Como referimos aqui, realizou-se ontem na Sociedade de Geografia um Seminário sobre o tema "Portugal e Suécia no tempo da Rainha Cristina".
Entre as comunicações apresentadas, salienta-se a intervenção do Embaixador Fernando Ramos Machado, que pelo seu interesse transcrevemos abaixo:
PORTUGAL NA
CONVERSÃO
DE CRISTINA DA SUÉCIA
RECORDANDO
LARS SKYTTE
E ANTÓNIO DE MACEDO
A conversão de Cristina da Suécia ao Catolicismo causou o
assombro dos contemporâneos e tem sido objecto de curiosidade e de interesse
desde então. Um português, António de Macedo, e um sueco, português adoptivo,
Lars Skytte, foram relevantes para a tomada de decisão da Soberana sueca, O
propósito do presente trabalho é evocar esses dois homens, hoje quase
esquecidos.
Tendo Francisco de Sousa
Coutinho, primeiro Embaixador enviado por D. João IV à Suécia, concluído a sua
missão, regressou a Portugal, ainda em 1641. A bordo do navio que o
transportava vinha, também, o recém-nomeado enviado diplomático sueco à Corte
portuguesa, Lars Skytte. Era ainda relativamente jovem pois, ainda que não se
conhecendo a data do seu nascimento, admite-se geralmente que tenha tido lugar
em 1610. Pertencia a uma ilustre família, da qual vários membros exerceram
elevadas funções. Assim, seu pai, Lars Bengtsson Skytte, foi Governador de Estocolmo e de Upsala. Mas
há que destacar, sobretudo, seu tio paterno, Johann Skytte , que, aliás,
constava ser filho natural do Rei Carlos IX; foi um académico respeitado e
influente político, preceptor do futuro Rei Gustavo Adolfo e que este, muitos
anos depois, haveria de encarregar de velar pela educação de sua filha
Cristina.
Lars Skytte adquiriu uma sólida
formação humanística, ainda na Suécia. Aos 24 anos, iniciou extensas viagens
pela Europa e, em 1638, matriculou-se na Universidade de Leiden, onde se
encontrava quando, três anos depois, o seu Governo o designou como o primeiro
representante diplomático sueco em Portugal, após a Restauração.
Lars Skytte desembarcou em Lisboa
em Novembro de 1641. Estava, essencialmente, incumbido de três tarefas:
proceder à entrega às autoridades portuguesas do valioso armamento que fora
adquirido na Suécia; cobrar o respectivo pagamento, em dinheiro ou em
mercadorias, como açúcar, sal e especiarias; informar-se sobre a situação
política e económica em Portugal.
A missão de Lars Skytte prolongou-se por cinco anos e meio, muito mais
do que seria previsível, tendo ele, de
Enviado, passado à categoria de Residente. Alcançou um profundo conhecimento
sobre o nosso País e terá cultivado estreitos laços com a elite cultural. Disso
é testemunho o ter-lhe sido dedicada a
edição da biografia de Rui Freire de Andrade e a de um raro mapa do Alentejo e
da Estremadura espanhola, nos dois casos se mencionando os seus títulos de
Senhor de Kongzbroo e Satra. Estou certo de que terá encontrado o Padre António
Vieira, que regressou, pela primeira vez, do Brasil a Lisboa, em 1641,
precisamente o ano em que Lars Skytte aqui chegou; Vieira tornou-se um dos mais
influentes conselheiros de D. João IV e levou a cabo missões diplomáticas em
França, Holanda e Itália; por seu lado, Lars Skytte representava aqui uma das
principais potências aliadas de Portugal; eram quase da mesma idade, ambos
cultos e excelentes latinistas. (E quem sabe se Lars Skytte, que tinha, como
uma das suas tarefas, adquirir sal no nosso País, não terá escutado, logo em
Setembro 1642, um célebre sermão que Vieira pregou, glosando a frase evangélica
“vós sois o sal da terra”)
A curiosidade intelectual e,
também, a insatisfação com alguns aspectos do Luteranismo, em que fora educado,
levaram o Residente sueco a estudar o catolicismo e, gradualmente, a
aproximar-se da Igreja Católica. Mudar de religião não é uma decisão que se
tome de ânimo leve ; menos, ainda, em meados do século XVII quando, com raras
excepções, em todos os Países europeus, fossem eles católicos ou protestantes,
dominava a intolerância religiosa. As religiões eram religiões de Estado e a
abjuração constituía crime grave. Para Lars Skytte, acrescia a circunstância de
ser o representante oficial de um Reino que aparecia como o campeão do
Protestantismo na Europa.
