A propósito da Exposição sobre o 25 de Abril, que organizou na Assembleia da República, Pacheco Pereira concedeu ao jornal "i" uma significativa entrevista que, pela sua importância, passamos a transcrever:
40 anos depois da revolução, nenhuma decisão é tomada pelo governo e o parlamento contra os interesses dos banqueiros
Pacheco Pereira organizou a exposição da Assembleia da República que assinala os 40 anos da Revolução. A ideia presente no trabalho é a da construção da democracia num processo de conflito que ainda não acabou. Falemos então disso.
Em entrevista ao i, o secretário de Estado Pedro Lomba afirmou que a acção do governo está a recuperar "o espírito do 25 de Abril inicial". Concorda?
O senhor secretário de Estado Pedro Lomba não faz a mínima ideia do que foi o 25 de Abril . Essa tentativa à posteriori de encontrar na acção do actual governo alguma coisa que tenha a ver com as condicionantes e as circunstâncias do 25 de Abril é do domínio da ficção política.
Mas não pode haver um ponto de vista de uma direita liberal que considere que a "libertação" da economia de um suposto domínio do Estado é algo que podia estar contido no 25 de Abril e que teria sido abastardado pelo processo revolucionário?
Mas eu não vejo é qualquer libertação da economia em relação ao Estado, bem pelo contrário, vejo um Estado que exerce uma pressão fiscal sobre os cidadãos como nunca se viu. Um Estado que utiliza o fisco no limite das liberdades e no limite dos direitos: inverte o ónus da prova e que trata das pessoas de uma maneira inaceitável. Há uma cultura de prepotência perante o cidadão comum. Mais, há até a entrada num domínio perigoso: Se hoje houvesse uma polícia política ela nem precisaria de nova legislação, bastava consultar o fluxo de facturas do fisco, para saber o que eu faço o dia inteiro: o que eu como, o que eu consumo. Cruzando com os dados do multibanco, tudo estaria disponível. Como nós não temos uma cultura contra estes abusos do Estado, que muitas vezes existem apenas para esconder a sua incompetência e negligência, naquilo que devia ser a verdadeira função do fisco: a máquina do Estado parece ineficaz em relação aos poderosos que devem milhões de euros, permitindo a prescrição dessas cobranças, mas isso não retira, os poderosos, das mesas de convívio dos políticos, enquanto que qualquer desgraçado que deva 200 ou 300 euros ao fisco, fica com a vida completamente destruída.
Mas essa cultura vai para além da administração fiscal?
O fisco é apenas um exemplo, a maneira como muitos dos processos
económicos são dirigistas, nalguns aspectos ainda mais que no maior dos
pesadelos do socialistas, a dissolução de direitos sociais e de aquilo
que são garantias da própria sociedade, são factores que reforçam o
Estado.
Mas de qualquer forma não assistimos a um processo de privatização do sector empresarial do Estado?
As privatizações seriam legítimas num Estado democrático se fossem efectivamente transparentes. O que acontece é que o processo de privatizações não é de todo transparente, apesar da comunicação social ter repetido, sem verificar, as auto-afirmações de transparência dos membros do governo. Repare que foi preciso esperar muito tempo, para saber, na privatização mais importante, a da EDP, que não só incluía obrigações do Estado que não era conhecidas à época da privatização, como há todo um conjunto de práticas de inside trading durante esse processo. Por exemplo, a REN, activo que qualquer Estado enumera na sua reserva estratégica, foi privatizada com o ridículo da lei destinada a proteger todas as áreas estratégicas só ter aparecido depois de se terem verificado todas essas privatizações importantes.
Mas isso é uma crítica às privatizações
A crítica não é sobre privatizar, mas o que o Estado privatiza e como o faz. E, sobretudo, o facto de privatizar dentro de um círculo de poder nefasto para a nossa democracia. O círculo de poder daquelas pessoas que saltitam entre os escritórios de advogados, as consultoras financeiras, a vida política, os bancos e grandes grupos nacionais. Neste processo aparecem, ao mesmo tempo, como responsáveis pela venda e responsáveis pela compra. E em alguns casos as comissões de acompanhamento que foram criadas só reúnem depois do processo estar decidido, e em muitos casos enunciam a circunstância, que pelos vistos parece natural, que muitas empresas foram vendidas sem sequer haver uma avaliação sobre o seu valor.
