domingo, 2 de dezembro de 2012

REFLEXÕES DE LOUREIRO DOS SANTOS



O general Loureiro dos Santos concedeu ao jornal "i" uma importante entrevista, onde salienta a vantagem do regresso do serviço militar obrigatório (extinto devido, entre outros motivos,  à pressão insana das juventudes partidárias),  considera um erro a adesão ao euro e admite a possibilidade de voltarem a existir ditaduras na Europa, hoje um local de ressentimentos.

Pela vastidão das matérias abordadas, pelas considerações tecidas, e tendo em conta o nível intelectual do entrevistado, transcrevemos as suas declarações:

«O general Loureiro dos Santos foi quase tudo em termos de hierarquia militar. Esteve no governo. Hoje é conhecido de todos os portugueses como um dos maiores especialistas em geoestratégia. Em entrevista ao i, admite a possibilidade do regresso das ditaduras à Europa e que a crise actual possa levar a uma reconfiguração geoestratégia. Está contra a ideia da “smart defence” – defesa em conjunto com Espanha.

Há possibilidade de fazer cortes nas Forças Armadas, de “refundar” o Estado neste capítulo?

Existe um contexto estratégico que tende a agravar-se. Na minha leitura, nós provavelmente teremos de aumentar as nossas capacidades militares. Quando digo nós, falo em todos os países europeus. Face a estas circunstâncias e à situação de crise em que vivemos, o Estado tem de ver quais são os riscos que corre. Para diminuir os riscos, ter maior capacidade de intervenção e tirar partido em termos de política externa, deverá fazer o esforço de aumentar as suas capacidades. Se quiser manter os riscos actuais, que são médios, julgo que no mínimo deverá preservar a sua capacidade operacional. Isso não significa que não haja poupanças nos custos das Forças Armadas. Pode haver, em termos de racionalização das estruturas, e está a ser feita alguma coisa, com a colaboração dos chefes militares, na fusão de infra--estruturas. O que já aconteceu com os institutos do ensino superior está a acontecer com o hospital e noutras áreas. Pode melhorar-se a eficiência das Forças Armadas se se modernizar o equipamento…

Mas isso obriga a novas aquisições…

A modernização do equipamento obriga a gastar dinheiro para as aquisições, só que pode diminuir gastos com a redução do número de efectivos. A modernização do equipamento, contrariamente àquilo que se poderá pensar, a prazo traz resultados. Eu tenho avançado com propostas para a obtenção de uma redução estrutural dos recursos humanos nas Forças Armadas. São reformas que não se fazem instantaneamente, exigem um ano e meio a dois anos, mas podem ser bastante compensadoras. Ou fazemos as reformas necessárias ou regressamos ao serviço militar obrigatório…

Acha que há condições políticas para isso?

Se as pessoas se queixam, não vejo porque não, porque é que não há-de ser possível. Em termos económico e financeiros respondia a uma necessidade que é premente. Por outro lado, teria efeitos claramente positivos. Recordo que antigamente os jovens eram influenciados em termos de valores na família, na escola e no serviço militar obrigatório. Era no serviço militar obrigatório que se consolidavam valores como a solidariedade, a necessidade de cumprir a missão, de persistir nos objectivos, o espírito de sacrifício. Tudo isso se aprendia com o serviço militar obrigatório. A família cada vez tem mais dificuldade em fazer parte deste conjunto formativo, pelas características da sociedade moderna. A escola também perdeu um pouco isso. Havia vantagem na existência desse exercício, desse treino.

Mas haveria uma maioria disponível para aprovar esse regresso?

