domingo, 26 de dezembro de 2021

MEMÓRIAS SENEGALESAS

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr (n. 1990) obteve este ano o Prémio Goncourt pelo seu romance La plus secrète mémoire des hommes, o seu quinto livro desde 2014.

Resumo: Em 2018, Diégane Latyr Faye, jovem escritor senegalês (um alter ego do autor?), recebe em Paris, das mãos de uma famosa escritora senegalesa, Marème Siga D., um exemplar de um livro desaparecido, Le Labyrinthe de l'inhumain, de T.C. Elimane, um senegalês a que chamaram o "Rimbaud negro", e de que tomara conhecimento, nos seus tempos de liceu no Senegal, através de um Précis des littératures nègres. O livro publicara grande escândalo quando publicado (1938) e tornara-se impossível de encontrar, tal como o próprio autor.

«Un grand livre ne parle jamais que de rien, et pourtant, tout y est.» (p. 50)

Mohamed Mbougar Sarr

Diga-se, desde já, que este livro está recheado, um pouco à maneira de Agustina Bessa-Luís, de aforismos em que o autor desenvolve as suas considerações sobre a literatura, o homem e o mundo, sobre a relação dos africanos com os ocidentais (os brancos, como Sarr sublinha), sobre a relação dos países africanos com as antigas potências coloniais. Há inúmeras referências a autores clássicos e modernos, e muitas citações, o que mostra que Mohamed Sarr tem leituras, embora eu suspeite que um escritor de 30 anos não possa ter aprofundado completamente todas as obras que menciona. Não pelo facto de ser senegalês, obviamente (ele até veio concluir o liceu a França), mas porque a abrangência de obras desde os gregos até aos actuais é tarefa muita vasta.

É difícil descrever a intriga do livro, porque trata de várias estórias encastoadas umas nas outras como as matrioskas russas. Há a história do escritor senegalês, o duplo do autor (?) que vai estudar para Paris enquanto jovem e a história (anterior) de um outro escritor senegalês, também ido para Paris na juventude, o tal "Rimbaud negro", personagem misteriosa e mágica, autor do livro La plus secrète mémoire des hommes, obra perseguida pelo primeiro. E depois há as estórias senegalesas dos antepassados deste T.C. Elimane, as estórias de outros membros da família, a estória de estudantes africanos em Paris (o gheto), estendendo-se a latitude geográfica do livro até ao Haiti, à Argentina, aos Países Baixos, etc., numa profusão de personagens e de complexas relações familiares que torna difícil a inteligibilidade da obra. Até porque existe uma sistemática oscilação cronológica na narração (um incessante vai-vem de acontecimentos) e também porque, a certa altura não sabemos quem fala o quê, uma vez que não são indicados os interlocutores e que a simples menção de falas sem aspas não é suficiente, com tão variada mudança de situações, para identificar as personagens.

A construção da intriga é inegavelmente interessante, e o autor inegavelmente dotado, mas resultaria mais eficaz (um termo que não se deve aplicar à literatura, mas que é aqui conveniente) um romance mais breve e centrado nos aspectos essenciais, dispensando muitas estórias acessórias e pormenores supérfluos e evitando repetições desnecessárias. As 450 páginas do livro poderiam ter sido apenas 300 (por exemplo), e isso não invalidaria a obtenção do Prémio Goncourt, a que várias vezes se faz alusão na obra, como que se tratasse de uma piscadela de olho ao Júri que acabaria por lho conceder. Também sei que, nesta altura, convinha à Academia Goncourt conceder o prémio a um escritor negro, obviamente francófono, de preferência senegalês, juntando assim à cor do laureado uma cultura prevalentemente muçulmana.

Um dos aspectos cativantes do livro é que existe nele uma aura de romance policial, por vezes difusa e uma componente fantástica, com contornos mágicos, favorecida pelas antigas tradições do Senegal. Também as alusões sexuais são frequentes, desde os relacionamentos dos estudantes africanos em Paris, entre eles e com europeus, hetero e veladamente homo, até a relações improváveis do protagonista, devidamente actualizado com as novas ferramentas do presente como a Uber, o Instagram, o Facebook, os mails, etc.

Ignoro quais os outros concorrentes ao Goncourt deste ano, mas admito que o livro premiado tenha sido o melhor candidato, se atendermos à qualidade de alguns livros a que o prémio foi outorgado em anos anteriores.

* * *

NOTA: Refiro, por curiosidade e porque é um sinal do mundo actual, que Mohamed Mbougar Sarr foi amplamente felicitado no Senegal quando recebeu o Prémio Goncourt. Nessa altura, as personalidades e instituições que se regozijaram pela atribuição do prémio a um compatriota verificaram que o seu anterior livro (a que farei oportunamente referência), De purs hommes, tratava de um caso de homossexualidade no Senegal. Por esse motivo, retiraram as felicitações ao autor. Isto diz muito dos tempos que vivemos.

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