Este tipo de comportamentos não justifica os resultados de uma sondagem do i sobre as elites, em que os pronunciados consideram que os políticos da ditadura eram mais honestos e preparados que os governantes actuais?
Essa sondagem tem dois aspectos: uma denúncia da corrupção actual e da percepção que as pessoas têm da corrupção e, por outro lado, revela uma ignorância sobre o passado, que resulta em grande parte da protecção que a censura deu aos políticos do antigo regime: quem conhece os documentos da censura sabe que o mundo da corrupção económica, da violência, da pedofilia, de uma perturbação quase endémica da sociedade portuguesa existia antes do 25 de Abril, era escondido. As pessoas tendem a mitificar esse passado, como sendo um tempo sem crime, nem violência e corrupção, quando de facto não era assim.
Mas de qualquer forma não assistimos a um processo de privatização do sector empresarial do Estado?
As privatizações seriam legítimas num Estado democrático se fossem efectivamente transparentes. O que acontece é que o processo de privatizações não é de todo transparente, apesar da comunicação social ter repetido, sem verificar, as auto-afirmações de transparência dos membros do governo. Repare que foi preciso esperar muito tempo, para saber, na privatização mais importante, a da EDP, que não só incluía obrigações do Estado que não era conhecidas à época da privatização, como há todo um conjunto de práticas de inside trading durante esse processo. Por exemplo, a REN, activo que qualquer Estado enumera na sua reserva estratégica, foi privatizada com o ridículo da lei destinada a proteger todas as áreas estratégicas só ter aparecido depois de se terem verificado todas essas privatizações importantes.
Mas isso é uma crítica às privatizações
A crítica não é sobre privatizar, mas o que o Estado privatiza e como o faz. E, sobretudo, o facto de privatizar dentro de um círculo de poder nefasto para a nossa democracia. O círculo de poder daquelas pessoas que saltitam entre os escritórios de advogados, as consultoras financeiras, a vida política, os bancos e grandes grupos nacionais. Neste processo aparecem, ao mesmo tempo, como responsáveis pela venda e responsáveis pela compra. E em alguns casos as comissões de acompanhamento que foram criadas só reúnem depois do processo estar decidido, e em muitos casos enunciam a circunstância, que pelos vistos parece natural, que muitas empresas foram vendidas sem sequer haver uma avaliação sobre o seu valor.
Este tipo de comportamentos não justifica os resultados de uma sondagem do i sobre as elites, em que os pronunciados consideram que os políticos da ditadura eram mais honestos e preparados que os governantes actuais?
Essa sondagem tem dois aspectos: uma denúncia da corrupção actual e da percepção que as pessoas têm da corrupção e, por outro lado, revela uma ignorância sobre o passado, que resulta em grande parte da protecção que a censura deu aos políticos do antigo regime: quem conhece os documentos da censura sabe que o mundo da corrupção económica, da violência, da pedofilia, de uma perturbação quase endémica da sociedade portuguesa existia antes do 25 de Abril, era escondido. As pessoas tendem a mitificar esse passado, como sendo um tempo sem crime, nem violência e corrupção, quando de facto não era assim.
Os grandes grupos económicos que prosperaram no antigo regime e
foram protegidos pelas leis do condicionamento industrial dominam grande
parte da nossa economia actual. Isso não faz que do ponto de vista das
elites e do poder estejamos numa situação muito semelhante?
Não, não penso. Na análise que se faz antes do 25 de Abril e depois, eu nunca me centro naquilo que se apelida de regime económico, se quiser acerca de como funciona a economia capitalista. Centro-me, em primeiro lugar, na questão das liberdades e do escrutínio. A democracia exige o primado da lei. As pessoas muitas vezes pensam que a democracia é apenas o voto, não: são as eleições e o primado da lei. Os problemas que eu levanto em relação às privatizações é a constituição dessa elite blindada, que se desloca de ministro para administrador, de uma grande empresa ou de um escritório de advogados, que presta serviços aos governo na mesma área que fez a privatização. Isso é que é grave, porque tem que haver uma clara separação entre quem decide sobre o bem público e quem é beneficiado do ponto de vista económico com a sua venda. O que não existe em Portugal, e isso é muito preocupante para a democracia. É preciso uma clara separação entre quem decide e o poder económico.