Isso é uma questão de natureza estritamente política. No caso de ser considerado que politicamente isso não é viável, há outra solução, que é a solução adoptada pelos países anglo-saxónicos, nos Estados Unidos e no Reino Unido, que é a adopção de reservistas. Nós podemos aumentar o número de formandos, através de alguns estímulos – por exemplo, nos Estados Unidos, o estímulo que os atrai é o pagamento da licenciatura – e ficam com certos compromissos. A qualquer momento podem ser chamados. Na guerra do Iraque houve várias brigadas de reservistas. Essas pessoas fazem as suas vidas normais, periodicamente vêm refrescar o seu treino, sabem a que unidades pertencem. Quando é necessário, juntam-se ao batalhão. Isto permite que um país não precise de ter permanentemente ao serviço 20 mil, mas possa ter por exemplo 10 mil. Os outros 10 mil estão naquilo a que nós chamamos “em ordem de batalha”, estão previstos, o material está devidamente aquartelado e a qualquer momento são chamados. O sistema de forças permanente é um, o sistema de forças necessário é outro. Isto é um sistema que nós já tivemos – eu ainda sou desse tempo, faziam-se anualmente umas grandes manobras, que eram as manobras de Santa Margarida – em que nós conseguíamos pôr a treinar uma divisão completa, que era a nossa comparticipação na NATO, que andava à volta de 30 mil homens. Do Exército, claro. Nos outros ramos não se aplica tanto porque o equipamento é muito caro. Isto é uma maneira de resolver a questão, mas pôr isso em vigor demora à volta de dois anos. Era positivo e tinha outras vantagens: alargava o contacto, especialmente ao nível de oficiais e sargentos, com as Forças Armadas. Portanto, permitia que mais cidadãos se apercebessem da missão das Forças Armadas. Há quem defenda nos Estados Unidos que as guerras injustas de Bush – que estão um pouco na origem da crise que nós agora vivemos – não teriam acontecido se o serviço militar fosse obrigatório. A guerra era claramente injusta, era uma guerra que não levava a nada, além de ser injusta era uma guerra sem objectivo, como aliás denunciei. E há quem diga que se existisse serviço militar obrigatório não se chegaria aí. Há quem defenda que é preciso voltar ao serviço militar obrigatório por uma questão de democracia. Isto é, o governo fazer aquilo que o povo acha que deve ser feito.

Como é que vê a situação aqui ao lado em Espanha? Haverá risco de implosão do país?

Acho que não há. Mas há coisas que são patentes: a vontade dos catalães de serem independentes não vai desaparecer. Mais de metade dos deputados do parlamento catalão são soberanistas, isto é incontroverso. E é uma ambição de séculos. Como sabe, os catalães invejam-nos muito! [Risos.] Aquilo que eu penso é que é inevitável que essa vontade se venha a consumar.

Na criação de um Estado independente?

Consumar-se a pouco e pouco, alargando a autonomia, as suas capacidades próprias… A reivindicação começou por isso, por alterar o pacto fiscal. Mas eu acho que é praticamente inevitável que isso vá acontecer, a não ser que isto volte para trás, que voltemos a ter regimes que não sejam democráticos.

Acha que existe esse risco?

Acho que na Europa há esse risco.

Regressarmos a ditaduras?

Acho que pode acontecer. Se as situações de dificuldade que nós estamos a atravessar se mantiverem, e se se acentuarem as percepções que já estão criadas entre vários povos europeus… A geopolítica é uma questão que tem a ver com pessoas, com sentimentos, com emoções. A preocupação deve ser racionalizar tudo… entre as classificações que Clausewitz faz da guerra há uma que é: “A guerra é uma surpreendente trindade: por um lado raciocínio puro, e isso pertence ao governo, a racionalidade. Por outro lado é quase tudo um jogo de incerteza e de acaso. E, por outro lado, é paixão e ódio. Isto é, cerca de 60% daquilo que conduz a guerra não tem a ver com o racional. Ou é incerteza e acaso, ou são sentimentos e emoções. O que está a acontecer neste momento na Europa faz--me pensar que se estão a gerar sentimentos muito fortes que nos podem levar a situações muito complicadas. E nós já temos indícios disso. Os populismos estão a crescer no Norte da Europa. O que é curioso é que a mesma situação está a originar sentimentos – parecidos, embora de sinal contrário – nos países do Norte e nos países do Sul. Isto é, não são só os povos do Sul que olham para os povos do Norte como os ricos que não os querem ajudar, que os estão a esmifrar. Também os do Norte olham para os do Sul como os indivíduos que estão no dolce far niente a gastar o dinheirinho que eles laboriosamente andam a juntar.

Mas acredita mesmo que esses sentimentos cruzados poderão levar a uma guerra na Europa?

Pode levar a situações de fractura, que eu julgo que já existem. A União Europeia nunca mais voltará a ser aquilo… aliás, nunca foi. As pessoas convenceram-se que poderia haver solidariedade. Não há solidariedade, há só interesse. Aliás, todo esse dinheiro que nos estão a emprestar não é para serem bons, não é para nos ajudar. É porque eles chegaram à conclusão que, se não o fizerem, podem ver o seu interesse nacional afectado. É esta a postura da Alemanha relativamente à Grécia. A Alemanha agora decidiu que a Grécia é indispensável no euro. Para quê? Para os interesses nacionais alemães. Não é porque estejam muito preocupados com os gregos…

Fizeram contas.

Fizeram contas. Não digo que esta situação leve à guerra, mas a história mostra-nos que a Grande Depressão foi assim. Exactamente assim, mas isso não significa que haja uma repetição.

