segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
JOÃO ROSA LÃ - (IN)CONFIDÊNCIAS DIPLOMÁTICAS)
O embaixador João Rosa Lã publicou muito recentemente um interessante livro de memórias, Do Outro Lado das Coisas - In(Confidências Diplomáticas), onde regista a sua actividade como diplomata ao longo dos 43 anos em que esteve ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Neste livro de memórias, prefaciado pelo prof. Adriano Moreira, Rosa Lã não só dá conta da sua evolução na Carreira, como fornece um panorama da posição de Portugal no quadro internacional, através dos postos em que serviu, anotando também diversos episódios curiosos ocorridos no desempenho das suas funções, normalmente ignorados do grande público e que, por isso, constituem sempre motivo de interesse.
Trata-se de um livro muito bem escrito, na forma e no conteúdo, e ainda que dando dos acontecimentos a perspectiva do autor, que é por natureza subjectiva, procura reunir elementos bastantes para que o leitor possa, também ele, ajuizar da realidade dos factos.
João Rosa Lã começou por desempenhar funções em Genève (OSCE), Marrocos, Venezuela, Bruxelas e Washington e foi embaixador de Portugal na Guiné-Bissau (1993 a 1994), Países Baixos (1996-1999), Áustria (1999-2001), igualmente acreditado na Eslovénia e na Eslováquia, Espanha (2002 a 2004), França (2004 a 2006) e Marrocos (2006 a 2011). Foi ainda Director-Geral dos Assuntos Multilaterais do MNE (2001 a 2002), assessor diplomático do ministro da República para os Açores, general Rocha Vieira (1987 a 1988) e assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva (1994 a 1995).
O livro de Rosa Lã (RL) é uma obra volumosa (mais de 600 páginas), declarando o autor que, por razões editoriais, ainda teve de reduzir muito as suas memórias. Nem poderia ser mais breve, já que além dos factos pessoais Rosa Lã tece largas considerações sobre política internacional, revelando aspectos mais do conhecimento das chancelarias do que da comunicação social e que, por essa razão, não chegam habitualmente ao conhecimento da opinião pública.
Não sendo possível, nos limites de um post, tecer considerações de fundo sobre a obra, limitar-me-ei a assinalar alguns episódios que pelo pitoresco ou pelo insólito mais despertaram o meu interesse.
- Estando RL em Caracas, estabeleceu uma relação de amizade com o engº Santos e Castro, antigo governador-geral de Angola, que ali se encontrava exilado depois do 25 de Abril. Numa das muitas conversas que mantiveram, este ter-lhe-á confidenciado que Marcelo Caetano, no início de 1974, o incumbira de preparar uma independência unilateral do território (p. 120)
- Aquando da realização da CIRCA 1492, comemorativa dos 500 anos da descoberta da América, organizada em 1992 pela National Gallery of Art, de Washington, o director desta instituição, o influente Carter Brown, ficou encantado com o nosso acervo de tesouros artísticos, cujo empréstimo solicitou para a exposição. Apos longas negociações, foi decidido ceder o "Painel do Infante", atribuído a Nuno Gonçalves, as "Tentações de Santo Antão", de Bosch, o medalhão de terracota com as armas portuguesas, de Andrea della Robbia, a tapeçaria de Pastrana evocativa da tomada de Tânger, etc., ficando os americanos com a responsabilidade da embalagem e do transporte, enquanto os portugueses pagariam os respectivos seguros. Como estes eram elevadíssimos, e não havia verba disponível no Orçamento, a decisão do envio das peças foi sucessivamente protelada para grande irritação da direcção da National Gallery. Finalmente, já no fim do prazo admissível, o secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, autorizou a saída das famosas obras, que foram embarcadas sob rigorosas medidas de segurança. Tendo curiosidade de saber como haviam sido conseguidas as verbas do seguro, RL colocou a questão ao embaixador Bouza Serrano, então chefe de gabinete de Santana Lopes, tendo-lhe este respondido que se tratara de um "seguro político". RL nem queria acreditar. As obras haviam viajado para Washington e regressado a Portugal pura e simplesmente sem qualquer seguro (p. 230)