Mas isso não era o que acontecia anteriormente?
Não é bem assim. Eu não gosto de comparar situações pouco comparáveis: o próprio condicionamento industrial tinha muitos críticos no antigo regime e ele foi feito para proteger duas ou três indústrias pesadas que se consideravam necessárias para a independência e soberania portuguesa.
O facto do condicionamento industrial ter gerado em Portugal uma situação de concentração económica bastante superior ao nível de desenvolvimento do país, enormíssimos grupos económicos muito poderosos, e o facto desses grandes grupos continuarem poderosos hoje, não condiciona a democracia?
Não, não penso. Na análise que se faz antes do 25 de Abril e depois, eu nunca me centro naquilo que se apelida de regime económico, se quiser acerca de como funciona a economia capitalista. Centro-me, em primeiro lugar, na questão das liberdades e do escrutínio. A democracia exige o primado da lei. As pessoas muitas vezes pensam que a democracia é apenas o voto, não: são as eleições e o primado da lei. Os problemas que eu levanto em relação às privatizações é a constituição dessa elite blindada, que se desloca de ministro para administrador, de uma grande empresa ou de um escritório de advogados, que presta serviços aos governo na mesma área que fez a privatização. Isso é que é grave, porque tem que haver uma clara separação entre quem decide sobre o bem público e quem é beneficiado do ponto de vista económico com a sua venda. O que não existe em Portugal, e isso é muito preocupante para a democracia. É preciso uma clara separação entre quem decide e o poder económico.
Mas isso não era o que acontecia anteriormente?
Não é bem assim. Eu não gosto de comparar situações pouco comparáveis: o próprio condicionamento industrial tinha muitos críticos no antigo regime e ele foi feito para proteger duas ou três indústrias pesadas que se consideravam necessárias para a independência e soberania portuguesa.
O facto do condicionamento industrial ter gerado em Portugal uma situação de concentração económica bastante superior ao nível de desenvolvimento do país, enormíssimos grupos económicos muito poderosos, e o facto desses grandes grupos continuarem poderosos hoje, não condiciona a democracia?
Com excepção da banca, os maiores grupos económicos portugueses de
hoje não vêm do condicionamento industrial: estão no sector da
distribuição, estão ligados a actividades industriais mais recentes e
alargaram-se para os sectores de serviços. Não há uma continuidade entre
o mundo económico do salazarismo e o actual. Não significa que não haja
problemas económicos gravíssimos de subordinação e da captura, mesmo em
alguns casos, do poder político pelo poder económico: nenhuma decisão é
tomada no governo e na Assembleia da República que afecte os interesses
da banca. Há uma espécie de barreira invisível e mesmo coisas que são
de algum bom senso, como por exemplo a maneira como a banca avalia as
casas dos empréstimos de habitação, e depois face à ruptura de
pagamentos, considera que a sua avaliação não tem nenhum papel em
relação ao valor que atribuiu à casa. Estes factos devem ser corrigidos.
A banca deve ser responsabilizada pela avaliação especulativa do valor
das habitações. Este tipo de coisas é que mostram que, do ponto de vista
legislativo, há uma barreira invisível que protege a banca.
Aquilo que lhe estava a colocar é que há duas interpretações extremas sobre o 25 de Abril e o processo revolucionário. Há pessoas mais à esquerda que afirma que havia um poder económico que foi construído no fascismo, que para haver democracia esse poder deve ser derrubado, e que de alguma forma esse poder é dominante novamente nos dias de hoje. Há uma segunda narrativa, mais à direita, daqueles que afirmam que a democracia se fez contra o PREC [Processo Revolucionário em Curso], que garante que havia um poder militar revolucionário, que esse poder realizou as nacionalizações e que para haver democracia isso tem que ser invertido e o Estado retirado da economia. Estes discursos têm sentido?
