Húmus, de Raul Brandão (1867-1930), é uma obra singular na literatura portuguesa do século XX.
Notável reflexão sobre a condição humana, não tem propriamente um argumento, ou melhor, o seu argumento é a própria vida, a vida e a morte...
Reli agora o livro na edição de 1917, a primeira, já que na 2ª edição (1926) há capítulos que mudam de título ou de ordem, textos que desaparecem ou são substituídos por outros.
Insusceptível de comentar, no sentido tradicional, transcrevo um período e o final de um capitulo:
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«A questão suprema é esta e só esta: Deus existe ou Deus não existe. Se não há Deus, a vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemo-la para satisfazer instintos e paixões. Se Deus não existe, não há força que me detenha. Não há palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido. Questão lógica: pois eu hei-de ir para a cova, para todo o sempre, para toda a eternidade, sem ter extraído da vida tudo o que ela me possa dar, preso a palavras ou a meras questões de forma? Oh! ponhamos a questão, consciência: se Deus não existe tu não és senão um estorvo, meia dúzia de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos enfim a questão com toda a clareza, porque este é o único problema que me importa e que te importa resolver.» (p. 62)
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« Donde emerge esta figura encharcada de lama, menos a sombrinha, que, apesar da dor, conseguiu atravessar incólume todos os solavancos? A que se atreve depois de ver o filho? Cheguei a ter a visão nítida da montanha de pó acumulada sobre ela, e do desespero imenso para a romper.
Sabe tudo, vai dizer tudo. Tem ali as cautelas do prego e a malinha de mão onde levava escondidos, a enterrar, os fetos de D. Engrácia; só ela pode desvendar os vícios ocultos e o sítio onde a D. Biblioteca tinha a sua fístula. Conhece as misérias e os segredos das famílias correctas. Vai enfim dizer tudo, quando lhe surge o filho que não via há anos. Ei-lo criado de orgulho e côdeas. Submete-se logo, mais coçada e mais gasta, diante daquela obra-prima real e tangível. - Pois sim, pois sim... - Aí tens tu o teu sonho alimentado de côdeas e transformado em realidade. Aí está patente o sonho que sonhaste com inveja, o sonho que sonhaste com fel, aos ais, com a boca tapada, o sonho feito de farrapos, que ocultaste de toda a gente para poder viver. Aí está patente, à luz do sol, como os sonhos dos outros, de ambição e de império, o sonho que ninguém viu sonhar, e que sustentaste à custa da tua própria alma - ó Restituta da Piedade Sardinha!
... - Sejamos lógicos mãe - diz ele - na vida é preciso ser lógico. A mãe criou-me escondido, eu, por meu lado, disse sempre que não tinha mãe. Não hei-de agora que vou casar apresentá-la: - "Aqui está a minha mãe que me criou de esmolas, que me criou escondido".
- Tens razão, filho.
- É que eu sou lógico. Eu agora não hei-de dizer que sou seu filho. Estrago tudo, deito tudo a perder, se apareço com uma mãe que nunca foi minha mãe.
- Tens razão.
- O que é preciso é que a mãe desapareça. O que é preciso é que a mãe, que tem sido lógica deixando-me fazer carreira, não estrague agora tudo. Sem mãe caso rico. Caso com a filha do conselheiro Barata. Até agora podia escondê-la, minha mãe, agora é impossível. Quem soube sacrificar-se para me engrandecer, deve continuar a sacrificar-se. Não lhe peço mais nada: desapareça.
- Desapareço.
- Oh minha mãe, entendamos. Eu não a repilo. Respeito-a até. Quem me dera andar a passear consigo, mostrá-la a toda a gente, ir consigo ao Paço! Mas se não caso, fico pobre toda a minha vida e ninguém faz caso de mim. Desprezam-me. Não entro na política. Se me queria pobre a seu lado, tivesse-me sempre a seu lado.
- Tens razão.
- É o último sacrifício que lhe peço. Quem se tem sacrificado tanto, tem obrigação de se sacrificar mais uma vez. Criou-me, não lhe exijo mais nada.
