Foi
editado por estes dias o livro Lucette
Destouches, épouse de Céline, de
Véronique Robert-Chovin, uma especialista, com obra publicada, do autor de Voyage au bout de la nuit.
Lucette
Destouches, nascida Lucie Almansor, em Paris, em 20 de Julho 1912, antiga
bailarina clássica, conheceu Céline em 1936, casaram-se em 1943, e mantém-se
ainda hoje viva, com 104 anos, o que não
deixa de ser prodigioso, atendendo às atribulações da sua vida.
Véronique
conheceu-a em 1970, tinha então 18 anos e Lucette 58. Seguiu os seus cursos de
dança, que esta ministrava para sobreviver, e depois partiu para a sua vida.
Mas realmente nunca a deixou. Regressou em 1989, para a acompanhar, e
permaneceu até hoje a seu lado, quando não fisicamente, pelo menos em contacto
directo.
A
viúva de Céline ofereceu-lhe, em 1995, o seu primeiro caderno de memórias,
repetindo a frase do marido: «La grande défaite c'est l'oubli.» E pediu-lhe que
passasse a registar as suas recordações e também o que ambas faziam. São hoje
seis, cada um com cerca de 300 páginas, os cadernos com as impressões da velha
senhora.
Em
25 de Outubro de 1997, então com 85 anos e fatigada de viver, Lucette deita-se
a aguardar a morte. Até hoje... Desde essa altura passará a ter assistência
domiciliária permanente.
Em
20 de Julho de 2012, Lucette completou 100 anos. Houve festa na casa de Meudon,
com a participação dos mais íntimos, que a rodearam de flores. O livro agora
publicado contém precisamente o conteúdo do 6º caderno, iniciado nessa data e
que se prolonga até 19 de Janeiro de 2016.
Lucidamente
reflecte: «Ça n'existe pas d'avoir 100 ans, On ne devrait pas vivre aussi
longtemps mais c'est la curiosité qui mantient la vie.»
Durante
os quatro anos que o caderno reporta, principalmente nos dois primeiros,
Lucette vai desfiando o seu rosário de recordações, dos mínimos pormenores
quotidianos até aos acontecimentos que marcaram a sua vida. Sempre com uma
referência especial às personagens que com ela se cruzaram no decorrer de tão
longa existência. É de salientar a evocação, várias vezes feita, de Marcel
Aymé, um amigo fiel, e um dos poucos que acompanharam o enterro de Céline,
falecido em 1 de Julho de 1961, com 67 anos, e cujo óbito Lucette tentou manter,
quanto possível, em segredo. Outras personalidades que acompanharam o féretro,
Claude Galimmard, Roger Nimier e Lucien Rebatet, ao todo umas trinta pessoas.
De
Paul Morand, que frequentava o casal, cita esta frase a propósito do marido:
«C'est un pauvre chien d'aveugle qui s'est fait écraser, tout seul, pour sauver
son maître infirme, cette France qui continue à tâter le bord du trottoit.» (p.
30) Para ela, Morand foi quem melhor compreendeu Céline.
São
dolorosas as recordações da prisão na Dinamarca, após a passagem por Berlim
destruída, uma cidade de fantasmas. Lembra que após a prisão na Dinamarca, começou
a decadência física do marido, que mudou radicalmente os seus hábitos: pouco se
lavava e quase não mudava de roupa. Vivia como um clochard. Inclusive, cessou a sua actividade sexual.
Evoca
também a visita de Pierre Bergé, numa altura em que o actual milionário francês
não se ocupava ainda dos negócios do pintor Bernard Buffet.
Recorda
a sua prisão na Dinamarca em 17 de Dezembro de 1945 e a forma como soube que o
marido se encontrava na mesma prisão. Céline só será libertado a 24 de Junho de
1947. O regresso a França dá-se a 1 de Julho de 1951.
Em
20 de Julho de 2014, Lucette celebra o seu 102º aniversário e os registos começam
a escassear, sendo os momentos de perfeita lucidez cada vez mais raros, e a
vontade de dormir cada vez maior.
Em
18 de Setembro, segundo o caderno, Henri Godard, o grande biógrafo de Céline e
seu editor na "Pléiade", revela, pela primeira vez, que se encontrou
com Céline em Meudon, em 1959. Lucette não gosta dele e considera que ele deve
a sua carreira a Céline, e critica-o por que ele se consagrou unicamente à
obra, a qual não pode ser compreendida sem conhecer verdadeiramente o homem.
(p. 139)
Em
19 de Maio seguinte, citando Lucette: «Elle a connu un monde qui n'existe plus
et elle ne comprend pas pourquoi sa vie ne s'arrête pas puisqu'ils sont tout
morts autour d'elle.» (p. 157/8)
E
em 23 de Junho: «Dans la vie, s'amuser est le plus important. Les gens sont
tout trop sérieux et rasoirs, ils se donnent de l'importance et ne rigolent
pas. Tout ça pour se retrouver morts dans la terre. C'est ridicule.» (p. 161)
Em
17 de Fevereiro (deverá ser Janeiro, possivelmente um erro da autora, pois o
facto está registado na última entrada do "diário", que é de 19 de
Janeiro), Lucette cai nas escadas e é hospitalizada no hospital de Percy, em
Clamart. Nesta altura é encerrado o livro, pois Lucette nada mais poderá
confiar à sua interlocutora. Aliás, as recordações dos últimos anos foram-se já
confundindo com a passagem das horas...
A título de curiosidade, exibimos abaixo a digitalização da página do "Magazine Littéraire" nº 2017, de Janeiro deste ano, em que aparece uma crítica ao livro em apreço.
(Clique na imagem para aumentar) |
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Em
2011, o já citado Henri Godard, professor na Sorbonne, publicou Céline, a monumental biografia (600
páginas) do autor de Bagatelles pour un
massacre, de Les Beaux Draps e de
L'École de cadavres, obras
"malditas" cuja reedição Lucette sempre se recusou autorizar, por
terem estado, além de outros factos, na base da condenação do marido à
"indignidade nacional", devido às considerações anti-semitas.
Deve
acrescentar-se que até há muito pouco tempo só era possível adquirir estas
obras (a 1ª e única edição) em alfarrabistas especializados e a preços
exorbitantes. Verifica-se, contudo, desde há alguns meses, que as mesmas estão
disponíveis em Amazon.fr, editadas por Omnia Veritas, por valores entre os €
20.00 e € 25.00. Todavia, desde tempos já "remotos", era fácil fazer download das mesmas no Google. Dada a
interdição da viúva, ainda viva, mas já não lúcida, ignoro da legalidade
daquelas edições.
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Em
2016, foi editado o dvd Céline,
realizado por Emmanuel Bourdieu (filho do famoso sociólogo Pierre Bourdieu),
que descreve o encontro, em 1948, nos remotos campos dinamarqueses, entre o
escritor francês e o jovem escritor e universitário judeu americano Milton
Hindus, que o admirava e o apoiava com o maior entusiasmo e que pretendia
editar um livro relatando as recordações desse encontro.
Parece
que Hindus não conhecia bem as obras "malditas" de Céline e os
encontros entre os dois decorreram francamente mal. O americano veio a publicar
essas conversas, The Crippled Giant,
o que lhe valeu um processo de Céline, sem consequências, já que a obra não
teve qualquer eco em França. Foi a partir deste livro que Bourdieu escreveu o
argumento e realizou o filme que, salvo melhor opinião, fornece uma visão
distorcida da realidade, mesmo atendendo ao feitio de Céline e às suas opiniões
certamente controversas.
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