Eu não penso que as coisas sejam tão a preto e branco. Quando analiso os objectivos do 25 de Abril, sempre considerei que o desenvolvimento dos 3 D [Democratizar, Descolonizar e Desenvolver], do programa do MFA, era algo forçado.
Não se pode impor a um regime político que vive do jogo democrático normal uma determinada ideia sobre o que é o desenvolvimento. Já pelo contrário acho que a melhoria das condições de vida é um objectivo fundamental de qualquer regime político e democrático. Eu também acho que foi fundamental terminar as chamadas conquistas da revolução: a reforma agrária, o controlo operário e as nacionalizações, que são resultado de uma situação revolucionária. Que tinham alguns aspectos punitivos, a exemplo que sucedeu em França no pós-Segunda Guerra Mundial: as empresas que tinham colaborado com os alemães foram nacionalizadas dentro desta ideia punitiva. Se for analisar até programas antigos do PCP e do MUNAF e MUD há a ideia dessas nacionalizações punitivas. Mas a verdade é que o período de 1974 e 75 podia ter ido para diferentes caminhos. E um deles era a criação de uma sociedade socialista, sem propriedade privada, com um poder político, que do meu ponto de vista, tinha que ser autoritário para manter essa estrutura de sociedade. Uma das grandes vitórias da sociedade portuguesa foi ter dissolvido esse tipo de antinomias entre 74 e 76. O acto principal não é o 25 de Novembro, como diz o CDS, é um conjunto de decisões: a substituição do Conselho da Revolução pelo Tribunal Constitucional, o fim da tutela dos civis pelos militares, as sucessivas revisões constitucionais, inclusive aquela que permitiu privatizar e criar uma economia de mercado, que é um elemento fundamental da democracia. Agora, isso não me leva a não ver que sobre a economia de mercado há hoje uma perigosa deriva no sentido de transformar aquilo que devia ser um jogo limpo da competição, entre empresas, numa tutela política e financeira em relação às principais decisões económicas. Entretanto os primeiros fautores da crise, que foram a banca e o poder económico e financeiro, são uns dos principais beneficiados, em termos de poder político, dessa mesma crise. É um processo que aconteceu em vários países. Criou-se uma espécie de barreira invisível de aço que faz que nenhuma decisão possa ser tomada contra os interesses do capital financeiro.
Aquilo que lhe estava a colocar é que há duas interpretações extremas sobre o 25 de Abril e o processo revolucionário. Há pessoas mais à esquerda que afirma que havia um poder económico que foi construído no fascismo, que para haver democracia esse poder deve ser derrubado, e que de alguma forma esse poder é dominante novamente nos dias de hoje. Há uma segunda narrativa, mais à direita, daqueles que afirmam que a democracia se fez contra o PREC [Processo Revolucionário em Curso], que garante que havia um poder militar revolucionário, que esse poder realizou as nacionalizações e que para haver democracia isso tem que ser invertido e o Estado retirado da economia. Estes discursos têm sentido?
Eu não penso que as coisas sejam tão a preto e branco. Quando analiso os objectivos do 25 de Abril, sempre considerei que o desenvolvimento dos 3 D [Democratizar, Descolonizar e Desenvolver], do programa do MFA, era algo forçado.