A ascensão do Hitler foi a seguir ao grande desemprego na Alemanha…

Os problemas foram exactamente os mesmos. E foi por isso que no fim da Segunda Guerra Mundial se garantiram empréstimos à Alemanha… Aqueles que nós gostaríamos que nos fizessem agora! Não digo que leve à guerra, mas pode levar a um rearranjo de natureza estratégica na Europa.

Que tipo de rearranjo?

Estas tensões de que falamos estão presentes. O drama é que neste momento os países do Sul fazem tudo o que o Norte lhes exige. Estas situações são terríveis, porque o conjunto das pessoas faz aquilo que não queria fazer, fazem aquilo que são obrigadas a fazer porque não têm alternativa. É caso para se perguntar: e quando os povos do Sul alcançarem uma situação em que possam sair dessa ligação com os do Norte o que é que irão fazer? Possivelmente quererão ver-se livres deles o mais depressa possível, porque vão ter a lembrança da forma como foram tratados. Ao mesmo tempo que isto está a surgir, há sintomas da aproximação entre Berlim e Moscovo. Várias vezes a União Europeia tentou definir uma estratégia energética e não conseguiu por oposição da Alemanha, que tem um entendimento energético com a Rússia e tem o seu problema resolvido. Berlim precisa de energia e de mão--de-obra – a Alemanha está a importar mão-de-obra europeia e muçulmana, o que cria alguns problemas internos. A Rússia tem mão-de-obra em abundância. E a Rússia precisa de outra coisa que a Alemanha está em condições de fornecer e deseja fornecer – tecnologia. O sistema industrial russo está completamente obsoleto e poderá haver aí um casamento de conveniência de natureza económica que pode ter repercussões estratégicas. E não é a primeira vez que isto sucede: passou-se na altura da Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial. Quando as pessoas se começam a esquecer desse país europeu que é a Rússia podem ser surpreendidas. Outro problema é a separação entre os países do euro e os países que não são do euro, que é outra fractura que se está a criar, da qual emerge com grande nitidez a questão do Reino Unido.

Onde já se discute a saída da União Europeia…

O Reino Unido sair do bloco europeu é altamente preocupante em termos geopolíticos. E não é só o Reino Unido. Há muitos países do Leste, com a Polónia em primeiro lugar, que estão muito preocupados com a situação. E veja-se o confronto que está agora a passar-se por causa do orçamento da União Europeia. E curiosamente esse confronto começou com a disponibilidade da Alemanha de manter todos os benefícios da França com a política agrícola comum. A Alemanha está preocupada com o posicionamento geoestratégico da própria França e foi uma maneira de, digamos, a agarrar. A Polónia, com outros países da sua região, constitui um grupo interessante: têm medo de Berlim e têm medo de Moscovo. E, claro, os Estados Unidos já perceberam isso e têm relações muito próximas especialmente com a Polónia.

E acha que o euro não vai acabar?

Não sei. Eu considero que o euro tem sido um espartilho para Portugal. Na altura não tinha conhecimentos económicos suficientes para avaliar a bondade e os malefícios e pareceu-me bem. Mas o euro tornou-se para nós um colete de forças. Temos muito maior dificuldade com o euro do que teríamos sem o euro em ser competitivos. É claro que se conseguirmos vir a ser competitivos nas actuais circunstâncias talvez fiquemos muito melhores. Mas entretanto houve muita gente que ficou pelo caminho. É como aqueles ataques que se fazem na guerra à custa de muitos milhões, que normalmente se procuram evitar. Nós chamamos-lhes os “ataques frontais”. Nos ataques frontais são tantos os mortos que quando se vai contabilizar não se sabe se se ganhou ou se se perdeu. Eu julgo que o euro foi um erro. Agora não lhe sei responder – porque não tenho conhecimentos – se não seria uma catástrofe neste momento sairmos do euro. Temos dívidas em euros e depois não teríamos euros para as pagar. Achei interessante um artigo que li de um professor de Economia que defendia que devíamos utilizar, em termos de jogo estratégico, a ameaça da saída do euro para obter vantagens. Se a chantagem desse resultado, muito bem. E se não desse resultado? Eu gostaria que desse. A única coisa de que eu neste momento já não tenho dúvidas foi de que a adesão ao euro foi um erro. E nós também cometemos muitos erros. Ainda me recordo muito bem de estar a ver televisão e o nosso Presidente da República Jorge Sampaio, por quem tenho consideração, quando lhe perguntaram num país estrangeiro sobre os estádios para o Euro 2004 ter dito “isso é um desígnio nacional”. Eu ia caindo da cadeira a baixo, naquela altura já era contra os estádios.

Senhor general, a Europa está a discutir a possibilidade de os orçamentos dos estados serem fiscalizados por Bruxelas. Isto ainda é um país independente, segundo as regras antigas?

