Fausto e Mefistófeles, por Delacroix (Colecção Wallace, Londres) |
O que tem a ver o velho professor Fausto (um dos mitos maiores da cultura ocidental, pela primeira vez consagrado por Marlowe em peça de teatro), Goethe, que o imortalizou em poema dramático, e a Zona Euro?
Num interessante e oportuno artigo sobre a crise da zona euro, em "The Irish Times", Derek Scally dá uma resposta:
O pacto da Alemanha com o demónio
Na conhecida tragédia de Goethe, "Fausto", este autor alemão expressa a opinião de que o papel-moeda é uma extensão da alquimia por outros meios. Esse ponto de vista é claramente evidente na posição atual da Alemanha relativamente à crise da zona euro, defende o correspondente do jornal "The Irish Times" em Berlim.
Para quem tentar compreender a atitude alemã em relação ao
dinheiro e à dívida, na crise da zona euro, todos os caminhos vão dar a
Frankfurt.
A capital financeira da Alemanha abriga não apenas dois bancos centrais, o Bundesbank e o Banco Central Europeu, mas também um edifício barroco amarelo, por trás da torre do BCE. Foi ali que, em 1749, nasceu o génio literário da Alemanha, Johann Wolfgang Goethe.
Agora um museu, a Goethe Haus tem em exibição uma exposição fascinante, Goethe e o Dinheiro (Goethe und das Geld), que explora o modo como as atitudes da sociedade influenciaram a escrita de Goethe, que, por seu turno, modelou a atitude alemã perante o dinheiro.
Goethe nasceu em berço de ouro, graças ao próspero negócio da família e a alguns casamentos vantajosos. Embora mantivesse relações sociais com várias famílias de banqueiros –Goethe quase casou com uma mulher de uma delas – as perdas sofridas por essas instituições depois das guerras napoleónicas deixaram no escritor uma desconfiança nos bancos que durou a vida inteira. .
Tornou-se mais rigoroso quando, depois de 1782, foi ministro das Finanças do ducado de Saxónia-Weimar, onde hoje se situa o Estado da Turíngia. Essa experiência modelou o seu pensamento e contribuiu para a criação da sua obra-prima literária, Fausto, de leitura obrigatória em todas as escolas alemãs, que se centra no célebre "pacto de Fausto" do erudito homónimo com o demónio Mefistófeles.
O demónio promete fazer tudo o que Fausto quiser na Terra, mas, se Fausto alguma vez desejar que um determinado momento dure para sempre, Mefistófeles fica com a sua alma. A parte II de Fausto, publicada postumamente, tem início na corte falida de um imperador hedonista. O tesoureiro real informa que os "os cofres continuam vazios", tal como as adegas, devido às festas frequentes.
O persuasivo Mefistófeles aparece com a proposta de transformar papel em dinheiro. O imperador endividado fica curioso: "Estou cheio do eterno Como e Quando / Falta dinheiro: pois bem, arranje-o." As notas assinadas pelo imperador fazem disparar o consumo e, assim, "metade das gentes só querem comer bem / a outra metade só quer ostentar novos trajes". Só depois de Mefistófeles e o seu parceiro Fausto desaparecerem alguém repara que o valor das notas não corresponde a qualquer equivalente real –ouro num cofre, por exemplo –e, sim, à promessa de ouro que ainda é preciso extrair da mina.
Os paralelos não passaram despercebidos aos leitores contemporâneos de Goethe: entre a história de Fausto e o capital necessário para impulsionar a revolução industrial. As suas advertências voltam a ser relevantes para as inúmeras figuras públicas alemãs que se aproveitam de Fausto para formular as suas preocupações relativamente à crise da Zona Euro.
O BCE argumenta que não é disso que se trata e as diferenças de pontos de vista fizeram ressurgir a ambivalência cultural em relação ao dinheiro e a dívidas, na Alemanha. Afinal, neste país, a palavra Schuld significa tanto dívida monetária como culpa moral. As intervenções do BCE no mercado de obrigações foram criticadas pelos mesmos economistas moralistas que atacaram os países endividados da zona euro, chamando-lhes Schuldensünder, ou “pecadores da dívida”.
Há, portanto, uma ligação entre atitudes de hoje e o Fausto de Goethe, que o teórico literário alemão Werner Hamacher considera como uma crítica da “estética do crédito e economia da persuasão”.
Ottmar Issing, antigo membro da Comissão Executiva do BCE, sugere que os alemães não têm dúvidas quanto ao dinheiro em si, mas são pessimistas quanto a este ser ou não utilizado de forma sensata. Num texto para o catálogo da Goethe e o Dinheiro, intitulado “Inflação –a obra do diabo?”, Issing defende que “a escolha entre bênção e maldição” oferecida pelo papel-moeda “está nas mãos da humanidade”. O antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, concorda. Noutro texto, aplaude o debate de Goethe ao longo de toda a sua vida sobre o caráter dual do papel-moeda, que “produz o melhor e o pior na esfera económica”.