Não se pode impor a um regime político que vive do jogo democrático normal uma determinada ideia sobre o que é o desenvolvimento. Já pelo contrário acho que a melhoria das condições de vida é um objectivo fundamental de qualquer regime político e democrático. Eu também acho que foi fundamental terminar as chamadas conquistas da revolução: a reforma agrária, o controlo operário e as nacionalizações, que são resultado de uma situação revolucionária. Que tinham alguns aspectos punitivos, a exemplo que sucedeu em França no pós-Segunda Guerra Mundial: as empresas que tinham colaborado com os alemães foram nacionalizadas dentro desta ideia punitiva. Se for analisar até programas antigos do PCP e do MUNAF e MUD há a ideia dessas nacionalizações punitivas. Mas a verdade é que o período de 1974 e 75 podia ter ido para diferentes caminhos. E um deles era a criação de uma sociedade socialista, sem propriedade privada, com um poder político, que do meu ponto de vista, tinha que ser autoritário para manter essa estrutura de sociedade. Uma das grandes vitórias da sociedade portuguesa foi ter dissolvido esse tipo de antinomias entre 74 e 76. O acto principal não é o 25 de Novembro, como diz o CDS, é um conjunto de decisões: a substituição do Conselho da Revolução pelo Tribunal Constitucional, o fim da tutela dos civis pelos militares, as sucessivas revisões constitucionais, inclusive aquela que permitiu privatizar e criar uma economia de mercado, que é um elemento fundamental da democracia. Agora, isso não me leva a não ver que sobre a economia de mercado há hoje uma perigosa deriva no sentido de transformar aquilo que devia ser um jogo limpo da competição, entre empresas, numa tutela política e financeira em relação às principais decisões económicas. Entretanto os primeiros fautores da crise, que foram a banca e o poder económico e financeiro, são uns dos principais beneficiados, em termos de poder político, dessa mesma crise. É um processo que aconteceu em vários países. Criou-se uma espécie de barreira invisível de aço que faz que nenhuma decisão possa ser tomada contra os interesses do capital financeiro.
Defende que para haver democracia tem que haver economia de
mercado, mas não é preciso haver uma maior igualdade entre os cidadãos?
Somos dos países mais desiguais da Europa, mas nestes anos de crise isso ainda se reforçou mais.
Somos dos países mais desiguais da Europa, mas nestes anos de crise isso ainda se reforçou mais.
A desigualdade social é um problema da nossa democracia. Mas na
programação não-escrita da democracia não pode estar a igualdade por via
administrativa, mas tem de estar o caminho para minorar essas
desigualdades. Não se pode dizer que não há democracia quando não há
igualdade, mas só pode haver democracia se houver um caminho para a
minorar.
Mas esse plano não tem de ser um projecto político?
Tem que ser tudo. A história mostra que muitas vezes as coisas não são bem assim. Há coacções e limites que podem controlar isso.
Quais coacções e limites, basta ver a distribuição de comentadores televisivos, para perceber que este equilíbrio é precário. Parece que ser ex-líder do PSD dá acesso contratual a vir a ser comentador na TV.
Isso não é um problema apenas dos líderes do PSD, é uma característica desta situações, em que toda a gente, dentro deste círculo, tem a vida garantida. Se saírem do círculo passam para as trevas exteriores, mas dentro do círculo estão seguros. Isso tira qualquer risco da actividade política: podem ir para o Parlamento Europeu, para um conselho de administração...
Isso parece a ideia que circulava no tempo da República que a política era uma grande gamela.
É preciso ter cuidado com as generalizações. Mas é verdade que Portugal tem uma elevada percentagem das elites políticas que transitam entre o Estado e as empresas, o Estado e os grandes escritórios de advogados, o Estado e o poder financeiro, e o Estado e a burocracia europeia...
Mas qual seria a alternativa? Eles vão-lhe dizer que medidas que impedissem essa circulação, fariam que apenas aceitassem ser políticos os menos capazes...
Não acho que a política deva ser uma actividade profissionalizada, acho perigosa uma legislação que impeça que no parlamento as pessoas deixem de ter uma profissão, por uma razão muito simples. Essas pessoas deixam de ter capacidade de dizer "não". E a gente vê o efeito que esse tipo de situações tem nas juventudes partidárias: as pessoas que não têm profissão ficam dependentes dos aparelhos partidários para sobreviverem, e perdem a capacidade de dizer que não.
Eu sou a favor da constituição de uma comissão de ética, independente das maiorias partidárias, e com poderes reais. Esse tipo de prática existe em vários países e é muito mais eficaz do que o somatório de legislação avulsa sobre incompatibilidades. É isso que os partidos não querem. Não querem uma comissão de ética que lhes escape ao controle.
Mas esse plano não tem de ser um projecto político?
Tem que ser tudo. A história mostra que muitas vezes as coisas não são bem assim. Há coacções e limites que podem controlar isso.
Quais coacções e limites, basta ver a distribuição de comentadores televisivos, para perceber que este equilíbrio é precário. Parece que ser ex-líder do PSD dá acesso contratual a vir a ser comentador na TV.
