Com a queda do muro de Berlim e o consequente desmoronamento da União Soviética, cujas consequências negativas continuam a fazer sentir-se no mundo ocidental, como se referirá abaixo, muita gente do Leste passou a viajar para a Europa "comunitária", ou a salto ou já legalmente, depois dos seus países terem aderido à União. A imigração dos cidadãos orientais, à procura de melhor vida no "paraíso económico liberal" tem-se processado por vagas, conforme a proveniência e a época, tendo Portugal registado um espantoso afluxo de ucranianos a partir de meados dos anos 90 do século passado, obviamente. Ao nosso país, com representações menos significativas de outras origens, chegaram também, designadamente, russos, romenos e búlgaros.
Esta corrente migratória de carácter diríamos que permanente, pois continua a verificar-se, embora hoje com menor expressão, deveu-se não tanto à sedução que o Ocidente, com a sua propaganda e a sua sociedade de consumo provocou nos povos dos países ex-comunistas, como a uma causa mais prosaica: a penúria, e mesmo a fome, a que se viram reduzidos, na sua maior parte, os cidadãos de Leste, com a queda dos regimes socialistas leste-orientais e soviéticos. De facto, e com todas as críticas que possam ser endereçadas a esses regimes, nomeadamente a excessiva estatização das actividades públicas, e mesmo das privadas, devido à vigilância permanente dos censores encartados, os países comunistas facultavam aos seus cidadãos, gratuitamente ou a preços simbólicos, alojamento, transportes, saúde, educação, protecção na velhice e emprego garantido, ainda que muitas vezes longe das vocações ou habilitações dos candidatos. Não havia liberdade política, é certo, fora dos aparelhos partidários (e às vezes mesmo dentro destes) nem democracia formal no estilo ocidental, mas acontece que no Ocidente esta democracia é cada vez mais formal e progressivamente menos substantiva, ao ponto de nos interrogarmos se ainda é democracia ou antes uma governança dos poderes económicos disfarçados por detrás das chamadas instituições democráticas.
Porque se vive mal sem liberdade mas não se vive de todo sem pão, os europeus de Leste começaram a afluir ao Ocidente, deslumbrados por uma falsa miragem de um trabalho remunerado, o que não se verificava nos seus países, a quem havia sido prometido um nível de vida muito superior ao dos regimes derrubados, promessas até hoje naturalmente não cumpridas.
Sendo grande parte dos imigrantes rapazes, em geral de boa apresentação física (os regimes comunistas cuidavam do corpo), a sua chegada ao nosso admirável mundo novo provocou um sobressalto cívico nos cidadãos europeus apreciadores de jovens bem apessoados. Como os recém-chegados dificilmente encontraram trabalho, a não ser em funções habitualmente rejeitadas pelos autóctones e mesmo assim mal remuneradas, acharam que o único capital de que verdadeiramente dispunham era o seu próprio corpo, que lhes renderia mais do que um trabalho penoso ou, em acumulação de funções, lhes proporcionaria um adicional aos seus proventos laborais. E, uns por vocação, outros por novidade, outros inicialmente contrariados mas posteriormente convencidos, foi o que fizeram. Não faltaram, obviamente, cidadãos locais, em especial nos meios artístico e literários, mas não só, para auxiliar estes jovens "desprotegidos" e até para os acolher em suas casa. Abria-se uma nova era no normal relacionamento homossexual na Europa Ocidental: a prostituição masculina de Leste -, ainda que o termo prostituição seja aqui redutor, já que, para lá dos interesses materiais, se forjaram verdadeiras amizades. Importa ter presente que as classificações abstractas são sempre redutoras.
Nasceram assim as redes de prostituição masculina de cidadãos do leste europeu na Europa Ocidental. Deve acrescentar-se que esta imigração "exótica" não foi uma novidade absoluta. De há muito que as comunidades árabes - e turcas - na Europa eram alvo do recrutamento sexual de "senhores de posição". Portugal, devido à sua localização periférica, não foi bafejado por esse "sopro islâmico" mas países como a França, o Reino Unido, a Alemanha e a Itália, para citar apenas alguns, beneficiaram dessas juventudes mediterrânicas do Sul. Na segunda metade do século XX, todo o cidadão homossexual francês que se prezasse, com destaque para os intelectuais, mantinha uma relação íntima com um árabe - maxime um maghrebino - conhecendo eu uniões que duram há décadas, pois, muito antes do PACS, elas constituíram verdadeiros casais avant-la-lettre na vigência da V República.