- Estando em curso a campanha para conquistar o voto americano para a candidatura portuguesa à Exposição Mundial de Lisboa a realizar em 1998 o presidente da República, Mário Soares deslocou-se a Washington para tentar convencer os congressistas a apoiar a escolha de Lisboa, já que Toronto também se havia candidatado e era uma séria concorrente. O embaixador de Portugal na capital americana, Francisco Knopfli, ofereceu um grande banquete na Residência, aos congressistas mais influentes e considerados amigos de Portugal, entre os quais o democrata Barney Frank, do Connecticut, uma figura cujo voto seria decisivo para as nossas intenções. Muito instado por RL, Frank mandou dizer que só aceitaria o convite se o seu jovem motorista e amante e por quem estava apaixonado fosse igualmente convidado. Como Frank fora um dos primeiros congressistas a declarar a sua opção homossexual e que, por isso, gozava de uma certa fama, a Embaixada acabou por aceder àquela pretensão. O jantar, com 50 convidados de primeira linha, foi um êxito, mas aconteceu que Frank, que se sentava imediatamente à esquerda do Presidente, levantou-se por três vezes do seu lugar para acariciar a cabeça do amigo e lhe segredar ao ouvido. Esta atitude, segundo RL, agastou visivelmente Mário Soares (suponho eu que pela infracção protocolar, já que Soares foi sempre aberto em matéria de costumes) que depois do jantar não queria dialogar com o congressista, o que frustraria o objectivo do convite, condescendendo todavia a trocar algumas palavras com o mesmo no final do repasto (p. 227)
- Ainda a propósito de banquetes, quando Jorge Sampaio visitou oficialmente a Holanda foi convidado pela rainha Beatriz para um jantar de gala no Palácio de Haia. Um dos convidados era o presidente da instituição equivalente ao nosso Tribunal Constitucional que vivia maritalmente com um amigo e que, naturalmente, também foi incluído na lista de convidados do jantar de retribuição oferecido pelo nosso presidente da República. Quando RL procurou saber, junto do Chamberlain da rainha, qual o lugar que protocolarmente cabia ao parceiro do referido alto magistrado foi-lhe primeiro respondido "nenhum", e depois "ao pé dos criados" (p. 379)
- Durante o período que passou em Bruxelas, na Missão Portuguesa junto das Comunidades Económicas Europeias, RL alude a um episódio ocorrido com o então ministro dos Negócios Estrangeiros, engº Pires de Miranda. E escreve: «Depois de uma séria e desagradável conversa com o Ministro, já seguramente inquinado com a boataria e as críticas soezes, percebi que o meu futuro estava fixado e que maus dias me aguardavam. Segundo Pires de Miranda me disse nessa troca de palavras, ele estaria habituado à selva dos petróleos que era muito pior do que a "selva dos diplomatas" e, por isso, não descansaria enquanto não nos pusesse na ordem, nem que para isso fosse preciso dar cabo da maior parte de nós e acabar com "esta" Carreira. "Conheço-vos bem!", concluiu ele. Com estes preconceitos e esta disposição de espírito, o Ministro não me parecia, claramente, a pessoa indicada para chefiar um corpo de profissionais que sempre cumprira, desde início da sua fundação havia dois séculos e meio, o melhor que podia a sua missão e que era responsável, em grande parte, pela nossa existência como país soberano. Não seria Portugal, acima de tudo, uma obra de militares e de diplomatas? Mas para saber isto e outras coisas importantes, seria necessário conhecer a nossa História e não ter do mundo uma visão redutora e meramente contabilística limitada a barris de petróleo!». (pp 163-164)
Em abono desta opinião de RL devo dizer que sempre ouvi as piores referências a respeito de Pires de Miranda, não só quanto ao seu péssimo feitio como à sua propalada competência como gestor e nomeadamente como especialista de petróleos. Terá sido hábil, isso sim, na construção da sua própria reputação.
