domingo, 23 de dezembro de 2018

A HOMOSSEXUALIDADE NA "WEHRMACHT"




O artista visual Martin Dammann (n. 1965), a viver em Berlim, acabou de publicar um interessante livro bilingue (alemão/inglês) sobre a homossexualidade nas forças armadas alemãs durante o III Reich: Soldier Studies: Cross-Dressing in der Wehrmacht.


Desde 1990 que Dammann, no exercício da sua actividade profissional, vem adquirindo fotografias de soldados para o Archive of Modern Conflict, em Londres. Ao mesmo tempo, constituiu também uma colecção pessoal que é a base do seu trabalho artístico. Ao longo dos anos, e provenientes das mais variadas fontes, obteve fotografias e postais evidenciando a existência da prática de actividades homossexuais entre os militares alemães. Na Introdução, Martin Dammann tece algumas considerações sobre a sua investigação, de que transcrevemos três parágrafos, utilizando a versão inglesa:


«During World War II, as during World War I, great efforts were made, through all manner of entertainment, to distract soldiers from the existential threat they faced. Not for altruistic reasons, of course: in the end, the aim was to embolden the will to fight. The National Socialists had an additional goal in mind, which was to remind the soldiers of their Heimat (homeland) through the use of professional theatrical performances. These front theater shows were financed and put in place by the propaganda ministry and the Kraft durch Freude (Strength through Joy) organization.»


«It seems plausible that, across the centuries, soldiers have always responded to their longing and desires not only by imagining what they were missing but - also - by trying to evoke its immediate presence. The phenomenon of soldiers dressing up in female clothing can be traced across all nationalities and conflicts that have been photographically documented, while the written sources go even further back. Strangely enough there is a particular plethora of such material in German photo albums from World War II. By this I mean that, in every twenty to thirty wartime albums, one will normally find one or two photographs of soldiers dressed up as women.»


«Even the majority of soldiers were heterosexual, we can see evidence of homo - and transsexual orientation with unusual clarity. This is remarkable, given that, if there is one genuine taboo in German photo albums of World War II (in contrast to, say, American ones), then it is the explicit representation of sexuality. This is even more striking if one considers that in the Third Reich homosexuality could lead to imprisonment in a concentration camp. Above all, it is surprising how openly these men expressed their desires: even on photos which show a larger group of men watching a performer whom one might assume to have a homo - or transsexual orientation, it does not appear that the heterosexual men are keeping distance. Without exception, all these men seem to be completely abandoned to the moment and to their own desires, in a unique state of bliss that makes itself evident in all the photos, no matter how different the situations in which they came about.»


O álbum agora dado à estampa é tanto mais curioso quanto é conhecida a severidade do governo do Reich relativamente à homossexualidade, uma orientação considerada contrária aos princípios do nacional-socialismo. E contudo... As autoridades nazis perseguiram judeus, homossexuais, ciganos, diminuídos mentais e físicos, etc., embora essa perseguição tivesse não só a ver com motivos ideológicos como oportunismo político. Daí que as sanções tenham sido aplicadas consoante as pessoas e as circunstâncias, e o grau de rispidez tenha oscilado no decorrer do tempo.


A legislação alemã punia os actos homossexuais, desde 1871, através do § 175 do Código Penal, mas desde o começo do século passado existia na Alemanha uma grande liberdade de costumes, que permaneceu durante a Primeira Guerra Mundial e depois durante a República de Weimar. Ainda no tempo do Império registou-se mesmo um escândalo notório, o chamado Caso Eulenburg, que agitou toda a imprensa da época. O jornalista Maximilian Harden acusava o príncipe Philipp zu Eulenburg, primo de Guilherme II e seu amigo íntimo, o general conde Kuno von Moltke, comandante militar de Berlim, e outras altas individualidades próximas do imperador de realizarem festas homossexuais com a participação de jovens oficiais e soldados. Os processos e contra-processos judiciais foram inconclusivos. Admite-se que por detrás das acusações de Harden houvesse intenções essencialmente políticas contra o Kaiser.


Após a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 30 de Janeiro de 1933, a condenação manteve-se, mas só depois da "Noite das Facas Longas" (30 de Junho para 1 de Julho de 1934) e da execução de Ernst Röhm, em 2 de Julho de 1934, se apertou o cerco aos homossexuais. Röhm era o chefe das SA (Sturmabteilung), o esquadrão de assalto do Partido Nazi, uma informal tropa arruaceira que contava, porém, nessa altura, dois milhões de membros. Amigo pessoal e um dos grandes apoiantes de Hitler, Röhm era também um homossexual público e as SA contavam no seu seio centenas ou mesmo milhares de jovens que se entregavam a práticas homossexuais entre eles ou com os seus chefes. As Forças Armadas detestavam Röhm, por isso e igualmente por causa do seu poder. O chefe das SA constituía também um estorvo às ambições de Heinrich Himmler e de Reinhard Heydrich. Alvo de pressões, e também porque suspeitava que Röhm lhe viesse a disputar a liderança da Alemanha, Hitler resolveu eliminar as SA e ordenar ao seu chefe que se suicidasse. Este recusou e Hitler mandou executá-lo. A partir daí, não só os actos homossexuais mas a própria suspeição de homossexualidade passaram a ser progressivamente mais penalizados, com o pretexto de que constituíam uma ameaça para a nação alemã.