Mantendo-se no universo gay ocidental uma preferência pelos árabes e também pelos africanos sub-saharianos (nos países que possuíram colónias na África Negra), a chegada dos homens do Leste ao "mercado" do sexo introduziu uma perturbação na convivência inter-cultural vigente, já agitada pela chegada ao Velho Continente de centenas de milhar de brasileiros, culturalmente disponíveis Não é propriamente correcto falar de "mercado" quando nos referimos às gentes da Europa Oriental, se atendermos que as relações que se estabeleceram foram, na maioria das vezes, mais na base da amizade (ainda que esta não dispense uma ajuda, um apoio a quem chega a um país que lhe é totalmente estranho), do que na do negócio tout court, como é mais condizente com a cultura eslava, sem que isso faça esquecer que também existem redes mafiosas para as quais a exploração do sexo é uma actividade meramente comercial, quando não mesmo uma forma de proceder a chantagens e extorsões.
Vem tudo isto a propósito do filme Eastern Boys, estreado anteontem em Paris, com argumento e realização de Robin Campillo.
Daniel Muller, um quinquagenário de boa posição, que costuma observar os grupos de rapazes russos, polacos, romenos, que vagueiam junto à Gare de l'Est, interessa-se por um deles, Marek, com quem estabelece conversa. Rapidamente o jovem vai a sua casa, que começa a frequentar, até ao (inevitável ?) assalto dos amigos ao apartamento. O que se segue será visto no filme.
O realizador, que projectara um filme sobre um capacete azul português, vivendo num barracão abandonado no sudeste da França, e que mantinha relações sexuais tarifadas com os seus clientes, acabou por optar por esta longa-metragem, que é também uma metáfora da globalização sexo-cultural.
Para melhor elucidação do leitor, transcreve-se o artigo de Nicolas Bardot, em Film de Culte:
«Ce sont des garçons venus de l'Est : des Polonais, des Russes,
des Roumains... Les plus âgés
ont peut-être 25 ans. Les plus jeunes, on ne sait pas. Ils traînent du
côté de la gare de l'Est. On peut penser qu'ils se prostituent. Muller, un
homme discret, la cinquantaine, a repéré l'un d'entre eux, Marek. Alors, un
jour, il se lance et va lui parler. Le jeune homme accepte qu'ils se revoient le lendemain. Chez Muller. Et
le lendemain lorsqu'on sonne à sa porte, Muller n'a aucune idée du piège dans
lequel il s'apprête à tomber.
DONJONS
ET DRAGONS
Réalisateur des Revenants il y a près de dix ans (film qui a plus
tard donné naissance à la série télévisée du même nom), Robin Campillo (lire notre entretien) est jusqu'ici plutôt connu comme un collaborateur de Laurent Cantet
(monteur et co-scénariste de L'Emploi du temps, Vers le sud ou Entre
les murs). Avec Eastern Boys, primé à la dernière Mostra de Venise,
Campillo signe un second long métrage aussi ambitieux que réussi. Sur
l'immigration et l'intégration vues récemment par le cinéma français, on a par
exemple eu droit à Welcome de Philippe Lioret, avec ses gentils très dignes et ses méchants très
veules. Un film poli qui finissait par être davantage dédié à la bonne
conscience du personnage incarné par Vincent Lindon qu'à son sujet initial. Eastern
Boys, c'est tout l'inverse. Le réalisateur ne donne pas la main au
spectateur pour l'éduquer, ne cherche pas à faire un film confortable. Si l'on
devait rapprocher Eastern Boys d'un autre long métrage, on penserait au
Suédois Play, autre film qui explore certes des problématiques légèrement différentes
(notamment celle du racisme) mais qui a comme point commun le choix d'envoyer
valser les préjugés et le manichéisme, de ne pas faire du cinéma didactique ou
du cinéma pantoufles; Eastern... comme Play proposant du cinéma
qui gratte et qui n'impose pas un système de pensée. L'un comme l'autre ont
tout pour être compris de travers - et c'est précisément ce qui fait leur
grande richesse.