O drama interior de Lars Skytte
foi-se arrastando, vindo a culminar em Janeiro de 1647, quando entrou no Tejo
uma armada sueca, sob o comando do Almirante Ankarhjelm, que trazia as
instruções para ele regressar ao seu País. Tinha de se decidir e, havendo tudo
ponderado, optou pela conversão. A 13 de Fevereiro, ainda de noite,
apresentou-se no Convento de S. António do Curral (onde hoje é o Hospital de S.
António dos Capuchos) , estavam os monges a rezar as matinas Alguns deles eram
seus amigos e alegraram-se com o que ele lhes anunciava, mas a questão teria de
ser submetida à Inquisição; poucos dias depois, aquele Tribunal pronunciou-se
positivamente, sendo ele acolhido na
Igreja Católica.
Tal gesto não poderia deixar de ter
forte impacto. Mas, com grande realismo e tendo em conta o interesse do Estado,
D. João IV pediu a Lars Skytte que deixasse o Convento, para concluir os
assuntos pendentes. Por sua parte, o Almirante Ankarjhelm terá procurado
persuadir o seu compatriota a voltar a Estocolmo mas, sem o ter conseguido,
partiu em Abril, levando as cartas em que o ex-Residente comunicava, às autoridades suecas e à própria Rainha
Cristina, que iria permanecer em Portugal
Segundo Frei Fernando da Soledade
escreve na “Crónica Seráfica”, a Soberana aceitou as razões do seu antigo
diplomata, ”contra o parecer de alguns e dando, mais uma vez prova da sua
prudência e, também, da sua piedade e clemência”. Na verdade, considero que a
reacção de Cristina se explica não só pelo seu carácter, mas, também, pela sua
atitude em matérias de Religião. Precisamente no início de 1647, Cristina
tivera uma séria confrontação com os sectores luteranos conservadores, aliás
largamente dominantes e que incluíam o próprio Chanceler Oxenstierna A Rainha opôs-se, com a maior energia, à
tentativa de condenação, pelo Riksdag, de uma obra da autoria do Bispo Johann
Matthiae, que era defensor duma modalidade aberta e tolerante do Luteranismo;
ele havia sido, por designação do
próprio Gustavo Adolfo, o preceptor de
Cristina, que mantivera por ele grande respeito e carinho. O Riksdag criticava,
também, a celebração de Missas católicas
na Residência do Embaixador francês. Vale a pena referir que o Chanceler
pensava não ser grave que houvesse Missa na Embaixada de Portugal, pois poucos
suecos a frequentavam ou percebiam o português, mas a situação era muito
diferente no que tocava à Embaixada de França. Também neste caso, Cristina
manifestou, grande coragem e independência de espírito, defendendo a liberdade de
culto das Missões Diplomáticas na Suécia.
No auge da sua crise pessoal, em Lisboa, Lars
Skytte ignorava que, nessa mesma ocasião, em Estocolmo, estava a ocorrer uma
crise política, também com vertentes religiosa e diplomática. Por outro lado, a conversão de Lars Skytte não poderá ter
deixado de ser objecto de reflexões por
parte da Soberana, e de pesar, alguns anos depois, na sua decisão no mesmo
sentido.
Se a Rainha foi tolerante perante
a atitude de Lars Skytte, já não se pode dizer o mesmo do Residente português
em Estocolmo, João de Guimarães. Numa comunicação para Lisboa, ele criticava a
“capucharia” de Lars Skytte (isto é, a sua entrada na Ordem dos Franciscanos).