- Tens razão, filho
Ela própria tem por aquela obra monumental de egoísmo, o respeito que teve sempre por as pessoas consideráveis. Está ali na sua frente de chapéu lustroso e luvas esticadas. Acrescentem a isto amor. Levou anos a criá-lo escondido, e revê-se embevecida nos cartões em que ele assina Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). De resto não lhe custa nada desaparecer. Não lhe custa mesmo nada. É mais uma ordem a cumprir. Obedece. Obedece, como obedeceu sempre à D. Hermengarda, à D. Teodora, à D. Hermínia, como obedeceu a todas as pessoas ricas e de consideração, como obedeceu á vida que fez dela um trapo. Apenas um minuto e esse minuto chega. Um minuto e mais nada. Nesse minuto a figura contraída reconhece a figura de trapos e de restos. Nesse único minuto de dúvida a D. Restituta vive mil anos e um dia e concentra-se em horror e desespero. É o minuto supremo em que a velha Pois Sim se sente arrastada ao céu e ao inferno, ouve vozes que falam ao mesmo tempo, e ela pronuncia palavras que nunca ousou pronunciar, nem mesmo no recanto mais obscuro da sua alma. - Vi-o! Vi-o! Vi-o! - Salta laré, perirone perirote!... A sacudidela de revolta extingue-se, sai da luta exausta, com todo o peso da montanha em cima, diminuída, reduzida outra vez a pois sim... Esses minutos que passou só e contemplando a ruína de toda a sua vida foram amargos como fel. - Mete o diabo no saco! - Tão cansada e tão gasta que nem as feições lhe reconheço; tão amarga e tão ridícula, tão pois sim, que da D. Restituta só resta uma expressão de dor, de dor mutilada a dizer que sim, sempre que sim - a dizer a tudo que sim.
Depõe a sombrinha imaculada no sítio do costume, aberta para a poupar, e, depois de lhe limpar com extremos de cuidado uma nódoa na ponteira, senta-se à mesa e escreve:
"Últimos conselhos de uma mãe a seu filho. - Filho, fui eu que te criei. Sustentei-te de restos, de pobreza, de humildade. Só pensei em ti: tens, portanto, obrigação de ouvir os últimos conselhos que te dou. Olha que és o meu filho, o filho que criei de dia, de noite, de fome, de obediência e de sonho amargo. Criei-te para que pudesses um dia pertencer às classes elevadas. Por isso sofri, para isso sonhei, para isso desapareço, agora que cumpri o meu destino.
Filho: mente. Às pessoas ricas é preciso mentir sempre e dizer sempre que sim. Deve-se-lhes consideração, deve-se-lhes obediência. Nunca te ligues com os pobres. Para pobres bastamos nós, A pobreza pega-se, não há nada no mundo pior que a pobreza. Tem cuidado com a língua. Pela boca morre o peixe. Nunca digas o que sentes: o que a gente sente é sempre uma inconveniência. Há pessoas que dizem: - Eu gosto que me contradigam. - Foge delas como o Diabo da cruz. O que toda a gente quer é que os outros sejam da sua opinião. Só os ricos têm direito de contradizer os pobres. Um pobre não deve ter opinião. Guarda as conveniências, acima de tudo guarda as conveniências.
O mundo antigo tinha muito de bom; sabendo-se ser agradável arranjava-se lá um cantinho. A morte é indispensável para as pessoas herdarem, e para nos dias de luto se desanojarem os ricos. Foge do pecado. Sê religioso e temente a Deus. Nunca digas mal de ninguém. E habitua-te filho, habitua-te que é o grande segredo da vida. Habitua-te a cumprir os teus deveres para com a sociedade. O dever acima de tudo, o dever de te subordinares para que não te queiram mal. Não te esqueças também dos pequenos deveres de cortesia. Não te esqueças que no dia 21 de Julho faz anos o teu padrinho, nem de deixares cartões de visita às pessoas respeitáveis. Há-as que fingem que não reparam nessas coisas. São as piores, são as que reparam mais. Respeita. Respeita a lei, os superiores, a Igreja, os ricos. Num caso grave da tua vida chega-te ao pé do conselheiro Pimenta e diz-lhe com humildade: - Eu sou filho da Restituta que era prima de V. Exª - E mais nada. Não sejas causa de desordem nem de escândalo. Fala baixinho, e mente, filho, mentir não custa nada. Nunca digas a verdade porque pode vir a saber-se. Deus nos livre da verdade. Mente para seres agradável aos outros e a ti mesmo. E sobretudo, repito-te, diz sempre que sim. Não custa nada dizer que sim. Tua mãe, Restituta da Piedade Sardinha."
Baloiça ao vento, a uma réstea de luar, pendurado numa corda, o cadáver de D. Restituta, que parece dizer pela última vez que sim - para que o filho possa casar com a filha do conselheiro Barata. Baloiça ao vento num sexto andar - esquerdo. Morre ignorada e desconhecida quem toda a vida viveu de côdeas, para lhe assegurar o futuro e a assinatura com brasão e elmo, Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). Da mão crispada ninguém lhe arranca a fotografia de quando ele era pequeno, com o fardamento da Escola Académica, como um guarda-portão em miniatura. A sombrinha lá está aberta ao lado da cama, por causa da humidade, e pela janela, aberta sobre o luar, vêem-se os montes onde o Santo colérico não cessa de latir injúrias sobre a vila agachada de terror.» (pp. 128, 129, 130, 131)

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