Isso não é um problema apenas dos líderes do PSD, é uma característica desta situações, em que toda a gente, dentro deste círculo, tem a vida garantida. Se saírem do círculo passam para as trevas exteriores, mas dentro do círculo estão seguros. Isso tira qualquer risco da actividade política: podem ir para o Parlamento Europeu, para um conselho de administração...
Isso parece a ideia que circulava no tempo da República que a política era uma grande gamela.
É preciso ter cuidado com as generalizações. Mas é verdade que Portugal tem uma elevada percentagem das elites políticas que transitam entre o Estado e as empresas, o Estado e os grandes escritórios de advogados, o Estado e o poder financeiro, e o Estado e a burocracia europeia...
Mas qual seria a alternativa? Eles vão-lhe dizer que medidas que impedissem essa circulação, fariam que apenas aceitassem ser políticos os menos capazes...
Não acho que a política deva ser uma actividade profissionalizada, acho perigosa uma legislação que impeça que no parlamento as pessoas deixem de ter uma profissão, por uma razão muito simples. Essas pessoas deixam de ter capacidade de dizer "não". E a gente vê o efeito que esse tipo de situações tem nas juventudes partidárias: as pessoas que não têm profissão ficam dependentes dos aparelhos partidários para sobreviverem, e perdem a capacidade de dizer que não.
Eu sou a favor da constituição de uma comissão de ética, independente das maiorias partidárias, e com poderes reais. Esse tipo de prática existe em vários países e é muito mais eficaz do que o somatório de legislação avulsa sobre incompatibilidades. É isso que os partidos não querem. Não querem uma comissão de ética que lhes escape ao controle.
Há gente que veicula a ideia que a democracia foi construída contra o PREC, concorda?
Não. Na exposição que eu organizo na Assembleia não parto do princípio que haja uma interpretação unívoca do PREC. No período revolucionário realizaram-se quatro eleições: constituintes, legislativas, autárquicas e presidenciais. Só isso já nos levava a olhar de uma outra maneira para os acontecimentos. O PREC é o resultado de um tumulto que era inevitável ao fim de 48 anos de ditadura. A ideia que, depois do dia inicial e limpo, as coisas pudessem ser higiénicas é irrealista. Era inevitável que as coisas fossem complicadas e tumultuárias. Eu não direi que a democracia nasceu do PREC, mas direi que a democracia nasceu no PREC. Não entendo que seja possível, e nesta exposição eu faço o esforço para evitar projectar o politicamente correcto actual sobre o passado. Aquilo que se pretende mostrar na exposição foi que as instituições democráticas e a própria vitória da democracia, mesmo em relação aos protagonistas que eventualmente se batiam por outras soluções, foi construída durante esse tempo: o processo democrático normalizou-se mais tarde que 74 e 76, mas começou a ser construído no PREC. E começou no PREC, porque é evidente, quer se queira quer não, que houve uma certa alegria da liberdade e é inevitável que isso conduzisse a excessos. E não adianta penar sobre isso, de modo geral quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril. O PREC teve excessos e houve mortos e gente que mandou matar, mas a verdade é que foi naqueles anos turbulentos que nasceu a democracia portuguesa. Chamo a atenção para os processos eleitorais, que decorreram em liberdade, nunca houve nenhuma queixa. Quando as pessoas votaram no PS ou quando anos mais tarde votaram na AD [Aliança Democrática coligação do PSD, CDS, PPM e Renovadores, dirigida por Sá Carneiro] permitindo a primeira mudança significativa do poder no pós 25 de Abril, fizeram-na em liberdade. E essa liberdade nasceu da revolução do 25 de Abril. Em história as revoluções não são higiénicas.