Acrescentava que “os luteranos que se
fazem católicos ficam mulatos na fé, cores brancas, cabelo crespo”, e previa,
sombrio, “desgostos nos há de dar esse caso””. Mas não houve problema de maior
para as relações bilaterais, apenas foi decidido, em Estocolmo, que o novo Residente em Portugal seria acompanhado de um
Capelão luterano, para evitar a repetição do sucedido.
Entretanto, Lars Skytte
professara, adoptando o nome de Laurentius a Divo Paulo, em português Lourenço
de S. Paulo, pelo qual o mencionarei a partir de agora. Até ao fim da sua longa
vida, e ainda que grande parte dela viesse a decorrer no estrangeiro, Lourenço
pertenceu à Província Portuguesa dos Franciscanos. Esteve algum tempo no
Convento de S. Francisco, em Alenquer, em cujo claustro havia (e, ainda hoje,
lá se encontra) um relógio de Sol, oferecido, um século antes, por Damião de
Góis. Lourenço terá, talvez, meditado sobre a vida desse humanista e diplomata,
que, entre outras missões visitara a Suécia e que, depois de longa permanência
no estrangeiro, foi acusado, ao regressar a Portugal, de ter sido aderido às
ideias protestantes, vindo a ser vítima da Inquisição.
Lourenço conheceu, possivelmente
ainda nos seus primeiros tempos de Lisboa, os irmãos Francisco de Santo
Agostinho de Macedo, Franciscano, e António de Macedo, Jesuíta; a sua amizade
com ambos, em particular com o segundo, é considerada um anel relevante na
cadeia de eventos que haveria de culminar na conversão da Rainha Cristina Eles
eram de uma modesta família da região de Coimbra, que deu outros filhos à
Igreja. Francisco, na sua época, alcançou grande reputação como professor de
filosofia; era de uma erudição excepcional e um temível polemista; integrou as
Embaixadas que D. João IV enviou a Paris e Roma, ainda em 1641; o exercício de funções diplomáticas poderá tê-lo aproximado do futuro Lourenço de S. Paulo,
o qual, como se viu, chegara a Portugal nos finais daquele ano de 1641. Mais
tarde, Frei Francisco de Macedo e
Lourenço de S. Paulo haveriam de se encontrar no Convento de S. Francisco da
Cidade, onde o primeiro leccionava e para onde o segundo foi transferido,
depois de ter estado em Alenquer. António de Macedo, 16 anos mais novo que seu
irmão Francisco, nasceu em 1612, sendo, pois, ligeiramente mais jovem que
Lourenço; não se sabe muito da primeira parte da sua vida, só que ingressou na
Companhia de Jesus, e que foi pregador em Portugal e, durante três anos, em
Mazagão, dando assistência espiritual à guarnição portuguesa.
Tendo a Paz de Vestefália de 1648
posto termo à Guerra dos 30 anos, da qual a Suécia saía muito engrandecida e
prestigiada, considerou-se não dever ser mais retardada a Coroação de Cristina.
A cerimónia teve lugar a 20 de Outubro de 1650. Portugal foi uma das três
potências que se fizeram representar nas cerimónias, enviando Embaixadas (sendo
as outras duas a França, principal aliada, e Brandeburgo, País de onde era
natural a Mãe da Rainha); tal mostra a importância que, em Lisboa, se atribuía
aos laços com a Suécia. A influência de Frei Francisco de Santo Agostinho de
Macedo, que acabara de ser nomeado, por D. João IV, cronista latino do Reino,
deve ter pesado na designação de seu irmão, Padre António de Macedo, para fazer
parte da comitiva do Embaixador João Pinto Pereira. Seguia como Capelão, mas,
por força das circunstâncias, envergando trajes civis e não exibindo o seu
estatuto religioso
Após a Coroação, sobre a qual
tanto o Padre Macedo como o Secretário, Gomes de Serpa, deixaram escritos, a
Embaixada permaneceu em Estocolmo, pois fora incumbida de negociar várias
questões com as autoridades locais, em particular as pretensões suecas de
comerciar com as colónias portuguesas. Como o Chanceler Oxenstierna,
interlocutor do Embaixador Pinto Pereira, estivesse ocupado com matérias mais
prementes, as conversações avançavam lentamente. Ora, meses depois, já em Março
ou Abril de 1651, durante uma ausência do Chanceler, a própria Rainha chamou a
si a condução das negociações com o Embaixador de Portugal. A língua utilizada
era o latim, na qual a Soberana era fluente, como em diversas outras, aliás.
