domingo, 7 de maio de 2017

O GRANDE CAGLIOSTRO





Não! Não me refiro ao romance, hoje quase esquecido, de Carlos Malheiro Dias, O Grande Cagliostro, de que existe uma adaptação teatral que desconheço [Cf. João Bigotte Chorão, in Carlos Malheiro Dias na ficção e na história, 1992]. Refiro-me ao livro Cagliostro ou le dernier des alchemistes (The Last Alchemist, Count Cagliostro - Master of Magic in the Age of  Reason, no original), do historiador australiano Iain McCalman, natural da ex-Niassalândia, especialista do século XVIII europeu e professor da Universidade de Sydney.

Nesta obra, publicada em 2003 e traduzida para francês em 2005, o autor revisita a figura de uma das mais controversas personagens do século XVIII, para uns um charlatão, para outros um mágico, curandeiro e arguto manipulador, a quem muitos estudiosos atribuem uma contribuição fundamental para a eclosão da Revolução Francesa.

A sua figura não deixou indiferentes os mais cultivados espíritos modernos, mas foi o romance de Alexandre Dumas, Joseph Balsamo, publicado em 1846/7, primeira parte de uma tetralogia intitulada "Mémoires d'un médicin", que o tornou mundialmente célebre. O cinema não lhe foi indiferente: em 1949, surgiu Black Magic, de Gregory Ratoff, com Orson Welles no protagonista, e em 1979, Joseph Balsamo, de François Rivière, versão mais fiel ao romance, segundo o autor do livro [mas de que não achei rasto, apenas encontrei referência à mini-série televisiva homónima, realizada por Pierre Nivollet, e apresentada em 1973, com interpretação de Jean Marais].

A ideia que se formou na Europa, nos dois últimos séculos, acerca de uma conspiração internacional em que Cagliostro desempenhara um papel fulcral, é hoje devidamente analisada, inclusive por Umberto Eco, n'O Pêndulo de Foucault (1988).

A fonte mais importante para o conhecimento da vida de Cagliostro, publicamente reconhecido como franco-maçon, é o panfleto de monsenhor Giovanni Barbieri, que começou a circular pela Europa e viria a ser publicado em Dublin, em 1792, com o título La vie de Joseph Balsamo, appelé communément comte de Cagliostro etc., depuis sa naissance jusqu'à son emprisonemment au Château Saint-Ange, transcription des actes du procès, publiée à Rome sur ordre de la Chambre. Apostolique.

A obra de Barbieri provocou grande controvérsia entre católicos e maçons e nem mesmo Mozart, também ele franco-maçon, se eximiu de apresentar na sua ópera maçónica A Flauta Mágica (1791), uma personagem identificável a Cagliostro, o Grande Sacerdote Egípcio, Sarastro. 

O famoso poeta e mestre da gravura britânico William Blake, no seu poema profético de 1791, The French Revolution, apresenta Cagliostro como uma das grandes figuras da contra-cultura. Também o pintor Philipp de Loutherbourg elaborou vários estudos para a Loja Maçónica Egípcia do criador do novo rito e o próprio Houdon esculpiu o seu busto.


Cagliostro, por Houdon


Outros artistas dele se ocuparam igualmente, sem chegarem a formular um juízo quanto ao facto do indivíduo simbolizar Deus ou o Diabo. Entre outros exemplos, Schiller, no romance inacabado O Adivinho Fantasma (1789), Edward Bulwer-Lytton, no romance maçónico Zanoni (1842), Dupaty, no bailado Cagliostro ou le Magnétiseur (1851) ou mesmo Johann Strauss II, na opereta Cagliostro in Wien (1875).

O próprio Casanova, que chegou a encontrar-se com o mágico, refere-se-lhe na História da Minha Vida (edições diversas) e em Solilóquios de um Pensador (edição de 1998), onde se interroga sobre o sucesso de Cagliostro. O historiador e filósofo escocês Thomas Carlyle deu conta da sua existência em Count Cagliostro: In Two Flights (1833), estudo depois incluído em Critical and Miscellaneous Essays (1898). E no seu grande livro The French Revolution: A History (1837), julgou apropriado reservar a cena final a Cagliostro, o homem que profetizou a Revoução: «"... toujours les demeures des hommes détruites, les montagnes même pelées et fendues en deux, les vallées noires et mortes. C'est un monde vide! Malheur à ceux qui naîtront alors! Un roi, une reine précipités à terre... Iscariot Égalité précipité à terre, et toi, sinistre de Launay avec ta sinistre Bastille! Des familles, des peuples entiers, cinq millions d'hommes se détruisant mutuellement! Car c'est la fin de la domination de l'imposture (elle est les ténèbres, elle est le grisou, vapeur opaque). C'est la combustion dans un feu inextinguible de tout ce qui tourbillone sur terre." Cette prophétie, disons-nous, n'a-t-elle pas été accomplie, ne s'accomplit-elle pas?»