Não. Na exposição que eu organizo na Assembleia não parto do princípio que haja uma interpretação unívoca do PREC. No período revolucionário realizaram-se quatro eleições: constituintes, legislativas, autárquicas e presidenciais. Só isso já nos levava a olhar de uma outra maneira para os acontecimentos. O PREC é o resultado de um tumulto que era inevitável ao fim de 48 anos de ditadura. A ideia que, depois do dia inicial e limpo, as coisas pudessem ser higiénicas é irrealista. Era inevitável que as coisas fossem complicadas e tumultuárias. Eu não direi que a democracia nasceu do PREC, mas direi que a democracia nasceu no PREC. Não entendo que seja possível, e nesta exposição eu faço o esforço para evitar projectar o politicamente correcto actual sobre o passado. Aquilo que se pretende mostrar na exposição foi que as instituições democráticas e a própria vitória da democracia, mesmo em relação aos protagonistas que eventualmente se batiam por outras soluções, foi construída durante esse tempo: o processo democrático normalizou-se mais tarde que 74 e 76, mas começou a ser construído no PREC. E começou no PREC, porque é evidente, quer se queira quer não, que houve uma certa alegria da liberdade e é inevitável que isso conduzisse a excessos. E não adianta penar sobre isso, de modo geral quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril. O PREC teve excessos e houve mortos e gente que mandou matar, mas a verdade é que foi naqueles anos turbulentos que nasceu a democracia portuguesa. Chamo a atenção para os processos eleitorais, que decorreram em liberdade, nunca houve nenhuma queixa. Quando as pessoas votaram no PS ou quando anos mais tarde votaram na AD [Aliança Democrática coligação do PSD, CDS, PPM e Renovadores, dirigida por Sá Carneiro] permitindo a primeira mudança significativa do poder no pós 25 de Abril, fizeram-na em liberdade. E essa liberdade nasceu da revolução do 25 de Abril. Em história as revoluções não são higiénicas.
No romance de Lídia Jorge, "Os Memoráveis", sobre o 25 de Abril,
fala-se em 5000 protagonistas da revolução. Na sua exposição há um
painel com 200. Essa ideia de protagonistas principais não é um regresso
a uma história das elites e esquece que numa revolução há uma população
inteira nas ruas?
O resumo da história aos protagonistas, resulta muitas vezes numa história mítica: não se pode compreender o que sucedeu sem as pessoas e o povo. Vejamos, então aquelas pessoas que vieram para a rua, mais de 100 mil, quando Humberto Delgado foi ao Porto não tiveram um papel? Certamente que sim! O salazarismo nunca mais foi o mesmo depois desse momento.
Mas de alguma forma não é isso que você faz ao resumir a um painel com 200 pessoas?
A história é feita também com pessoas concretas. O 25 de Abril não foi apenas um golpe militar. Mas existiu esse golpe militar que tem por base reivindicações corporativas e duas franjas de politização contraditórias: uma que existia em certas áreas da Marinha e em homens como Melo Antunes, uma politização que vem beber em muitas coisas, nomeadamente ao Congresso Republicano de Aveiro, e há depois uma outra politizações ligada aos sectores spinolistas que pretendiam a manutenção federalista do império colonial, mas que têm, num certo sentido, ligações à chamada Ala Liberal do regime [onde pontificava Sá Carneiro e Pinto Balsemão]. São dois núcleos politizados. Quando ao golpe militar se sucede uma revolta popular, milhares de pessoas vieram à rua, às vezes com risco. Houve cargas policiais e mortos em frente à sede da Pide. Esses milhares nas ruas imediatamente começaram a condicionar o processo. Eu não acho que essas pessoas saíram porque o PCP ou a CDE as tivessem mandado sair. É um fenómeno, em grande parte, espontâneo, mas esse povo nas ruas começou a condicionar o processo. Não é possível fazer um painel de São Vicente, eu seleccionei 200 nomes para a exposição e no dia em que acabamos o painel reparei que me faltavam o Francisco Martins Rodrigues e o Vítor Cunha Rego, duas pessoas fundamentais.
O painel que está na exposição não é o dos autores da democracia, mas as pessoas que tiveram intervenção neste processo tumultuário que se seguiu a uma calma artificial da ditadura.
O resumo da história aos protagonistas, resulta muitas vezes numa história mítica: não se pode compreender o que sucedeu sem as pessoas e o povo. Vejamos, então aquelas pessoas que vieram para a rua, mais de 100 mil, quando Humberto Delgado foi ao Porto não tiveram um papel? Certamente que sim! O salazarismo nunca mais foi o mesmo depois desse momento.