Os receios de Goethe ressurgiram no ponto de vista alemão predominante de que a crise da zona euro é o resultado destrutivo de empréstimos descontrolados e imprudentes, contraídos por sociedades que se recusam a aceitar os limites naturais das suas finanças. O colapso económico é, por conseguinte, um fio condutor que perpassa pelo trauma nacional da Alemanha e pelo seu drama nacional.
Fausto e Mefistófeles estão escondidos, à espreita da crise da zona euro, colorindo as exigências de Berlim de disciplina orçamental pan-europeia e lançando o debate, na Alemanha, sobre os limites do crescimento económico.
“Goethe viu que, quando utilizado adequadamente, o dinheiro traz consigo oportunidades positivas, como a ascensão da sua própria família”, disse Vera Hierholzer, uma das curadoras da mostra Goethe e o dinheiro. “Ao mesmo tempo, como muitos outros da sua classe, Goethe tinha medo das consequências do excesso e da exorbitância, de se querer sempre mais. É um ponto de vista muito alemão, mesmo hoje, ter em conta os limites e tentar controlar as coisas dentro desses limites.”
O debate sobre o autocontrolo monetário tem relevância para além da Alemanha de Goethe, em especial entre os países em crise, impacientes por se libertarem do jugo da troika e "regressarem aos mercados".
Curiosamente, alguns dos últimos leilões de dívida soberana da Irlanda foram presididos pelo defunto Brian Lenihan, no enorme Frankfurter Hof hotel, localizado a meio caminho entre a torre do BCE e a Goethe Haus.
Depois de recuperar a soberania económica, cabe à Irlanda decidir qual o passo seguinte. Na direção da Goethe Haus, sem pôr em perigo os limites dos seus meios financeiros, ou de volta ao hotel de cinco estrelas Frankfurter Hof, para ser a anfitriã das dispendiosas reuniões ao pequeno-almoço com bancos dispostos a emprestar-nos mais dinheiro de Mefistófeles.
A capital financeira da Alemanha abriga não apenas dois bancos centrais, o Bundesbank e o Banco Central Europeu, mas também um edifício barroco amarelo, por trás da torre do BCE. Foi ali que, em 1749, nasceu o génio literário da Alemanha, Johann Wolfgang Goethe.
Agora um museu, a Goethe Haus tem em exibição uma exposição fascinante, Goethe e o Dinheiro (Goethe und das Geld), que explora o modo como as atitudes da sociedade influenciaram a escrita de Goethe, que, por seu turno, modelou a atitude alemã perante o dinheiro.
Goethe nasceu em berço de ouro, graças ao próspero negócio da família e a alguns casamentos vantajosos. Embora mantivesse relações sociais com várias famílias de banqueiros –Goethe quase casou com uma mulher de uma delas – as perdas sofridas por essas instituições depois das guerras napoleónicas deixaram no escritor uma desconfiança nos bancos que durou a vida inteira. .
Trabalho sequioso
As contas da família do escritor mostram que este estava longe de corresponder ao estereótipo do alemão poupado, gastando por vezes 15% dos seus rendimentos anuais em vinho. Os resgates da sua mãe e dos seus empregadores foram recorrentes. Como salientam os curadores da exposição, Goethe argumentava que o seu comportamento de gastador era “essencial para o desenvolvimento da sua personalidade”.Tornou-se mais rigoroso quando, depois de 1782, foi ministro das Finanças do ducado de Saxónia-Weimar, onde hoje se situa o Estado da Turíngia. Essa experiência modelou o seu pensamento e contribuiu para a criação da sua obra-prima literária, Fausto, de leitura obrigatória em todas as escolas alemãs, que se centra no célebre "pacto de Fausto" do erudito homónimo com o demónio Mefistófeles.
O demónio promete fazer tudo o que Fausto quiser na Terra, mas, se Fausto alguma vez desejar que um determinado momento dure para sempre, Mefistófeles fica com a sua alma. A parte II de Fausto, publicada postumamente, tem início na corte falida de um imperador hedonista. O tesoureiro real informa que os "os cofres continuam vazios", tal como as adegas, devido às festas frequentes.
O persuasivo Mefistófeles aparece com a proposta de transformar papel em dinheiro. O imperador endividado fica curioso: "Estou cheio do eterno Como e Quando / Falta dinheiro: pois bem, arranje-o." As notas assinadas pelo imperador fazem disparar o consumo e, assim, "metade das gentes só querem comer bem / a outra metade só quer ostentar novos trajes". Só depois de Mefistófeles e o seu parceiro Fausto desaparecerem alguém repara que o valor das notas não corresponde a qualquer equivalente real –ouro num cofre, por exemplo –e, sim, à promessa de ouro que ainda é preciso extrair da mina.
