Confesso que não conhecia o romance Le Dernier Combat du Captain Ni'mat, nem, naturalmente, o seu autor, o escritor marroquino Mohamed Leftah (1946-2008). Cheguei a ele por uma referência noutra obra.
Duas palavras sobre o autor: Mohamed Leftah nasceu em Settat, estudou em Casablanca e viajou depois para Paris, a fim de ingressar numa escola de engenharia de obras públicas. Viveu os acontecimentos de 1968 e regressou a Marrocos em 1972, especializando-se em informática, actividade que passou a exercer. Entretanto, tornou-se jornalista literário do "Matin du Sahara" e do "Temps du Maroc", onde começou a colaborar no princípio dos anos 90.
Em 1992, publicou Demoiselles de Numidie, nas Éditions de L'Aube. A sua obra, escrita originalmente em francês, viria a ser, todavia, editada integralmente pelas Éditions de la Différence, a saber:
2006 - Au bonheur des limbes; Ambre ou les Métamorphoses de l'amour; Une fleur dans la nuit suivi de Sous le soleil et le clair de lune e Demoiselles de Numidie (reedição)
2007 - L'Enfant de marbre e Un martyr de notre temps
2009 - Une chute infinie e Le Jour de Vénus
2010 - Hawa e Récits du monde flottant
2011 - Le Dernier Combat du Captain Ni'mat
Mohamed Leftah |
Mohamed Leftah morreu no Cairo, onde residia desde 2000, em 20 de Julho de 2008.
Passemos agora ao livro, que recebeu, em 2011, o Prix de La Mamounia, destinado à promoção da literatura marroquina de expressão francesa.
Está dividido em três partes, cada uma inserindo em epígrafe versos de Baudelaire.
Na primeira, "La beauté indécidable", recorre ao Hymne à la beauté:
Que tu viennes du ciel ou de l'enfer, qu'importe,
Ô Beauté! monstre énorme, effrayant ingénu!
Si ton oeil, ton souris, ton pied, m'ouvrent la porte
D'un Infini que j'aime et n'ai jamais connu.
Na segunda, "L'offrande nubienne", cita Le Voyage:
Verse-nous ton poison pour qu'il nous réconforte!
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?
Au fond de l'Inconnu pour touver du nouveau!
Na terceira, "Kom Ombo", ainda em Le Voyage:
Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre!
Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!
Este romance de Leftah, publicado postumamente como a maior parte da sua obra, tem por cenário a cidade do Cairo, mais concretamente a zona elegante de Maadi, onde reside o capitão Ni'mat, oficial reformado da força aérea egípcia. O capitão Ni'mat, como muitos dos seus colegas, fora irradiado das fileiras após a derrota pungente de 1967, passando agora uma parte do tempo na piscina do clube local, em conversas fúteis com ex-camaradas de armas igualmente reformados, alguns dos quais, por não terem sofrido a humilhação daquela derrota, atingiram o posto de general.
Indisponível a piscina dos jovens, devido a obras, vêm estes ao princípio da tarde utilizar a piscina dos adultos, provocando grande agitação e impedindo de tomar banho os clientes habituais, que então abandonam o recinto. Um fim de tarde, em que se deixara ficar na cadeira e adormecera, e sendo na altura a única pessoa na piscina, tem um sonho: vê sair da água, todo nu e resplandecente, Islam [o nome, ainda que comum entre os árabes, não deve ter sido escolhido por acaso] o seu jovem criado núbio, natural da aldeia de Kom Ombo, entre Luxor e Assuão.
Templo greco-romano de Kom Ombo |
Nessa noite, o capitão Ni'mat recordou-se do sonho, levantou-se e dirigiu-se instintivamente à cabana ao fundo do jardim onde Islam estava a dormir. Contemplou o adolescente, admirou-lhe o sexo e ficou por um momento simultaneamente fascinado e horrorizado. «En regagnant, lentement, l'intérieur de la villa, il ne se demandait plus si la beauté qui venait de le sidérer était une épiphanie divine ou une tentation satanique, mais tout simplement quels bouleversements sa révélation, si tardive mais foudroyante, allait introduire dans sa vie.»