Pinto Pereira que, alegadamente, não falava nenhum idioma senão o seu, fazia-se
sempre acompanhar de intérprete. Um dia, tendo adoecido o Secretário Gomes de
Serpa, que habitualmente desempenhava esse papel, Pinto Pereira trouxe consigo
o Padre Macedo. Não tardou que a Soberana, com a sua proverbial argúcia,
suspeitasse que Macedo, além de homem muito culto, era um sacerdote;
principiou, assim, cautelosamente, a sondá-lo em matérias filosóficas e
religiosas Com a cumplicidade que foi nascendo entre ambos, as conversas entre
Cristina e Macedo foram-se alongando, e o Embaixador começou a desconfiar que
Macedo cada vez mais ia excedendo a sua função de intérprete. O Jesuíta
desculpava-se, explicando ao Embaixador que, uma vez que a Rainha o interrogava
em questões de filosofia e literatura, ele, por cortesia, estava obrigado a
responder-lhe. O Padre Macedo notava que Cristina sempre se referia ao Papa com
respeito e mostrava interesse e nenhuma hostilidade em relação ao Catolicismo.
Para falarem mais à vontade, a Rainha e o jesuíta passaram a encontrar-se fora
da presença do Embaixador, mas as suspeitas deste iam-se avolumando quanto a
uma eventual deslealdade de Macedo. Se, para o Jesuíta o jogo era arriscado,
era-o ainda mais para Cristina. As conversas com o intérprete começavam a
causar murmúrios; por outro lado, Cristina temia que, com a conclusão das
negociações, a Embaixada viesse a deixar em breve Estocolmo. Urgia tomar uma
decisão e, um dia, em Agosto de 1651, a Rainha, como conta o próprio Macedo,
levou-o ao mais recôndito dos seus aposentos e, ao ouvido, disse-lhe ser ele o
primeiro Jesuíta que encontrara e, pelo que conhecia do seu carácter, julgava
que podia confiar na sua fidelidade e prudência. Pediu-lhe que providenciasse
no sentido de lhe serem enviados dois Jesuítas italianos cultos, sob o disfarce
de cavalheiros viajando pelo Mundo.
Cheio de júbilo, o Padre Macedo
solicitou, ao seu Embaixador, não se sabe com que pretexto, autorização para ir
a Hamburgo, a qual lhe foi recusada. Cristina ordenou-lhe, então, que partisse
de imediato, entregando-lhe uma carta para o Geral dos Jesuítas, um passaporte
por ela assinado, dinheiro e uma valiosa cadeia de ouro. Pinto Pereira
queixou-se do desaparecimento de Macedo à Rainha que fingiu ordenar buscas. O
Jesuíta, entretanto, embarcara para Lubeque, donde passou a Hamburgo, sendo aí
detido, por ordem de Pinto Pereira, que o acusava de roubo de papéis da
Embaixada. A exibição do passaporte permitiu ultrapassar o problema. Não
deixaram de correr boatos fantasiosos, acusando-o de ter desertado para o lado
dos espanhóis (estava-se em plena Guerra da Restauração) ou de se ter tornado
luterano e casado; mas o segredo de Cristina continuava bem guardado. Macedo
levantou fundos junto do judeu português Diogo Teixeira de Sampaio, que viria a
ser o principal banqueiro de Cristina, e prosseguiu a viagem para Roma, onde
chegou em finais de Outubro.
