quarta-feira, 4 de junho de 2025

ESCORIAL

O escritor húngaro Miklós Szentkuthy (1908-1988) escreveu, além de outros livros, o monumental Breviário de Santo Orfeu, em dez volumes, iniciado em 1939. Os volumes foram reeditados em obra completa entre 1973 e 1984.

A composição do Breviário de Santo Orfeu (Szent Orpheus breviáriuma) é a seguinte:

Tomo I (1973), incluindo: Volume 1 - Marginalia on Casanova; Volume 2 -  Black Renaissance; Volume 3 - Eszkoriál; Volume 4 - Europa minor

Tomo II (1973), incluindo: Volume 5 - Cynthia; Volume 6 - Confession and Puppet Show; Volume 7 - The Second Life of Silvester II

Tomo  III (1974), incluindo o Volume 8 - Kanonizált kétségbeesés [Canonized Desperation]

Tomo IV (1984), incluindo o Volume 9 - Véres szamár [Bloody Donkey]

Szentkuthy morreu sem ter concluído o Volume 10, In the Footsteps of Eurydice, de que foram publicados postumamente fragmentos em 1993.

 * * *

Li agora Escorial, que presumo ter sido traduzido para português da versão em língua italiana. Poderíamos classificá-lo como romance-catedral, construído em torno de Francisco Bórgia (São Francisco de Borja) e nele surgem as mais diversas figuras do seu tempo e do nosso.

Comecemos por traçar a genealogia do famoso Santo, e não menos notável político, que não é descrita no livro a não ser por referências esparsas.

Francisco de Borja y Aragón (1510-1572), 4º Duque de Gandía e Grande de Espanha, era descendente directo de Rodrigo Borgia (Rodrigo de Borja), que foi o Papa Alexandre VI, e da amante deste, Vannozza Cattanei. O Ducado de Gandía foi recriado em 1483, por Fernando II de Aragão, a favor de Pedro Luis de Borja (Pier Luigi de Borgia) fiho do então Cardeal Rodrigo Borgia.

Por conveniência de uniformização do apelido (Borja, Bórgia, Borgia), passarei a usar Borgia.

Pedro Luis de Borgia foi então o 1º Duque de Gandía, sendo irmão dos célebres Cesar Borgia e Lucrezia Borgia. Tendo morrido prematuramente sem descendência, o título passou para seu irmão Juan Borgia, que casou com María Enriquez de Luna e morreu assassinado. Sucedeu-lhe como 3º Duque seu filho Juan de Borgia y Enriquez de Luna que casou com Juana de Aragón y Gurrea. Foi filho destes Francisco de Borgia y Aragón (São Francisco de Borja) que casou com Leonor de Castro Mello y Meneses e foi o 4º Duque de Gandía e Vice-Rei da Catalunha. O Santo era, pois, bisneto do Papa Alexandre VI. 

Ao longo do livro perpassa, em fundo, a sombra imperial de Carlos Quinto, que era primo em segundo grau do Santo. 

Carlos Quinto era neto de Fernando II de Aragão, o Católico, por sua mãe, Joana a Louca; Francisco de Borgia era bisneto de Fernando II, pois sua mãe, Joana de Aragão, era filha ilegítima de Alonso de Aragão, filho também ilegítimo de Fernando II.

O livro é um monumento barroco em que aparecem as mais diversas figuras. Citemos, por exemplo, os músicos Alban Berg, Lutoslawski, Shostakovich, Palestrina, Pierre Boulez. 

Também, com insistência, Vannozza Cattanei e a sua filha Lucrezia Borgia, e Filipe II, e Teresa d'Ávila, figuram na galeria das personagens.

Menção especial para Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e mulher de Carlos Quinto, que é recorrentemente nomeada. Sendo uma das mulheres mais belas do seu tempo, de quem Francisco de Borgia foi camareiro, este, depois de vê-la morta, e em decomposição, na abertura do seu caixão em Granada, recusou-se a servir qualquer outro senhor que pudesse morrer. E, estando viúvo, ingressou na Companhia de Jesus.

Também minorias, como os judeus e os homossexuais, são tratadas na obra, que é uma grande fantasia teatral.

Bem como os Papas Paulo III, Júlio III, Pio V. E Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, onde Francisco acabaria por ingressar..

O livro salienta o grande interesse de Francisco de Borgia pela China, mas a longa descrição não cabe nos limites deste texto. 