Mas de alguma forma não é isso que você faz ao resumir a um painel com 200 pessoas?
A história é feita também com pessoas concretas. O 25 de Abril não foi apenas um golpe militar. Mas existiu esse golpe militar que tem por base reivindicações corporativas e duas franjas de politização contraditórias: uma que existia em certas áreas da Marinha e em homens como Melo Antunes, uma politização que vem beber em muitas coisas, nomeadamente ao Congresso Republicano de Aveiro, e há depois uma outra politizações ligada aos sectores spinolistas que pretendiam a manutenção federalista do império colonial, mas que têm, num certo sentido, ligações à chamada Ala Liberal do regime [onde pontificava Sá Carneiro e Pinto Balsemão]. São dois núcleos politizados. Quando ao golpe militar se sucede uma revolta popular, milhares de pessoas vieram à rua, às vezes com risco. Houve cargas policiais e mortos em frente à sede da Pide. Esses milhares nas ruas imediatamente começaram a condicionar o processo. Eu não acho que essas pessoas saíram porque o PCP ou a CDE as tivessem mandado sair. É um fenómeno, em grande parte, espontâneo, mas esse povo nas ruas começou a condicionar o processo. Não é possível fazer um painel de São Vicente, eu seleccionei 200 nomes para a exposição e no dia em que acabamos o painel reparei que me faltavam o Francisco Martins Rodrigues e o Vítor Cunha Rego, duas pessoas fundamentais.
O painel que está na exposição não é o dos autores da democracia, mas as pessoas que tiveram intervenção neste processo tumultuário que se seguiu a uma calma artificial da ditadura.
Portugal é mesmo um país de brandos costumes devido à ditadura?
Quem diz isso não sabe história.
Nós tivemos as guerras liberais em que nos esfolávamos e matávamos alegremente, mas parece que nos tempos de hoje podem ferver-nos em cortes e impostos que nós apenas suspiramos...
É preciso ser-se muito prudente. De um momento para o outro as coisas podem mudar. Há factores como a censura e a cultura anti-conflito, que vigorou durante 48 anos. E uma das coisas mais perigosas nos tempos de hoje são certas ideias do poder que são eficazes: jovens contra velhos, ser velho é ter culpa e estar a roubar os mais novos; os trabalhadores públicos são privilegiados e os privados são as vítimas.
O Estado social é uma conquista das populações mas, por outro lado, ele aparece como uma garantia de um determinado consenso social. Com a destruição deste, podemos dar como adquirida a estabilidade do sistema?
De todo, não. A ideia de que não há direitos adquiridos e que a confiança não é um elemento fundamental na relação com os cidadãos - repare que só há confiança na relação com os credores - leva ao fim da coesão social. Verifica-se o deslaçamento da sociedade. É um discurso de divisão. Não conheço nenhum governo, na história portuguesa, que utilize por razões utilitárias o discurso da divisão social. E isto pode acabar mal.
Quem diz isso não sabe história.
Nós tivemos as guerras liberais em que nos esfolávamos e matávamos alegremente, mas parece que nos tempos de hoje podem ferver-nos em cortes e impostos que nós apenas suspiramos...
É preciso ser-se muito prudente. De um momento para o outro as coisas podem mudar. Há factores como a censura e a cultura anti-conflito, que vigorou durante 48 anos. E uma das coisas mais perigosas nos tempos de hoje são certas ideias do poder que são eficazes: jovens contra velhos, ser velho é ter culpa e estar a roubar os mais novos; os trabalhadores públicos são privilegiados e os privados são as vítimas.
O Estado social é uma conquista das populações mas, por outro lado, ele aparece como uma garantia de um determinado consenso social. Com a destruição deste, podemos dar como adquirida a estabilidade do sistema?
De todo, não. A ideia de que não há direitos adquiridos e que a confiança não é um elemento fundamental na relação com os cidadãos - repare que só há confiança na relação com os credores - leva ao fim da coesão social. Verifica-se o deslaçamento da sociedade. É um discurso de divisão. Não conheço nenhum governo, na história portuguesa, que utilize por razões utilitárias o discurso da divisão social. E isto pode acabar mal.
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