Transcrevemos da página 304 do livro de McCalman: «La description par Carlyle de Cagliostro comme l'archétype du charlatan en fait en mythe si fascinant que, comme tous les mythes, il s'est détaché de son ancrage historique et a vogué jusqu'à nous. Un critique de la société aussi brillant qu'Umberto Eco s'en est emparé et lui a trouvé un nouveau port d'attache. Pour Eco, Cagliostro a une valeur prophétique dans notre époque postmoderne. Cagliostro, c'est le signe vide, l'individu tellement ordinaire qu'il devient un aimant polarisant tous les fantasmes de gens qui ont perdu le sens des réalités. Aujourd'hui, soutient-il, les aventuriers du type Cagliostro ne vont pas en Italie ou en France - ils partent pour la Californie où ils s'affublent des oripeaux des prophètes, des magiciens et des guérisseurs de notre temps: ils exploitent l'incertitude psychologique et l'absence de repères moraux de nos contemporains. Les Cagliostro d'aujourd'hui proclament une «crise de la raison» et substituent au monde réel une «industrie du faux absolu»: «châteaux enchantés» hyperréalistes, «monastères du salut», cathédrales kitsch, etc. Les chamans modernes qui travaillent à la télé font écho au grand Copte: ils lèvent les yeux au ciel pour évoquer une visitation divine, ils grognent douloureusement quand ils affrontent le diable corps à corps et, pour guérir les gens, ils leur caressent les mains en débitant un flot harmonieux de paroles. C'est à Los Angeles plutôt qu'à Paris ou Rome que l'on peut trouver les descendants de la maçonnerie égyptienne, les gourous de tout genre, les voyants opérant sur Internet, les exorcistes ou nécromanciers, les pseudo-Rose-croix et les Templiers attardés.»

Walter Benjamin tem uma atitude diferente. Para o filósofo alemão, «o papel de Cagliostro enquanto porta-voz da magia fez dele um titã da história da cultura ocidental. Benjamin considera-o como um messias clandestino e um génio da desordem pregando a irracionalidade criadora num mundo repressivo. Ao ver em Doria um precursor do totalitarismo do século XX, Cagliostro aparece-lhe como um precioso grão de areia na máquina das Luzes, como o defensor das origens mágicas reprimidas da ciência - repressão que se acentuará depois da Revolução Francesa. Ele é o último verdadeiro alquimista - é o fantasma do irracional que regressa actualmente a assombrar os fetichistas da razão, à maneira dos espíritos que ele invocava nas suas sessões de vidência.»

Voltando ao livro de Iain McCalman, considerado como romance, o autor traça uma biografia (ficcionada) de Cagliostro, desde os seus  tempos em Palermo, onde nasceu em 1743, no então bairro judaico da Albergheria, com o nome de Giuseppe Balsamo, até à sua prisão em Roma pela Inquisição, em 1791, encerramento no Castelo de Sant'Ângelo, condenação à morte, comutada para prisão perpétua pelo papa, transferido para cela solitária no Castelo de São Leo, e morte em 1795. Durante a sua vida cometeu feitos extraordinários, frequentou dos lugares mais sórdidos às cortes da Europa, de Versalhes a São Petersburgo, viajou por inúmeros países do Velho Continente e até, segundo afirmava, pelo Egipto, Pérsia e Índia, relacionou-se com notáveis figuras do seu tempo, e foi envolvido no famoso caso do "Colar da Rainha", que comprometeu Maria Antonieta e, como se disse acima, terá contribuído para acelerar a eclosão da Revolução Francesa. Casou em Roma com uma beldade, Lorenza Feliciani, conhecida por Serafina, que muito o ajudou nas suas manigâncias e na obtenção de contactos com as personalidades que desejava conhecer. Quando, na juventude,  fugiu da Sicília, por roubo, passou a intitular-se conde de Cagliostro, e assim passou à história.

O livro aborda as diversas facetas desta personagem que, à época, foi conhecida em todo o mundo: o franco-maçon, o necromante, o xaman, o copta, o profeta, o rejuvenescedor e o herético, para concluir que, globalmente, ele se tornou o imortal.

Não cabe evidentemente aqui a descrição da vida e aventuras de Cagliostro, mas os interessados poderão ler com proveito o livro em apreço, ainda que esta tradução contenha alguns erros e imprecisões, nada porém que lhe retire o mérito de dar a conhecer tão extraordinária criatura.

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Também Carlos Malheiro Dias não foi insensível à personagem de Cagliostro. Na sua novela romântica (como ele lhe chama) O Grande Cagliostro (1905), o escritor e historiador coloca o mágico em Lisboa (usando o título de conde de Stephanis), no tempo de D. Maria I, insinuando-se junto do herdeiro do trono D. José, príncipe do Brasil (que haveria de morrer, vítima da varíola, aos 27 anos), e que era um adepto da Maçonaria, dos enciclopedistas e um fervoroso admirador do falecido marquês de Pombal. As suas ideias e a sua juventude, faziam dele um joguete da Corte (fora obrigado aos 15 anos a desposar sua tia materna 15 anos mais velha) e um alvo das suspeições do Intendente-Geral da Polícia Pina Manique, que lhe apreendia na alfândega os livros proibidos encomendados em Paris. Não sendo tomado a sério, considerado como uma criança, existia nele, todavia, o desejo de governar, que Cagliostro pretende aproveitar em proveito próprio, tecendo mais uma das suas proverbiais intrigas e convencendo-o de uma conspiração tendente a eliminá-lo, em que estaria envolvida a Nobreza, a Igreja e os conservadores mais poderosos do Reino. O propósito de Cagliostro seria  o de afastar (ou eliminar) D. Maria I, para que o príncipe do Brasil subisse ao trono com o nome de D. José II, afastasse dos negócios do Reino o poderoso arcebispo de Thessalonica, confessor da rainha e especialmente Pina Manique, o Intendente-Geral da Polícia, que lhe movia uma perseguição sem tréguas e que acabou por conseguir detê-lo e remetê-lo para Roma, apesar dos imensos recursos estratégicos do famoso mágico.

Não interessa, naturalmente, ajuizar da veracidade do relato de Malheiro Dias mas de enaltecer a verosímil trama em torno da personagem, que é suposto ter realmente efectuado uma passagem por Lisboa, durante as suas digressões pela Europa.



O ano passado foi publicada a tradução portuguesa do livro do falecido  Marc Haven, Cagliostro - O Mestre Desconhecido, pelas Edições Nova Acrópole.


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