- Tendo o presidente Jorge Sampaio efectuado em 2005 uma visita de Estado a França, uma das cerimónias foi a condecoração de várias personalidades franceses pelo chefe de Estado português. Abordado o assunto dos nomes com a Presidência da República, uma das pessoas que mereceu desde logo a unanimidade foi a actriz francesa Catherine Deneuve, protagonista de muitos filmes de Manoel de Oliveira e visita assídua de Portugal. Tentou RL obter os contactos da senhora para lhe falar pessoalmente. Não o tendo conseguido e sabendo que esta se encontrava em Los Angeles acompanhada pela sua secretária acabou por telefonar-lhe. Transcrevo: «Num diálogo a três, fui informado de que a Senhora não estava interessada em receber qualquer distinção, nem se encontrava com quem tão generosamente se propunha honrá-la em nome do seu País onde ela tanto trabalhara. Anos mais tarde, encontrámo-nos no Festival de Cinema de Marraquexe. Ficámos sentados lado a lado. Tentei conversar com ela e contar-lhe que já lhe havia falado para Los Angeles. Nem se dignou olhar para mim... Já não conseguindo esconder as maldades que a idade lhe fizera no seu belo rosto, foi meia cambaleante para o palco para a entrega dos prémios, mas só o fez depois das câmaras de televisão que ali estavam serem desmontadas pois prejudicavam-na e aborreciam-na. Nunca encontrei criatura tão absurdamente parva... (pp 557-558)
- Enquanto assessor diplomático de Cavaco Silva, RL descreve um episódio sintomático da arrogância, da grosseria e do novo-riquismo dos norte-americanos, a propósito da nomeação de Elizabeth Bagley para embaixadora dos EUA em Portugal. Transcrevo:
«À chegada ao nosso país, Bagley não tinha gostado do estado da residência da Embaixada e decidiu fazer nela obras de remodelação importantes, tendo alugado uma casa, enquanto duraram os trabalhos. Contrariamente aos usos e regras protocolares em vigor relativamente às residências oficiais dos Embaixadores acreditados em Portugal, que obrigam a que a mesma esteja situada no concelho de Lisboa, a Embaixadora dos Estados Unidos alugou uma casa em Sintra. Esta regra surgira da necessidade de impedir que a maioria dos Embaixadores fossem residir na chamada linha Estoril-Cascais, não respeitando, assim, a regra protocolar básica de as Embaixadas estarem sempre situadas na capital do país onde estão acreditadas.
Por razões de segurança, os responsáveis americanos decidiram fechar ao trânsito algumas das ruas que davam acesso à nova residência em Sintra, o que levantou enorme celeuma entre os vizinhos prejudicados. Creio que foi com cedências deste género por parte da nossa administração, que a Senhora Embaixadora dos Estados Unidos acreditou que podia forçar a satisfação de todos os seus desejos. Um mês depois da visita do Secretário de Estado Christopher, celebrou-se o 4 de Julho, a festa nacional americana. Como não dispunha de espaço suficiente na sua nova residência e por não querer fazer como todas as outras Embaixadas, alugar os salões de um hotel ou de outro local apropriado, Bagley decidiu festejar à beira Tejo, num local central da zona ribeirinha, logo a seguir às docas, ocupando os espaços que estão disponíveis para o lazer e desporto dos lisboetas. Obtida a cedência do local, a Embaixada armou, naqueles enormes relvados dando directamente para o rio, uma gigantesca tenda, com outras mais pequenas para albergar os pavilhões das firmas que financiavam o evento, como a Coca-Cola, a McDonald's, etc. Sempre invocando razões de segurança, a embaixada erigiu vedações provisórias em toda a volta do referido recinto, para impedir o acesso ao interior. Não satisfeitos com todos estes atropelos à ordem pública do país onde a sua missão diplomática estava acreditada, os serviços de segurança americanos fecharam igualmente o trânsito nos arruamentos que davam acesso às outras zonas não ocupadas, na margem ribeirinha. Eu próprio, passando por mero acaso por aquela zona, vi com espanto até onde ia o à vontade e o descaramento dos marines americanos e comuniquei ao Comandante da PSP de Lisboa o que se passava. Alguns minutos mais tarde, os locais públicos foram evacuados, o trânsito restabelecido e a acção dos militares da embaixada confinada ao interior do recinto.
