sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A INVENÇÃO DA ÁFRICA


Foi publicada recentemente a tradução francesa de The Invention of Africa, do filósofo congolês Valentin Yves-Mudimbe, obra editada em inglês nos longínquos 1988.

Não me apercebi então da publicação desse livro, que foi geralmente ignorado na Europa. Surgindo há pouco tempo L'Invention de l'Afrique, decidi-me ler agora a obra, que constitui, de alguma maneira, em relação ao continente africano, a mesma abordagem a que procedeu Edward Saïd, com Orientalism, em relação ao  mundo árabe.

Ambas as obras procedem à desconstrução da narrativa elaborada no mundo ocidental sobre esses dois universos, ainda que a perspectiva dos seus autores não possa ser integralmente aceite, sem qualquer discussão, não só por ocidentais como por árabes e africanos. Recordemo-nos da contestação de que foi objecto Orientalism, mesmo entre os árabes.

Confesso que não conhecia Valentin Mudimbe e fiquei espantado com a erudição de que faz prova este notável intelectual, nascido no antigo Congo Belga, destinado à carreira eclesiástica e que, após a sua partida para os Estados Unidos aquando do regime de Mobutu Sese Seko, se tornou professor de várias universidades americanas.

Familiarizado com as humanidades clássicas e modernas, e também notável romancista, Mudimbe explora neste livro três territórios epistemológicos: a filologia grega e latina, as bibliotecas religiosas e a etnografia colonial. E também as literaturas em busca de uma África "vernacular" e de uma modernidade neo-faraónica inaugurada pelo antigo Egipto. Ao longo do livro, Mudimbe desmonta também alguns discursos sobre o continente, mesmo provenientes de notáveis autores africanos, caso do próprio Léopold Senghor. E as críticas ao colonialismo surgem nesta obra numa perspectiva bem racional, longe de qualquer radicalismo cultivado já no tempo da sua publicação e que atingem agora, com a adopção do politicamente correcto, verdadeiros foros de insanidade.

A extensão do livro (500 páginas) e a diversidade das abordagens não permite aqui discorrer sobre as teses de Mudimbe. Ele recorre bastante a Aimé Césaire, a Michel Foucault, a Jean Baudrillard, a Roland Barthes, a Dumézil, a Claude Lévi-Strauss, a Paul Veyne, a Max Weber, a Jack Goody, a Sartre, a Frantz Fanon, a Senghor, a Teilhard de Chardin, a Braudel, a Cheikh Anta Diop, a Jomo Kenyatta, a Lévy-Bruhl, a Kwame Nkrumah, a Samir Amin, a Patrice Lumumba, a Kenneth Kaunda, a Sekou Touré, para citar apenas alguns dos mais conhecidos, além de numerosos pensadores africanos cujos nomes nos são menos familiares. Há no entanto uma figura muito presente na obra de Mudimbe: Edward Wilmot Blyden (1832-1912), natural das Antilhas dinamarquesas e que se instalou na África Ocidental em 1851 e se tornou rapidamente um dos mais minuciosos especialistas das questões africanas. Residindo em permanência na Libéria e na Serra Leoa, assistiu às primeiras horas da partilha de África, estudou a chegada dos colonos europeus à costa ocidental e observou o estabelecimento progressivo do regime colonial. São muito importantes os seus estudos sobre o Cristianismo e o Islão em África e sobre a "condição do Negro". Naturalmente que as opiniões de Blyden não se harmonizam inteiramente com as de Mudimbe, mas este faz disso mesmo eco no seu livro. Em 1967, Hollis Ralph Lynch publicou um indispensável trabalho sobre aquele investigador: Edward Wilmot Blyden: Pan-Negro Patriot 1832-1912.

Também Mudimbe recorre muitas vezes ao conceito de Weltanschauung, assumido numa perspectiva africana. E as suas investigações recuam no passado e mergulham nos clássicos gregos e latinos. E estendem-se também à filosofia islâmica, a falsafa. Igualmente dissecada a relação entre colonialismo e cristianismo, analisadas as várias perspectivas dos autores africanos sobre a descolonização, evocadas as religiões africanas, etc.

Em Apêndice, são tratadas as fontes etíopes de conhecimento remontando aos primeiros séculos do Império Romano.

Assim, L'Invention de l'Afrique é uma obra riquíssima e complexa que exige do leitor alguns conhecimentos prévios sobre a matéria. Com a intenção de reunir o maior número de contributos para a sua obra, o texto de Mudimbe surge por vezes um pouco confuso no que respeita à arrumação dos temas, o que exige uma particular atenção na leitura.

Recomenda-se a todos os interessados no continente africano, no homem negro (e também nos africanos árabes), nas colonizações e descolonizações, na África pré-colonial, uma visita a este livro.


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