Os paralelos não passaram despercebidos aos leitores contemporâneos de Goethe: entre a história de Fausto e o capital necessário para impulsionar a revolução industrial. As suas advertências voltam a ser relevantes para as inúmeras figuras públicas alemãs que se aproveitam de Fausto para formular as suas preocupações relativamente à crise da Zona Euro.
O pacto faustiano do BCE
O papel moderno do tesoureiro do imperador em Fausto, que alerta para o sistema do papel-moeda, foi assumido pelo presidente do Bundesbank, Jens Weidmann. “Se um banco central puder cunhar dinheiro sem limites, a partir do nada, como pode esse banco garantir que o dinheiro é suficientemente reduzido para manter o seu valor?”, perguntou Weidmann numa reunião, em setembro. “A tentação existe sem dúvida e boa parte da história monetária cedeu à tentação.” Weidmann adverte que o programa do BCE de compra ilimitada de obrigações, para estabilizar a zona euro, é potencialmente um pacto de Fausto, se oferecer aos políticos uma alternativa de financiamento mais agradável que as dolorosas reformas económicas.O BCE argumenta que não é disso que se trata e as diferenças de pontos de vista fizeram ressurgir a ambivalência cultural em relação ao dinheiro e a dívidas, na Alemanha. Afinal, neste país, a palavra Schuld significa tanto dívida monetária como culpa moral. As intervenções do BCE no mercado de obrigações foram criticadas pelos mesmos economistas moralistas que atacaram os países endividados da zona euro, chamando-lhes Schuldensünder, ou “pecadores da dívida”.
Há, portanto, uma ligação entre atitudes de hoje e o Fausto de Goethe, que o teórico literário alemão Werner Hamacher considera como uma crítica da “estética do crédito e economia da persuasão”.
Ottmar Issing, antigo membro da Comissão Executiva do BCE, sugere que os alemães não têm dúvidas quanto ao dinheiro em si, mas são pessimistas quanto a este ser ou não utilizado de forma sensata. Num texto para o catálogo da Goethe e o Dinheiro, intitulado “Inflação –a obra do diabo?”, Issing defende que “a escolha entre bênção e maldição” oferecida pelo papel-moeda “está nas mãos da humanidade”. O antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, concorda. Noutro texto, aplaude o debate de Goethe ao longo de toda a sua vida sobre o caráter dual do papel-moeda, que “produz o melhor e o pior na esfera económica”.
Viver dentro das possibilidades
Para o professor Hans Christoph Binswanger, autor de Dinheiro e Magia – Uma crítica da economia moderna à luz de Fausto, Goethe encarou o papel-moeda como “a extensão da alquimia por outros meios”. Para transformar papel-moeda em riqueza real, defende o professor Binswanger, Goethe receou que tudo viesse a ser “arrastado para o processo de combustão lenta da produção mundial”. “A aparentemente mágica alquimia moderna suporta um preço profano, transforma o mundo num vazio”, acrescenta.Os receios de Goethe ressurgiram no ponto de vista alemão predominante de que a crise da zona euro é o resultado destrutivo de empréstimos descontrolados e imprudentes, contraídos por sociedades que se recusam a aceitar os limites naturais das suas finanças. O colapso económico é, por conseguinte, um fio condutor que perpassa pelo trauma nacional da Alemanha e pelo seu drama nacional.
Fausto e Mefistófeles estão escondidos, à espreita da crise da zona euro, colorindo as exigências de Berlim de disciplina orçamental pan-europeia e lançando o debate, na Alemanha, sobre os limites do crescimento económico.
“Goethe viu que, quando utilizado adequadamente, o dinheiro traz consigo oportunidades positivas, como a ascensão da sua própria família”, disse Vera Hierholzer, uma das curadoras da mostra Goethe e o dinheiro. “Ao mesmo tempo, como muitos outros da sua classe, Goethe tinha medo das consequências do excesso e da exorbitância, de se querer sempre mais. É um ponto de vista muito alemão, mesmo hoje, ter em conta os limites e tentar controlar as coisas dentro desses limites.”
O debate sobre o autocontrolo monetário tem relevância para além da Alemanha de Goethe, em especial entre os países em crise, impacientes por se libertarem do jugo da troika e "regressarem aos mercados".
Curiosamente, alguns dos últimos leilões de dívida soberana da Irlanda foram presididos pelo defunto Brian Lenihan, no enorme Frankfurter Hof hotel, localizado a meio caminho entre a torre do BCE e a Goethe Haus.
Depois de recuperar a soberania económica, cabe à Irlanda decidir qual o passo seguinte. Na direção da Goethe Haus, sem pôr em perigo os limites dos seus meios financeiros, ou de volta ao hotel de cinco estrelas Frankfurter Hof, para ser a anfitriã das dispendiosas reuniões ao pequeno-almoço com bancos dispostos a emprestar-nos mais dinheiro de Mefistófeles.
1 comentário:
Muito curioso e vem a propósito. Nunca o Demónio pensou estar associado à zona euro, mas lá que está está.
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