Piccolomini, o Geral dos Jesuítas
a quem a Rainha escrevera, tinha falecido entretanto, e foi o seu sucessor,
Nickel, quem recebeu o Padre Macedo. Este, complementando a carta, formulada em
termos compreensivelmente cautelosos, confirmou a intenção da Rainha de abraçar
o Catolicismo. Nickel, perante uma notícia de tal importância, consultou o
Secretário de Estado, Cardeal Chigi, futuro Papa Alexandre VII, designando
seguidamente os Padres Malines e Casati, para se dirigirem a Estocolmo, em
conformidade com o que a Soberana
solicitara.
Antes de prosseguir , entendo salientar que esta
narrativa, repetida e aceite, em termos gerais, desde há mais de 300 anos, me
causa alguma estranheza e levanta questões de difícil ou, mesmo, de impossível
resposta. Antes de mais, estaríamos perante uma sucessão de acasos ou, pelo
contrário, perante o desenrolar de um plano? E como explicar a atitude do
Embaixador Pinto Pereira? O que se segue mais não pretende ser que o articular
de algumas suposições.
Lourenço de S. Paulo poderia ter
recebido de, Estocolmo, e confidenciado aos seus amigos Francisco e António de
Macedo, indicações sobre uma eventual abertura e interesse da Rainha Cristina
pelo Catolicismo. Quando foi designado um Embaixador para representar o Rei de
Portugal nas cerimónias da Coroação, António de Macedo ter-se-á oferecido para
seguir, na qualidade de Capelão, tendo contado com o apoio do seu influente
irmão Francisco. Movê-lo-ia o zelo missionário e, também, a curiosidade; como
trunfo valioso, dispunha de abundantes informações sobre a Suécia e conselhos
sobre como ali actuar, que Lourenço de S. Paulo lhe terá proporcionado. António
de Macedo teve, forçosamente, de receber
permissão dos seus superiores na Companhia de Jesus, os quais, de resto, devem
ter encarado com expectativa esta oportunidade rara de penetração, por um
Jesuíta, sob protecção diplomática, num Reino de onde eles estavam banidos.
Encarariam, por certo, a missão do Padre Macedo
como meramente exploratória pois, nem mesmo nos seus sonhos mais
optimistas, lhes teria ocorrido que dela viesse a resultar a conversão da
filha de Gustavo Adolfo.
Quanto a Pinto Pereira, já no fim
do Séc. XiX o Barão Carl Bildt, diplomata e historiador sueco, pôs em causa o
relato tradicional de que ele não falaria outra língua além do português. Com
efeito, tal não seria de todo plausível. O recurso a um intérprete poderia
servir vários propósitos, entre os quais o de facilitar, a seu tempo, uma
aproximação de Macedo à Rainha. Tal Isso levar-nos-ia a admitir que a doença de
Gomes de Serpa teria sido meramente diplomática e fazendo parte de um plano,
conhecido e, numa primeira fase, apoiado pelo Embaixador.
Mas, por que razão, tendo
colaborado durante algum tempo nessa comédia, Pinto Pereira mudou de atitude?
Terá sido quando percebeu que a Rainha e o Jesuíta se encontravam fora da sua
presença, receando que Macedo estivesse a ser desleal para com ele? É
extraordinário que o Embaixador e o seu Capelão, entre os quais deveria haver
uma relação de confiança, não tivessem
discutido um assunto de tal importância; ou, então, que o tenham feito , mas
guardando posições antagónicas.
Reflectindo, durante longos meses
em Estocolmo, o Embaixador ter-se-á, talvez, apercebido dos riscos de uma
aventura (i.e. um plano para converter a Rainha) que, se fosse mal sucedida ,
seria fatal para as relações entre Lisboa e Estocolmo e, se
fosse bem sucedida, poderia afastar Cristina de Portugal e aproximá-la
de Espanha. Se foi isso o que o Embaixador pensou, o futuro não muito distante
viria a dar-lhe razão.