Antigas e modernas! Mas eu acho que os estados até podem aceitar essa ideia, mas sempre sob reserva, para saírem logo que puderem, o que é pior ainda. Tenho muitas dúvidas de que isso vá avante. Não estou a ver a França a sujeitar-se a ser um Estado cujo orçamento vai ser permanentemente vistoriado por Berlim! Não estou a ver! O esqueleto do De Gaulle daria saltos na tumba. Julgo sinceramente que não se vai chegar lá, mas se se chegar é para, logo que possam, deixar de o fazer. O que ainda é pior. Mas também não estou a ver que a Alemanha aceite ter dois ou três senadores num senado onde Portugal tenha o mesmo número de senadores. Quando me falam em federação, não há federação nenhuma. Há um bloco de estados em que o mais poderoso manda, ou dois ou três. Não há aqui qualquer federação. Para garantir a parte da soberania, as principais leis exigem passar numa câmara alta em que todos os estados têm igual número de participantes. Esse caminho não irá até ao fim, penso eu.

Vivemos tempos difíceis neste momento em Portugal. Acha totalmente impossível uma revolta militar?

Acho. A principal reforma que houve nas Forças Armadas foi a reforma das mentalidades. Contrariamente a muitos camaradas meus quando passam à reserva ou à reforma, eu mantenho contactos com os militares no activo, que são excepcionais e muito bem preparados. Nós temos uma elite de oficiais comparável com a dos melhores oficiais da NATO. A esses oficiais não passa pela cabeça que o Exército dispute o poder político. Agora os militares estão insatisfeitos, naturalmente. São atingidos na sua vida por aquilo que também está a atingir os outros cidadãos. Para os militares há alguns aspectos que na prática podem ser piores. Quando um militar está no Afeganistão preocupado em manter a sua vida – porque é mesmo a doer – e também está preocupado com a mulher ter um bom atendimento de saúde pode perder a vida muito mais facilmente. São as mesmas questões que têm os outros cidadãos, só que podem ter efeitos mais acentuados. O problema põe-se também para as polícias – aquela gente que está ali tem precisamente os mesmos problemas que os cidadãos que se estão a manifestar.

Como é que viu a manifestação de 14 de Novembro e a carga policial que se lhe seguiu?


Pelos conhecimentos que tenho, seria difícil fazer de outra maneira.

Mas não haveria possibilidade de neutralizar o grupo que estava a apedrejar a polícia?

Acho que seria muito difícil. Perguntei isso a um oficial envolvido na área criminal, que me disse que era muito difícil. Os indivíduos [o grupo que apedrejou a polícia] estão preparados, sabem como hão-de reagir e desaparecem. Isto é um aborrecimento, porque [a carga policial] depois leva as pessoas que iam a passar na altura. Mas já teve repercussões: basta ver o que se passou ontem [manifestação em frente à Assembleia em protesto contra o Orçamento do Estado]. Não houve nada.

À luz de todas as mudanças em curso, o que pensa das forças conjuntas com Espanha, a “smart defence”?

Bem, a idade tem muitos inconvenientes, mas também tem vantagens e uma é que a gente vai vendo muita coisa. Essa eu já vi com outro nome. Isto mostra sempre fraqueza e incapacidade e normalmente arranjam-se uns nomes a ver se resolve. Não resolve nada, as pessoas já sabem que não vai resolver, mas tem um nome. Smart defence! Defesa esperta, até aqui foi estúpida, e agora passa a ser muito inteligente [risos]. Eu tenho uma posição reticente, muito céptica, relativamente a todas estas coisas. Porque de facto esta colaboração sempre se passou, reuniões com homólogos espanhóis, exercícios conjuntos com Espanha. Interessa-nos ter uma boa relação com Espanha, é bom que exista cooperação com Espanha. Isto é uma coisa. Outra coisa é limitarmos a nossa liberdade de actuação por causa dessas ligações. Vamos supor que chegamos à conclusão que os helicópteros são muito caros e o melhor é servirmo-nos dos da Espanha! É uma hipotética capacidade partilhada. Isto significaria que, se precisássemos de os usar numa situação que não fosse muito conveniente à Espanha, não podíamos. Isso já sucedeu. Quando foi aquela intervenção na Líbia por causa da zona de exclusão aérea, a NATO decidiu intervir mas permitiu que alguns estados não participassem. A Alemanha não participou. Se houvesse alguma capacidade partilhada com a Alemanha e um estado estivesse interessado em participar não podia fazê-lo porque tinha uma capacidade partilhada com a Alemanha. Agora imagine que as nossas viaturas para andarem precisam de ir a Espanha! Isso é que nós devemos evitar».

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