Se a Embaixadora em questão não era muito dada às sensibilidades diplomáticas, mostrando uma arrogância pouco própria do seu estatuto, já o seu marido era inenarrável. Um dia propôs ao governo português (a que título?) a cedência da exploração das Pousadas de Portugal à cadeia Hilton (de que ele era accionista, creio), "dada a incapacidade dos portugueses se ocuparem com eficácia da mesma e a vantagem em internacionalizar o seu serviço". Noutra ocasião, durante um jantar no Palácio da Ajuda, estando nós, a minha Mulher e eu, em amena cavaqueira com os Embaixadores Knopfli, aproximou-se a Embaixadora Bagley e o marido, que nos foi apresentado. Ao saber que estava diante do Secretário-Geral do MNE e antigo Embaixador nos Estados Unidos, o dito marido perguntou-lhe se era ele o mesmo que não tinha querido pagar o visto diplomático americano, solicitado havia pouco tempo. Referia-se o homem a uma desagradável história passada com a Embaixada americana, por esta se ter recusado a dar um visto de cortesia (gratuito) ao funcionário mais importante do Ministério dos Negócios Estrangeiros e, além disso, ex-chefe de Missão em Washington, como, aliás, é regra protocolar em todos os países. Depois da secretária do Embaixador Knopfli ter sido informada de que os Estados Unidos tinham acabado com os vistos de cortesia em todo o mundo, procedeu ao seu pagamento sem delongas, não deixando de manifestar a sua estranheza pela decisão. Ora, o Sr. Bagley, com a sensibilidade a e a boa educação que o identificavam, depois de ter relembrado o incidente, puxou de uma nota de cinco mil escudos e quis dá-la ao Embaixador "para o compensar da despesa". Escusado será dizer que todos ficámos gelados, sem acreditarmos no que tínhamos ouvido. O Embaixador Knopfli, retendo a enorme vontade, igual à nossa, de o mandar para outro sítio, virou-lhe as costas, mostrando a sua indignação por tão soez atitude. Seria razão para o considerar persona non grata, se não fôssemos um país de brandos costumes.» (pp. 330-333)
Esta atitude não me causa admiração. Dos americanos há a esperar tudo, normalmente o pior.
- Em 2004, RL foi designado embaixador em Paris, em substituição do embaixador António Monteiro que havia sido nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Santana Lopes. Como este governo cessou funções em Março de 2005, tendo sido substituído pelo governo de José Sócrates, pretendeu António Monteiro, que havia ficado "pendurado", regressar ao seu antigo posto, o que implicaria a remoção de Rl, apenas com um ano de missão naquela capital. Foi, por isso, com espanto, que Rosa Lã escutou o telefonema do novo MNE, o prof. Freitas do Amaral. Transcrevo: «Era o Ministro Freitas do Amaral informando-me, no tom majestático e enfatuado com que gostava de impressionar os funcionários dele dependentes, que a situação em França era "muito grave", após a recusa popular da Constituição Europeia e que ele, Ministro, precisava de ter em Paris um Embaixador com muito maior "peso" do que eu, para fazer face ao que se iria passar em França nos próximos tempos. Tinha, por isso, decidido nomear para me substituir, um "peso pesado" do Ministério, que tinha acabado de ser Ministro dos Negócios Estrangeiros, que, como eu sabia, "constituía a função mais importante que se podia ocupar no aparelho do Estado". "O Senhor, em contrapartida, não passa de um mero funcionário diplomático" (sic). (p. 571)
Não é possível, mesmo tratando-se de faits divers em que o livro é fértil, alongar-me nas citações. Por isso, mais não salientarei do que as muitas referências de RL às intrigas e invejas na Carreira, de que todos estamos cientes, e a um lapso num livro conceptualmente tão rigoroso. Escreve RL a p. 75: «Estando as forças políticas espanholas totalmente envolvidas na luta pela sucessão e na disputa entre os palácios do Prado e da Zarzuela, não quiseram, ou não puderam, opor-se aos movimentos estrategicamente feitos por Hassan II...». Ora se João Carlos habitava o Palácio da Zarzuela, o generalíssimo Franco habitava não o Prado (que é o Museu) mas o Palácio do Pardo. Todavia, pode tratar-se de uma mera gralha tipográfica.
Pelo muito que revela da Carreira e de episódios menos conhecidos da vida política nacional e internacional, o livro do embaixador Rosa Lã é um valioso contributo para a história da diplomacia portuguesa. Pena é que esteja praticamente esgotado.
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2 comentários:
Estando o livro esgotado e havendo interessados em o adquirir (eu sou um deles), porque não re-editar o mesmo?
A política editorial em Portugal (e não só no nosso país) rege-se hoje por critérios estritamente económicos. Não existem fundos editoriais e, quando existem, são muitas vezes destruídos para não ocuparem espaço.
Mas tavez possa encontrar ainda algum exemplar na Gradiva, que editou o livro.
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