Na impossibilidade de resumir esta viagem alucinante proposta por Szentkuthy, façamos algumas transcrições:

«Uma carta de Julio de Cunserioy Cunserrias deu a conhecer ao autor deste Breviário a descoberta de uma peça de Calderón intitulada El Gran Duque de Gandía, verdadeiro "drama jesuítico" de alto nível, representada em Viena em 1966. O herói desta peça não é outro senão Francisco Bórgia, Antínoo privado de Carlos V, ardente trovador da imperatriz Isabel. Mas Isabel morreu - Deus condenou a mais extrema beleza do corpo ao mais terrível efémero -, a mulher de Francisco (igualmente adorada) morreu também. Francisco dirige-se a Loyola e a última cena apresenta-o exactamente como acabamos de o descrever, penitente vestido de burel, pedindo esmola para os pobres. "O Mundo é um engano" - Die Welt ist Trug, na fórmula do tradutor alemão.» (p. 31)

«Ao mesmo tempo por ordem do papa e para seguir as suas próprias tendências, Francisco começou por atacar duas questões. A primeira dizia respeito às missões na China. O papa fizera-lhe chegar, com a tradução, uma carta que Roma recebera da imperatriz mãe Yung Li, convertida pelos jesuítas. Nada tendo esquecido dos ensinamentos de Carlos V, nem perdido de vista a ideia (de origem medieval) de um vasto império católico, quaisquer reservas que alimentasse quanto à possibilidade de levar a cabo tal sonho não tiraram a Francisco a satisfação de, a seguir ao Grande Processo, se ocupar de projectos tão longínquos; por outro lado, tinha uma confiança absoluta nos seus diplomatas jesuítas, gente de escol, que começam sempre por trabalhar os poderosos deste mundo e depois, sem meias medidas, deitam mão das grandes armadilhas da política europeia: assim, não importa se, para levar o povo a amar Jesus, se tiver que o apresentar como uma fútil variante ocidental e judaico-romana de Confúcio, de Buda, da Lao Tsé e de quantas outras velhas "superstições"! A empresa, desde que seja tentada junto de imperadores, vê multiplicarem-se as suas hipóteses de sucesso. A verdade é que, estimulado pela  carta de Yung Li, Francisco leu todos os livros sobre história da China. A outra questão que o preocupava era a de uma cruzada paneuropeia contra os Turcos. Em geral, este género de empreendimento estava votado ao fracasso e degenerava em aventuras criminosas mórbidas, estúpidas e mentirosas: reis cristãos matavam-se uns aos outros, o próprio papa sujava as mãos quando não se transformava em profeta estéril, organizador de procissões choronas. No entanto, embora não houvesse uma parcela do seu corpo ou da sua alma que não encerrasse uma doença - de sintomas eruptivos sob a forma de velas de árvore de Natal gastas ou então de medalhas cunhadas com o perfil de reis há muito destronados, moedas esburacadas presas com uma guita e manipuladas por crianças idiotas -, Bórgia devia obediência ao papa Pio V.» (pp. 34-35)

«Segundo os cronistas, Bórgia chegou a Roma a 28 de Setembro de 1572 e morreu três dias depois. Segundo outros cronistas, morreu durante a viagem, mas a sua morte foi mantida em segredo, por causa do conclave. Quando, do seu campo de visão, desapareceu, como muitas outras coisas haviam de desaparecer, a forca-cruz, Francisco pronunciou a única frase racional que o homem pode formular ao longo da sua existência: "Está consumado!" E eis o apêndice em tudo racional que podemos acrescentar a esta frasezinha: Francisco tinha dez anos à data da morte de sua mãe e, a seguir ao enterro, as dueñas eternamente faladoras fartaram-se de lhe encher os ouvidos ainda pouco abertos com mil ternuras: bisbilhotices, terrores voluptuosos, mimalhices, substitutos de mãe, cocktail arcaico de todas as manias religiosas. No seu último sonho, Francisco, chegado a Roma, viu, num quadro que representava a Madonna, a sua própria mãe aleitando o filho e recebendo a extrema-unção: seios brancos, cera amarela, padres negros, combinação de rendas com abertura para uma minimamada e, enquanto o seu menino sugava a alma à mãe bebendo-lhe as entranhas, esta recomendava vivamente aos padres, mestres de torneios cavaleirescos, que velassem pela saúde de Francisco como pela menina dos seus olhos.