No dia seguinte, acordou tarde e encontrou um bilhete da mulher, Mervet, que já tinha saído. Depois de beber o seu sumo de manga chamou o criado para, como habitualmente, o massajar (o capitão Ni'mat levara-o algumas vezes ao clube para aprender a arte com Abou Hassan, que exercia numa pequena sala junta ao sauna e aos duches da piscina). Achando-o sujo mandou-o tomar um banho e mudar de roupa. Depois, ordenou-lhe que o massajasse, mas ao contrário do costume, tirou o slip e quis também massagem nas nádegas, o que Islam executou, pensando que na sua aldeia alguém que pedisse tal coisa seria imediatamente tratado de khawala.
Cairo - Hammam Bishri |
Quando saiu para passear o cão, Islam encontrou um velho núbio muito considerado no bairro a quem contou, apesar do capitão lhe ter recomendado segredo, o pedido do patrão. O Tio Samir confortou-o, dizendo-lhe que existia uma glândula sob a bexiga chamada próstata que se tornava sensível com a idade, o que tornava explicável o desejo do capitão. Islam encontrou ainda um seu conterrâneo a quem igualmente relatou o episódio [a proverbial indiscrição dos jovens árabes]. O amigo, Mustapha, confidenciou-lhe então que outro rapaz, Abdou, lhe dissera que o respectivo patrão começara assim e acabara por desejar ser penetrado.
Nessa mesma tarde, o capitão Ni'mat dirigiu-se à piscina e procurou Abou Hassan, com cinquenta anos acabados de fazer mas ainda em muita boa forma física. Como de costume, deitou-se no divã e entregou-se aos cuidados do massagista. Mas desta vez, e pela primeira vez, o austero Abou Hassan, com a cumplicidade do capitão, desenvolveu outras técnicas que satisfizeram o seu cliente e o levaram a pensar no criado núbio.
Mais um dia, e Ni'mat resolveu utilizar os préstimos de Islam até às última consequências. Quando este lhe foi proporcionar a massagem quotidiana, o capitão entregou-lhe um preservativo e ordenou-lhe que o aplicasse. Islam nunca vira tal coisa, habituado como os rapazes da sua aldeia, quando atingem a puberdade, a práticas zoófilas e depois à masturbação, mas obedeceu e sodomizou o patrão.
A partir daí estabeleceu-se entre Ni'mat e Islam uma cumplicidade que foi crescendo de dia para dia. E, com o tempo, Mervet foi-se apercebendo de uma transformação do marido, quer quanto aos cuidados que punha na sua apresentação, quer quanto a algumas familiaridades estranhas com o criado. Recusava-se, porém, a admitir o que suspeitava, e desejando, a ser verdade que o marido mantinha tal tipo de relações, que fosse ao menos com um homem da sua posição e jamais com um doméstico.
Cairo - Hammam Margush |
A realidade impôs-se um ano mais tarde. Uma amiga confiou a Mervet que o seu jovem criado Mustapha lhe confidenciara que o capitão lhe fizera propostas "indecorosas", que ele havia recusado. E que o mesmo, falando com Islam, que era da sua aldeia, este lhe dissera que desde há um ano mantinha uma relação com o patrão.
A amiga aconselhou Mervet a ter calma e, como estavam em vésperas do mês de Ramadan, a propor ao marido uma peregrinação a Meca. Curiosamente, foi Ni'mat que sugeriu à mulher fazerem uma 'Omra à cidade santa muçulmana.
[Esclarecemos, porque o autor não o refere, que a 'Omra, ou pequena peregrinação, é efectuada fora do mês da grande peregrinação, o Hajj, que se realiza no décimo segundo mês do ano islâmico, dhû al-Hijja]
A ideia de realizar esta peregrinação, apresentada à mulher como tratando-se de uma experiência espiritual (apesar do capitão ser agnóstico) surgira, principalmente, pelo facto de Ni'mat começar a ficar inquieto com as consequências graves que poderiam advir da sua incessante procura de novos parceiros para satisfazer os seus desejos sexuais. Voltara a assediar o já citado Mustapha, que rejeitara indignado as suas propostas, relatando o facto a Islam. E ainda não há muito tempo a polícia fizera uma busca num dos restaurantes discotecas do Nilo prendendo dezenas de pessoas que acusou da prática de sodomia.
