sábado, 23 de maio de 2020

HITLER, UM FILME DA ALEMANHA



Em 1977, o cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg apresentou um filme polémico, mas muito interessante, intitulado Hitler, ein Film aus Deutschland (Hitler, um filme da Alemanha), que foi exibido no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian em 15 de Março de 1980, sessão a que tive o privilégio de assistir, e em que obtive, no programa, um autógrafo do realizador.

Trata-se de uma abordagem sui generis de Syberberg, sobre as causas do nazismo, a criação do III Reich e as suas consequências. Recorrendo a uma poderosa simbologia, só totalmente apreensível por todos aqueles que tiverem um conhecimento profundo do percurso do Führer e da história da Alemanha (e da Europa) na primeira metade de do século passado, o autor encena a desmontagem da encenação que permitiu a ascensão de Adolf Hitler ao poder e o estabelecimento do regime nacional-socialista na então República de Weimar.

O filme, com a duração de sete horas, está dividido em quatro partes: 1) O Graal - Do Freixo Cósmico ao Carvalho de Goethe e às Faias de Buchenwald ; 2) Um Sonho Alemão... Até ao Fim do Mundo; 3) O Fim de um Conto de Inverno e a Vitória Final do Progresso; 4) Nós os Filhos do Inferno Recordamos a Era do Graal.

A película é falada em alemão (com legendas em inglês passando muito rapidamente) e parcialmente em inglês (sem legendas).

Inicialmente exibido nos Institutos Goethe, o filme só alcançou grande divulgação quando a sua distribuição passou a ser assegurada por Francis Ford Coppola que, inclusive, lhe alterou provocatoriamente o título, acrescentando a palavra "Nosso". Assim, passou a designar-se Our Hitler, a film from Germany.

As imagens não seguem propositadamente uma ordem cronológica, mas constituem pedaços da abordagem ensaiada por Syberberg para nos contar episódios reais ou fantasmáticos da Alemanha nazi. As personagens verdadeiras do regime raramente aparecem (apenas em excertos de filmes da época), sendo desempenhadas por bonecos ou por actores ridiculamente caracterizados.

Na primeira parte é narrado o fim da República de Weimar e é anunciada, num circo, a chegada de Hitler, o Napoleão germânico. E evocada a ideia de que "Hitler está dentro de nós" e que "Auschwitz é a batalha ideológica da guerra racial".

Na segunda parte do filme, entre outras coisas, assiste-se à saída do espírito de Hitler (personificado por um actor) do túmulo de Richard Wagner (uma ressurreição?), proferindo uma alocução, entrecortada pela transmissão radiofónica de trechos dos discursos de Goebbels, lui-même. Enquanto são projectadas as salas e o gabinete do Führer na Chancelaria do Reich, um actor incarna o papel de criado pessoal de Hitler, contando, ao som do Rienzi, os pormenores da vida quotidiana deste, e também o passeio incógnito de ambos, pelas ruas de Munique, em tempo de Natal, com referência ao Café Luitpold e à residência da Prinzregentenplatz. E ainda a neve caindo sobre Obersalzberg, onde ficava o Berghof, a residência de férias de Hitler.

Na terceira parte, surge Himmler (interpretado por um actor) em diálogo com o seu massagista secreto, conversando sobre os grandes homens e sobre a filosofia hindu. E também sobre os campos de concentração e o extermínio dos judeus. Afirma que a Alemanha é Hitler e Hitler é o Mundo, e discorre sobre a pureza da raça ariana. Curiosamente, troca impressões com o massagista sobre assuntos da política alemã e interroga-se se não deveria ser também ministro da Cultura, o que estaria de acordo com as suas funções de chefe da polícia nazi e corresponderia ao pensamento do Führer. Há também uma conversa interessante de "Himmler" com o seu astrólogo e referências a Heydrich e às suas interpretações musicais de Mozart, bem como às preocupações esotéricas do Reichführer SS.

Na última parte, aparece um actor lendo textos sobre as afirmações de Hitler, os princípios do nacional-socialismo e a crítica dos mesmos, enquanto, em fundo, são projectados excertos de filmes da época, mostrando especialmente paradas militares. Há, ao longo desta parte, inúmeras referências ao Graal, a Parsifal e à Tetralogia Wagneriana, a Constantino o Grande, Carlos Magno, Otão I, Frederico II, ao Santo Império Romano-Germânico, que Hitler pretendia incarnar (o Terceiro Reich), a Bruckner, a Nietzsche, à Civilização Ocidental,  não excluindo também críticas à República Federal da Alemanha. Segue-se uma imaginada "Disneylândia", em Berchtesgaden, evocativa da residência de Hitler, uma espécie de museu de figuras de cera do regime nazi, com toda a simbologia correspondente. Este centro fictício de atracções (a residência estival de Hitler foi destruída pela aviação aliada, exactamente para evitar romarias de saudade) convoca numerosos visitantes e é suposto ser mantido com o dinheiro dos árabes e a gestão dos israelitas! No fim, surge uma criança trazendo ao colo um boneco, que representa Hitler.

A célebre ensaísta Susan Sontag considerou o filme "one of the 20th century’s greatest works of art". Jean-Pierre Faye escreveu em 1978: «Nos anos 20, Breton e Aragon quiseram fazer uma terceira parte do Fausto. É contudo Hans-Jürgen Syberberg quem acaba de criar esse terceiro "Fausto", simultaneamente inevitável e impossível, que a Alemanha parece esperar desde Goethe. Essa obra foi agora composta com a matéria terrível da própria história alemã. Nesse espaço onde ela mergulha e nos atira à cara as suas galáxias».

Não é possível resumir em algumas linhas as sete horas do filme, abundantemente carregado de toda a mitologia germânica que o regime nazi abundantemente utilizou na prossecução dos seus propósitos.  Por vezes, tem-se a sensação de que o filme é demasiado longo, mesmo para transmitir a mensagem do realizador, mas a crítica que se pode verdadeiramente fazer é que muitas passagens são de difícil compreensão para quem desconheça, ou conheça imperfeitamente, este período da história da Alemanha. Com o passar do tempo, tornar-se-á mesmo largamente ininteligível inclusive para os próprios alemães. Mas permanecerá como obra cinematográfica de culto.


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