El Greco: El Entierro del Conde Orgaz. Substituamos os despojos couraçados do conde por Francisco Bórgia e o bispo de casula pelo príncipe de Lerma, neto de Francisco Bórgia - nada mais simples de que tal substituição.» (pp. 42-43)

«- Tudo isso não passa de conversa - disse Renée. - o inimigo principal, o Anticristo negro é Carlos, o imperador romano. Não se consola de não ser papa. Foi por isso que pôs a circular o boato segundo o qual o rei de França suborna o papado e quer fazer do sultão da Turquia senhor da Europa. Carlos sonha com o papado de manhã à noite. Quer ser ordenado padre e tornar-se monge ascético. Fica tudo comovido até às lágrimas ao ver o grande imperador flagelar-se, vestido de burel. Porque é que ele faz isso? Porque está assombrado pela tiara: ora quer adquiri-la pelo sangue, ora, na sua raiva impotente, deseja destruir em si próprio aquela imagem. Nos seus momentos de desespero, inflige a si próprio exercícios de penitência para se livrar do pesadelo da sagração pelo Vaticano.

- É o Francisco que te conta essas historinhas de adormecer? - perguntou Bórgia. [Ercole II, duque de Este, filho de Lucrezia Borgia]

- Não, é o próprio Carlos V que me serve estas realidades. Porque é que ele não executou os decretos de excomunhão do papa Leão contra Martinho Lutero e os seus companheiros? Veja-se que, se ele deixou Lutero seguir o seu caminho foi porque não perdoava ao papa ter dirigido a palavra a Francisco I e sobretudo por não ser ele o próprio papa. Sei que, de vez em quando, Carlos se retira para castelos isolados onde, vestido com os ornamentos do papa, se passeia durante horas diante do espelho. E entretanto, deixa Lutero e os seus companheiros atacar com toda a tranquilidade todo o território do Império. É certo que há aqui uma lógica complexa, a lógica subtil do princípio de identidade ibérico, que os pensadores da plebe não pode entender.»  (p. 272)

«Mas tudo isso não impede a França de se submeter inteiramente à vontade do Santo Padre, nem de empreender o recrutamento dos novos cruzados. Tornou-se já evidente que a França é a única a querer e sobretudo a poder organizar tal empresa, pois ela é actualmente a única grande potência idealista da Europa. Um membro da delegação, um padre francês, deu a saber confidencialmente a Francisco Bórgia que Carlos IX tinha um favorito, um jovem efebo, partidário entusiasta da cruzada. Esse jovem duque seria, segundo certos rumores, espião de Filipe II em França. Pertencia, por parte da avó, a uma família espanhola, todas as suas amantes eram espanholas, mas o rei de França não podia passar sem ele. O padre recomendou a Bórgia que contactasse esse jovem com a maior urgência.» (p. 290)

«Tirando proveito da sua vitória em Lepanto, Don Juan pretende tornar-se senhor de todo o Oriente, de Granada a Damasco. Sem ter a menor intenção de utilizar o seu triunfo no serviço dos interesses da cristandade, quer tornar-se sultão, um tirano digno das Mil e Uma Noites.  Don Juan iniciou já negociações com o paxá de Alexandria. Os dois homens avistaram-se na ilha de Antiparos. Don Juan chegou a bordo de um navio árabe, na companhia de fabulosas huris de harém, o paxá num navio cristão unido de velas cor-de-rosa estampadas às cruzes lilases, pois esse soberano afirma que a cruz é o símbolo da Europa Política e não de uma religião oposta ao Islão e, enquanto tal, utilizável, com cortesia e diplomacia, como símbolo das negociações pacíficas. O ideal de Don Juan é Frederico II de Hohenstaufen, o Anticristo do Levante, Antínoo gibelino, o Dominus Mundi místico dos tigres, das mulheres e dos judeus, o libertino negro que se coloca acima da banal oposição entre Oriente e Ocidente. Frederico nunca quis lutar contra o papa, mas a sua amizade com Don Juan é uma ideia mil vezes mais ignominiosa.» (p. 300)

Destes breves apontamentos se poderá ajuizar da riqueza da obra. 

Recordemos:  

 «Là, nell'avello dell'Escurial» (Don Carlo, de Verdi)

 

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