Restaurante-discoteca "Queen Boat" |
[Trata-se de um episódio real. Em 11 de Maio de 2001, a polícia egípcia prendeu 52 jovens na discoteca flutuante, discretamente gay, "Queen Boat", um barco atracado na margem esquerda do Nilo, frente ao Hotel Marriott. Cinquenta foram acusados de "deboche inveterado" e "comportamento obsceno", crimes previstos no artigo 9c, da Lei nº 10, de 1961, relativa à Luta contra a Prostituição. Dois foram acusados de "desprezo pela religião", crime previsto no artigo 98f do Código Penal. Todos se declararam inocentes. Após um longo processo, com repercussões internacionais, uma parte dos homens foi condenada e outra parte absolvida]
«L'homosexualité était considerée comme une perversion extrême, grave, mettant en caue les fondements de la religion et de la société, une diffamation insultante pour la virilité des Égyptiens. Certains des prévenus furent accusés de surcroît, dans un amalgame surréaliste, des délits de satanisme et de collaboration avec Israël!»
A partida do casal para Meca determinou o encerramento temporário da moradia, tendo o criado Islam ficado aos cuidados de Mustapha que, tendo-se tornado membro da Irmandade Muçulmana, resolveu afastar o amigo da senda do pecado e reencaminhá-lo no caminho certo. Debalde, pois apesar de acompanhar Mustapha diariamente à mesquita, Islam não deixava de pensar nos momentos de prazer com o patrão.
Regressado da Cidade Santa, Ni'mat voltou a encontrar-se com o criado, para grande satisfação de ambos (a reconversão ensaiada por Mustapha não resultara). Uma noite, Mervet surpreendeu-os e tal facto provocou-lhe uma profunda depressão e levou-a a um mutismo absoluto, ficando insensível às tentativas de explicação do marido. A insustentabilidade da situação obrigou o capitão a despedir Islam que, também ele incapaz de continuar ao serviço na villa, aceitara uma oportuna proposta de emprego, noutra zona do Cairo, no elegante bairro de Zamalik. A despedida [aliás provisória, como se calcula] foi emocionante.
Nesta fase da estória, Mohamed Leftah coloca Ni'mat a escrever um diário íntimo, o que permite ao autor tecer pertinentes considerações históricas e filosóficas sobre a homossexualidade em geral e, especialmente, entre os árabes.
Contudo, as provações maiores para Ni'mat estavam ainda para chegar. Uma manhã, a nova empregada, analfabeta, avisou-o de que alguém escrevera algo a vermelho na porta da residência. Era esta a mensagem: «Nous ne voulons pas de khawala dans notre quartier.» Mandou-a apagá-la e que nada dissesse à mulher.
Finalmente, Ni'mat e Mervet acordaram divorciar-se e o capitão, mais por razões pessoais do que materiais, resolveu ir viver para um modesto apartamento de um bairro popular, Al Fajjala. Era agora considerado um pestífero e não podia continuar a evoluir no seu meio social. «Je n'avais pas seulement aliéné ce que constitue aux yeux de mes compatriotes "l'essence" d'un homme, à savoir sa "virilité", j'avais aussi trahi ma classe, ses privilèges et l'aura d'autorité qui la nimbe, pour des amours "fangeuses" avec un domestique.» Logo que instalado, não conseguiu Ni'mat resistir aos seus impulsos amorosos e decidiu telefonar a Islam [ainda bem que foram inventados os telemóveis]. Tinha considerado que sem a companhia do criado e incapaz de suportar a solidão, só lhe restaria o suicídio. Islam veio na sexta-feira, dia de descanso semanal dos egípcios e passaram a tarde fazendo amor, enquanto os muezzins apelavam à oração.
O núbio Bilal, frente ao Hotel Old Cataract, em Assuão (2003) |
A visita semanal não satisfazia, porém, o capitão, que já não concebia separar-se do seu bem-amado. Assim, um dia disse-lhe:
- «Habibi, chéri, tu ne trouves pas que c'est vraiment trop peu de ne nous voir que le vendredi, le jour de ton congé hebdomadaire?»
- «Que faire, captain? Je n'ai pas un moment à moi les autres jours, je ne cesse de trimer de l'aube jusqu'à la dernière prière du soir.»
La réponse fusa toute seule dans ma bouche, simple, claire, nette:
- «Tu n'as qu'à venir vivre ici avec moi.»
Ma proposition étonna d'abord Islam, il réfléchit un instant, puis me fit remarquer:
- «Mais nous allons éveiller à nouveau les soupçons et vous n'avez vraiment pas besoin, captain, d'un surcroît d'ennuis.»
- «Nous n'aurons pas d'ennuis si tu n'indiques à personne l'endroit où tu travailles, ni la nature de notre liaison. Pour ma part, ajoutai-je la voix tremblante, je ne ferai plus de propositions à quiconque, car je sais désormais que tu es et tu seras jusqu'à ma mort mon unique amour.»