Já para o Padre Macedo, o dilema
era entre ser leal ao seu Embaixador e aos interesses do Estado português, ou
leal aos objectivos da Companhia de Jesus e aos interesses da Igreja Católica;
como seria normal nas circunstâncias, optou pelos últimos. Sublinhe-se que o
Padre António de Macedo permaneceu em Roma, exercendo as funções de
Penitenciário de S. Pedro, só regressando a Portugal vinte anos depois. O cargo
que lhe foi confiado em Itália indicia o reconhecimento do Vaticano pelo
sucesso da sua missão junto da Rainha Cristina; já a demora em voltar ao seu
País pode, permito-me especular, ter a ver com a necessidade de deixar passar
tempo, para fazer esquecer as críticas de que
a sua atitude poderia ter sido aqui objecto.
Mas pode ser simplista colocar
como opostos, no que toca à conversão de Cristina, os interesses do Estado
português e os da Igreja Católica, Com efeito, o Infante D. Teodósio ( de cuja educação, recorde-se,
esteve encarregado o Padre António Vieira) teria escrito um livro intitulado “Macareopolis” ou “Cidade
Santa", destinado à conversão da Rainha Cristina, obra corrigida por Frei
Francisco de Macedo e levada para a Suécia pelo Padre António de Macedo.
Afigura-se-me, que, em 1650, com apenas 16 anos de idade, o Príncipe seria
demasiado jovem para ter composto um tal livro, mas, de qualquer modo, aquelas
indicações não só favorecem a tese de
que teria havido um plano, como apontam no sentido de que, além da Companhia de Jesus, nele teria havido
o envolvimento de figuras cimeiras do Estado.
Entretanto, em Estocolmo, pela
mesma altura em que o Padre Macedo partiu (Agosto de 1651), a Rainha informou
os membros do Conselho de Estado da sua vontade de abdicar. Havia anos que
Cristina vinha ponderando uma tal decisão; agora, ela tornava-se inevitável,
perante a perspectiva da conversão ao Catolicismo, embora ela mantivesse
secreta a sua intenção, revelando-a apenas a um número muito reduzido de
confidentes.
Por uma extraordinária
coincidência, logo em Setembro de 1651, o Jesuíta Francken, Capelão do
Embaixador de Espanha em Copenhague, recebeu, casualmente, informações sobre um
possível interesse de Cristina pelo Catolicismo. Com autorização do Embaixador
Rebolledo, aliás católico militante, Francken dirigiu-se, incógnito, a
Estocolmo e conseguiu falar com a Rainha. Ela mostrou-se cautelosa, mas
percebeu que Francken lhe podia ser útil . Com efeito, uma das questões que a
preocupavam era encontrar um Soberano católico, com cujo apoio ela pudesse
contar, depois da abdicação. O Embaixador Chanut deixara-lhe claro que Luís XIV
não poderia desempenhar tal papel, para não afectar a aliança entre a França e
a Suécia . Para a Espanha, a posição punha-se de forma diferente. Francken, em diversas viagens que
efectuou, entre Copenhague e Estocolmo, actuou como mensageiro entre Cristina e
as autoridades espanholas, tendo a reacção de Filipe IV sido muito positiva.
Finalmente, em Fevereiro de 1652,
os Padres Casati e Malines chegaram a Estocolmo, em conformidade com o que a
Rainha havia pedido, por intermédio do Padre António de Macedo. Ilustrando bem
o secretismo que rodeava os seus projectos, assinale-se que, só um mês antes, a
Soberana revelara a Francken o seu encontro com Macedo e o que do mesmo
esperava. Os preparativos para a conversão e para a abdicação foram
prosseguindo em paralelo, mas só a 6 de Junho de 1654, Cristina abdicou, em
Upsala, numa cerimónia que impressionou os presentes. Semanas antes, fizera
saber, por carta entregue ao Embaixador português, Silva e Sousa, que deixara
de reconhecer o Duque de Bragança como Rei de Portugal, título que ela, segundo
afirmava, considerava pertencer a Filipe IV de Espanha; assim, Silva e Sousa
não tinha motivo para permanecer em Estocolmo. Tratava-se, evidentemente, de um
gesto da Rainha para agradar aos espanhóis, mas sem grande alcance prático,
tendo, aliás, o próprio Chanceler tranquilizado
Silva e Sousa. Mas, de qualquer modo, este gesto de Cristina veio dar
razão aos que tivessem temido que a sua conversão não seria favorável a
Portugal.
