère cette vénération mutilante du jeune comme un moment de grand désarroi social, aussi dangereux et invalidant qu'une phobie peut l'être pour un individu. Et la paresse seule m'empêche de me lancer dans une croisade pour la protection des adultes, sans cesse ridiculisés pour leur bedaine, leur calvitie, leurs trous de mémoire, et harcelés sexuellement par des hordes de jeunes qui s'exhibent impunément en tous lieux et les provoquent à la moindre occasion. J'y viendrai peut-être.» (páginas 227, 228 e 229)
Ou, mais adiante, em outro registo:
«C'est quand tout conspire à la catastrophe, quand se manifestent les signes annonciateurs du pire, que les nuages s'amoncellent pour un grand orage, qu'il me semble approcher le mieux du bonheur. Le temps est compté, précieux. On goûte pleinement ce que l'on va perdre. Les gens et les choses trouvent leur juste place, enfin. C'est gai, cela coûte cher, il faut le boire vite, comme le champagne. Je n'aime pas le champagne, ni les occasions où on en sert, à midi une coupe me casse la journée
, le soir une bouteille m'énerve. Mais les moments ephémères qui précèdent la crise, et la crise elle-même, quand on s'en tire sans trop de dommages, c'est la vie paroxystique, exquise.
«Mes parenst m'ont souvent parlé de la guerre, la Deuxième, de l'humiliation de la défaite, des Allemands, des hivers sans chauffage, des cartes de rationnement, des privations, du marché noir, de toutes ces années où plus rien ne tenait debout. Ils ne m'ont jamais dit qu'ils s'étaient ennuyés. La plus jeune de mes soeurs, à trois ans, dormait comme un loir pendant les bombardements. Moi, je n'était pas né, je devrais me taire. Mais il me semble que la guerre dissipe absolument l'ennui, c'est un de ses moteurs secrets. L'ennui tue les nations. Personne n'était dépressif pendant la guerre, on n'y pensait pas. Même les fous l'étaient moins, la folie générale les remettait à niveau. Les fous communs, libres, j'entends, pas ceux des asiles psychiatriques que l'on exterminait. Des millions d'individus, me dira-t-on, sont morts sans s'ennuyer, dans une innommable atrocité. Honte éternelle à qui l'oublierait.
«Et les autres qui, dans le même temps de l'Histoire, survivent, vivent intensément des années qui en valent dix. Certains chantent, dansent, s'enrichissent. C'est grotesque, inexprimable, c'est l'homme. Je ne suis pas quelqu'un de cynique, en aucune façon. Je n'ai pas d'ironie sur le sujet. C'est la puissance de l'ennui qui m'interroge, cette passion aussi estrême et mortelle que la guerre. Est-ce que les animaux s'ennuient? Jamais, pour autant qu'on sache. Ils se reposent. Ils sont. Celui qui s'ennuie n'est pas, ne conjugue pas le verbe être. Les animaux enfermés non plus, sans doute. Ni les animaux domestiques. Plus ils sont proches de l'homme, plus ils sont susceptibles de s'ennuyer, les chiens plus que les chats. L'ennui, comme on dit: la mort dans l'âme.» (páginas 400 e 401)
Estamos na presença de um livro grande e de um grande livro. Onde, a propósito do enredo, se tecem considerações as mais pertinentes sobre o mundo de hoje, as suas contradições, as suas loucuras. Vivemos numa sociedade que se pretende normal mas que é a mais alienada (V. Hartmut Rosa) de sempre. Uma sociedade em que o espiritual cedeu o lugar ao material, onde desapareceu a privacidade, onde se perdeu a esperança, onde os nobres desígnios do futuro foram substituídos pelo vil comércio do quotidiano. Não querendo ser pessimista, julgo que se poderia colocar, à frente de todos os recém-nascidos, o dístico imaginado por Dante, na Divina Commedia, às portas do Inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate".
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