Dito e feito. Islam transferiu-se para o apartamento do capitão e passaram a viver juntos. Para evitar constrangimentos, Ni'mat disse ao ex-criado que passasse a tratá-lo pelo nome próprio e ele mesmo decidiu rebaptizar Islam. Lembrando-se da graciosidade do templo de Kom Ombo (aldeia donde o rapaz era natural) que vira uma vez navegando no Nilo, resolveu passar a chamá-lo pelo nome da sua terra.
O idílio não foi duradouro. Os inquisidores estão sempre à espreita. Algum tempo depois, apareceu de novo na porta do modesto refúgio, a letras de sangue, esta mensagem: «Si vous ne quittez pas ce quartier les deux khawalas on vous fera la peau.»
Desta vez Islam sentiu-se verdadeiramente ameaçado e achou prudente regressar à aldeia natal. O capitão preferiu permanecer em Al Fajjala, considerando que nada já tinha a perder. Os perseguidores tinham atingido os seus fins. O anjo núbio não voltou.
Três anos passados, no dia do seu 65º aniversário, o capitão anotou no diário que festejara a data na companhia de um gato tão decrépito como ele, que recolhera na rua.
*****
Esta a história que Mohamed Leftah conta no seu romance e que aqui exaramos esquematicamente em traços largos. Importa dizer que o livro está escrito num francês de fino recorte literário e que o texto convoca uma abundância de evocações culturais que testemunham o elevado nível intelectual do autor. Mesmo as cenas mais íntimas (que, por desnecessário, nos abstivemos de referir) são descritas com inultrapassável elegância.
Este livro é uma pedrada no charco da hipocrisia moral dos árabes em matéria sexual, aliás compartilhada pelos povos cujas civilizações foram espiritualmente (e materialmente) tuteladas pelas religiões monoteístas (católicos e judeus começam agora a sacudir o estigma, mas entre protestantes e ortodoxos as coisas ainda são complicadas). No mundo muçulmano, os homens, oficialmente, só podem ter relações sexuais com mulheres, maxime com outros homens se assumirem a posição activa e desde que o assunto permaneça discreto. A realidade, porém, é bem diferente, como é comprovado por quem com eles convive e esta obra perfeitamente ilustra.
3 comentários:
Excelente post. Um livro a ler sem falta
Interessante como o Egipto mudou. Sabe-se que no deserto, ainda no final da primeira metade do século XX, os homens mais velhos escolhiam homens mais jovens como parceiros e as mulheres eram consideradas perversas. Sabe-se ainda que noutros pontos do Próximo e Médio Oriente havia costumes idênticos, e tudo indica que até em pontos remotos do Afeganistão continuam a manter-se estas tradições.
A análise do fundo creencial da Humanidade revela que no passado as relações homoafectivas e homoeróticas masculinas terão sido comuns e importantes no desenvolvimento de várias sociedades, e no desenvolvimento do indivíduo. Na primeira metade do século XX tribos da Papua Nova-Guiné ainda mantinham costumes ancestrais: o sexo pelo prazer, só entre homens, e com mulheres, apenas para fins reprodutivos.
Voltando ao Egipto, tanto os ingleses como mais tarde as autoridades do Cairo, tudo fizeram para erradicar as relações homoafectivas e homossexuais da cultura dos povos do deserto, e para que esses costumes fossem olvidados.
Na Europa, bem cedo, foram erradicados os hábitos sexuais do Celtas, primeiro pela cultura de Roma, e mais tarde pela imposição do Cristianismo.
Seria interessante que a Humanidade resgatasse esse fundo creencial comum perdido com a imposição dos dogmas «exotéricos» das grandes religiões.
Os egípcios apreciam muito as relações homófilas. Praticam entre eles a coberto do segredo patriótico e não se coíbem, se têm intimidade com o parceiro, de fazer tudo o que lhes apetece. Com os estrangeiros é um pouco diferente. Implantado o turismo sexual no país, e sendo baixíssimo o nível de vida, aproveitam para pedir um donativo em troca do prazer proporcionado e que também serve de justificativo moral. Com os estrangeiros tentam desempenhar só o papel de activo mas se uma ligação mais duradoura se estabelece, logo prodigalizam outras facilidades. Considerações válidas tanto para muçulmanos como para coptas. No fundo, não acreditam que é pecado, mas apenas objecto da censura social e memo isso, agora, cada vez menos. Consequências da globalização.
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