Nos fins de Junho, a Rainha
Cristina deixava a Suécia, iniciando uma demorada viagem até Roma. Em Hamburgo,
alojou-se na mansão de Diogo Teixeira de Sampaio. Meses depois, na véspera de
Natal, abjurou do Protestantismo e fez a sua primeira profissão de fé católica,
solenemente, mas em privado, em Bruxelas, na Residência do Governador dos
Países Baixos espanhóis. Apenas em Outubro do ano seguinte, em Innsbruck, fez
profissão de fé pública e, enfim, dias antes do Natal, chegou a Roma.
Voltemos, agora, a Lourenço de S.
Paulo. Em 1653, enquanto a Rainha se preparava para abdicar, ele solicitara,
com insistência, e obtivera dos seus superiores, autorização para ir à Terra
Santa, onde ficou quase dois anos, na Custódia Franciscana. Em 25 de Janeiro de
1655, Festa da Conversão de S. Paulo, concluiu formalmente a sua obra
“Peregrinatio Sancta”, que contém dados autobiográficos, e dedicou a à Rainha
Cristina. Chegara-lhe, evidentemente, a notícia da abdicação, mas não poderia
ter recebido a da profissão de fé em Bruxelas, ocorrida apenas uns dias
antes. Não excluo que ele mantivesse
contacto epistolar com o Padre António de Macedo, que permanecia em Roma, e que
este lhe confidenciasse informações que ali fosse colhendo sobre os projectos
de Cristina. Em Junho, Lourenço deixou a Terra Santa e dirigiu-se para Roma,
onde chegou em Setembro, ainda antes da profissão de fé pública da Rainha, em
Innsbruck.
Supõe-se que, como seria natural,
ele tenha encontrado a Rainha, quando ela chegou a Roma mas, depois, voltou a
Portugal. Pensa-se que, muito possivelmente, em 1658 (embora Fernando da
Soledade mencione 1669) já estaria, de novo, em Itália. Foi Confessor de
Cristina, durante algum tempo, apontando-se, para tal, os anos de 1668 a
1676.Não sei por que terá deixado essas funções, mas talvez o entendimento
entre eles não fosse perfeito, como parece depreender-se de uma frase numa
carta escrita por Cristina, já em 1666
ao seu mais íntimo amigo, o Cardeal Azzolino (“Pour le Père Laurent, je ne sais
ce qu’il dit, ni ne le veux savoir”). Mas Frei Fernando da Soledade transmite a
versão de que, além de Confessor, Lourenço esteve encarregado da administração
da Casa da Rainha; esta, segundo alguns, teria movido a sua influência para que
ele fosse feito Bispo e com expectativa de ser elevado ao Cardinalato, o que
Lourenço, como seria de prever, dada a vida que abraçara, não aceitou. Morreu
em Roma, em 1696, sete anos depois da Rainha.
Refira-se que Cristina pretendera
nomear seu Confessor o Padre António Vieira, que declinou. Ele fora,
relutantemente e por ordem do Geral dos Jesuítas, Pregador da Rainha,
conhecendo-se textos que compôs nessa qualidade, como “As cinco pedras de
David” e “ As lágrimas de Heráclito”. Em 1675, porém, regressou a Portugal.
Algum tempo antes, também o Padre António Macedo, cujas conversas com a Rainha
haviam sido decisivas e que se encontrava em Roma há 20 anos, voltou para
Lisboa, tendo sido Reitor do Colégio de Évora e Prepósito da Casa de S. Roque,
onde morreu em 1695 Seu irmão Francisco, Professor em Pádua e Cidadão Honorário
de Veneza, dialogou longamente, em Roma, com Cristina, que teria mesmo escrito
a D. João IV (que ela, evidentemente, voltara a reconhecer como Rei de
Portugal…) recomendando- lhe fosse oferecida uma Diocese àquele Franciscano..
E parece-me adequado terminar,
lendo um soneto em espanhol, precisamente de Frei Francisco de Macedo,
intitulado “Christina en Roma”:
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