O § 175 só veio a ser parcialmente revogado em 1950, na República Democrática Alemã, e em 1969, na República Federal da Alemanha.  A sua rigidez foi atenuada em 1973, e foi finalmente abolido em 1994, já depois da reunificação da Alemanha.


No seu filme La caduta degli dei (Os malditos), de 1969, o famoso realizador Luchino Visconti evoca a "Noite das Facas Longas", de que se reproduz aqui o episódio do massacre:



Importa notar que persiste a suspeita de que o próprio Hitler era homossexual. O historiador alemão Lothar Machtan publicou em 2001 o livro Hitlers Geheimnis, de que existe (ou existia) uma tradução portuguesa, editada pela Bertrand, com o título A Face Oculta de Hitler (2002). Nele, Machtan expõe factos bastantes para sustentar a homossexualidade do Führer e de como ela condicionou a sua vida pessoal e política.


É evidente que Hitler não exterminou todos os homossexuais (não conseguiria fazê-lo) como não exterminou todos os judeus, embora neste caso as perseguições fossem mais sistemáticas. O anti-semitismo de Hitler, já revelado no Mein Kampf, tinha a ver com a pureza da raça ariana. A aversão à homossexualidade resultava do facto de a sua prática reduzir o ritmo da procriação e logo a diminuição do número de cidadãos alemães. No que aos judeus respeita, a ideia inicial de Hitler teria sido a de se desembaraçar deles do território germânico, tendo sido encaradas várias regiões para onde "exportá-los" como Madagáscar, Chipre, Uganda e até Angola (ideia liminarmente rejeitada por Salazar) ou a Palestina, local que se afigurava mais indicado depois da Declaração Balfour de 1917. A impossibilidade de concretização destes planos conduziria à ideia do extermínio, supostamente decidido na Conferência de Wannsee (20 de Janeiro de 1942), por iniciativa de Reinhard Heydrich, onde terá sido adoptada a "solução final" para a resolução da questão judaica.


Regressando ao livro de Martin Dammann, de que reproduzimos algumas fotos, o autor salienta o facto de serem consideradas aceitáveis, inclusive pelo regime nazi em tempo de guerra, certas práticas homossexuais nas casernas de todo o mundo, onde o convívio próximo e prolongado de homens convida a que se forjem laços de amizade que em muitos casos, apesar de se tratar de indivíduos habitualmente heterossexuais, levam à prática de relações homossexuais, abandonando-se o padrão da heteronormatividade vigente.


1 comentário:

Zephyrus disse...

Comprei há cerca de dois ou três meses um livro sobre o Reich e o Ocultismo. Bem documentado, demonstra as influências dos grandes autores ocultistas do século XIX e do início do século XX nos ideólogos do nacional-socialismo alemão. O Cardeal Cerejeira terá dito que a Alemanha vivia um neo-paganismo e o Fuhrer aspiraria a ser um novo César. É indubitável que houve uma tentativa de renascimento do paganismo nórdico, que já vinha do tempo do Romantismo. Ora neste contexto a posição sobre a homossexualidade, tomada pelo Regime, parece altamente contraditória quando confrontada com o renascimento do nacionalismo pagão. É sabido que as tribos celtas da Europa ocidental praticavam abertamente o amor entre os homens e que as mulheres gozavam de especial liberdade sexual. Estão documentados costumes idênticos, de amor e amizade masculinas entre guerreiros das tribos germânicas. Nem vale a pena referir a situação de Roma, da Grécia ou do Médio Oriente na Antiguidade. A condenação e proibição das relações amorosas e sexuais masculinas vem dos sacerdotes do Judaísmo. A «federação de tribos» judaicas foi durante largos séculos uma minoria restrita e fechada no Médio Oriente que surge inicialmente como uma rejeição à sedentarização nos alvores da Civilização, quando aparecem as primeiras Cidades nos vales do Tigre e do Eufrates. É São Paulo, judeu grego ortodoxo que se chamava Saulo e que se converte ao Cristianismo, que introduz a condenação do «amor livre pagão». Importa salientar que algumas seitas do cristianismo primitivo não aceitavam muitas das ideias de São Paulo. Mas são as ideias de São Paulo que vencem. O resto da História é sabido. O cristianismo difunde-se pela Europa, mas o processo é complexo e demora muitos séculos. Maomé, que terá contactado com monges cristãos, é influenciado pelo Cristianismo, pelas ideias de Zoroastro e pelo Judaísmo quando funda a sua nova religião, o Islão. Contudo, até ao século XIX ou início do século XX, a condenação das relações masculinas não se tinha imposto como sucedera na Europa (com maior veemência durante a acção da Inquisição ou durante a Reforma protestante), apesar de grupos mais ortodoxos condenarem o sexo e amor entre homens. Tal sucederá já na época contemporânea, por influências do colonialismo e com a fundação de Estados de Direito Modernos (a Turquia de Ataturk, é uma excepção). Por que motivo então o nacional-socialismo tentou reviver alguns aspectos do paganismo mas rejeitou o «amor masculino» ao ponto de perseguir e matar homossexuais? Existirão certamente algumas respostas, que estão acessíveis a quem estudar o que se sabe sobre a vida privada de Hitler e as relações do regime com o Ocultismo.