Car les situations, comme les personnages, sont complexes. Comme ce film
qui mélange les genres avec un naturel confondant, débutant façon documentaire
placé en vigie de Gare du Nord (le film ridiculise en une dizaine de minutes le récent long métrage façon télénovela de Claire Simon), glissant au home invasion
(séquence gonflée et assez hallucinante) puis à la romance improbable et au
thriller en Hôtel Ibis. Si cette dernière partie est peut-être un peu moins
réussie, les autres parviennent à déjouer les attentes avec justesse tout en
n'oubliant jamais de faire du cinéma. Olivier Rabourdin, vu notamment dans Des
hommes et des dieux, excelle dans un rôle à plusieurs facettes: quinqua
comme les autres, sugar daddy ambigu ou héros mythique. Comme dans Les
Revenants, Campillo donne à voir des existences rangées (tranquilles
pavillons de banlieue dans son précédent film, appartement relativement chic
ici) perturbées par des invités qu'on n'attendait pas (morts-vivants ou
immigrés clandestins, même combat). Et il y a dans Eastern Boys ce
cheminement assez passionnant où l'on atteint une certaine morale par des voies
que beaucoup jugeront parfaitement immorales.»
*****
Notei, no princípio, que me referiria às consequências negativas para o mundo ocidental, especialmente para a Europa Ocidental, da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética. Resumem-se em meia dúzia de palavras.
A existência do Bloco Soviético exigia à Europa Ocidental, leia-se ao capitalismo europeu, uma atitude de moderação na sua vocação especulativa absoluta. Apesar das doses maciças de propaganda, era preciso fazer crer aos europeus que viviam muito melhor do que no mundo comunista, que era evocado como uma incarnação do Diabo. Saliente-se que nestes exorcismos políticos os líderes dos países capitalistas contaram com o apoio descarado da Igreja, de que um dos principais representantes e um dos grandes actores da implosão dos regimes de Leste foi o papa João Paulo II, por pensamentos, palavras e obras (entre estas os milhões de dólares entregues a Lech Walesa para as greves do sindicato Solidarnosc). Atravessando a União Soviética sérias dificuldades económicas que a impediam de competir com os Estados Unidos na corrida aos armamentos, especialmene nucleares (o poderio económico americano, alicerçado na colonização de facto de muitos países, permitia grandes investimentos na indústria da guerra), não pôde, ou não soube, ou não quis, ou as três coisas, Mikhail Gorbachov conduzir a nau no meio da procela, rendendo-se aos cantos das sereias ocidentais, que tudo prometeram e nada cumpriram, antes pelo contrário. Humilhado e ofendido, retirou-se Gorbachov para a sua datcha, deixando ao leme o ébrio Boris Yeltsin, responsável final pelo naufrágio da União Soviética e "países satélites".
Libertas da "ameaça comunista" puderam então as governações ocidentais mostrar o seu verdadeiro rosto. Alargaram aos países de Leste a sua economia de mercado ultra-liberal, integraram os antigos países comunistas (com excepção da Rússia, da Bielo-Rússia e da Ucrânia - esta última estão a tentar) na União Europeia e na NATO, começaram a destruição do Estado Social nos países ocidentais com o pretexto de que é insustentável, inventaram a crise das dívidas soberanas, promoveram a austeridade com o objectivo de pauperizar os povos e caminham alegremente - até que alguém os trave - no sentido da destruição do funcionamento das instituições ainda ditas democráticas, a fim de as submeter ao primado dos interesse económicos e financeiros do Governo Mundial.
Não sabemos onde e quando se deterão, porque pior é sempe possível.
2 comentários:
Esperemos que o filme venha rapidamente a Portugal ou que pelo menos o possamos ver em video.
De vez em quando lá surge um filme interessante. Vamos ver se passa cá...
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