sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A VINGANÇA DE ATATÜRK



Mustafa Kemal Pasha, a quem a Grande Assembleia Nacional concedeu em 1934 o apelido de Atatürk (o Pai dos Turcos), proibindo o seu uso por qualquer outra pessoa, é o fundador da Turquia moderna,

Herói da guerra, político hábil, seguidor do Iluminismo, franco-maçon ocasional, muçulmano pouco convicto, Atatürk conseguiu, através de vitórias militares e manobras diplomáticas, preservar para a República da Turquia a Anatólia, uma porção de território na Europa (incluindo Istanbul), uma parte da Arménia e a região de Antakia (a  velha Antioquia, historicamente pertencendo à Síria). Sobre os escombros do Império Otomano, o "homem doente da Europa", no dizer de Nicolau I, Atatürk obteve,  no termo da Guerra da Independência, o reconhecimento dos limites actuais do país, contra a vontade dos Aliados que desejavam confinar o novo Estado a um território bem menor.

Os curdos, a quem fora prometido um estado autónomo pelo Tratado de Sèvres (1920) não lograram  ver as suas reivindicações contempladas pelo Tratado de Lausanne (1923), que definiu as fronteiras, o que originou sucessivas revoltas que duram até aos nossos dias. Aos arménios foi concedida uma área reduzida, a República da Arménia, que seria integrada na antiga União Soviética. A parte substancial da Arménia histórica foi incorporda como província do leste da Turquia, tendo os arménios sofrido uma violenta repressão nos finais do Império Otomano e advento da República, considerada pelos historiadores como o primeiro genocídio do século XX, mas que os turcos se recusam a reconhecer.

Não cabe numa dúzia de linhas evocar a obra de Atatürk. Refiram-se tão só alguns pontos. Para lá da consolidação da independência, ele promoveu a secularização do país. Deposto o sultão, abolido o califado, proclamado presidente da República, Atatürk empenhou-se em transformar a Turquia num estado laico. A começar pelos costumes. Foi proibido o uso do fez pelos homens e interditado o porte de véu pelas mulheres nos estabelecimentos públicos; eliminaram-se os títulos de cortesia (effendi, bey, pasha); adoptou-se a legislação civil e penal ocidental; e, tarefa ciclópica, o alfabeto árabe foi substituído pelo alfabeto latino (com ligeiras modificações) para utilização na língua turca. Também significativa a transferência da capital de Istanbul para Ankara, que fora a sede do contrapoder "revolucionário" ao governo dos últimos grão-vizires.

Importa salientar que estas medidas suscitaram profunda contestação e que Atatürk só conseguiu impô-las pelo seu prestígio pessoal, pela sua capacidade política, e também pela força, quando foi necessário utilizá-la.

À sua morte, em 1938, Atatürk tornara-se um símbolo nacional. A sua memória passou a ser venerada e a manutenção da sua herança política reivindicada pelas Forças Armadas que, para preservar o secularismo kemalista perante a emergência das tendências islâmicas que foram surgindo posteriormente, procederam a quatro golpes de Estado (1960, 1971, 1980 e 1997). No último, os militares não tomaram o poder, limitando-se a impor aos partidos condições de governação que garantissem a manutenção do Estado laico, já que a Turquia adoptara, a partir de 1945, o regime multipartidário.

Todavia, a situação alterou-se, progressivamente, com a criação do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Recep Tayyip Erdoğan, em 2001. Considerado como islamista moderado, o AKP venceu as eleições legislativas em 2002, 2007 e 2011, conduzindo Erdoğan à chefia do governo em 2003. Nas eleições presidenciais de 2014, Erdoğan, que fora prefeito de Istanbul de 1994 a 1998, ascendeu à chefia do Estado. Após a eleição do seu correligionário Abdullah Gül para a presidência da República, em 2007 (onde permaneceu até 2014), Erdoğan, como primeiro-ministro, começou suavemente uma política de islamização visando alterar o status quo secular. Ascendendo a presidente, pôde, com a conivência do seu primeiro-ministro Ahmet Davutoğlu, prosseguir mais intensamente essa política de reversão do legado de Atatürk. Mas a sua ambição, aliás não oculta, de transformar o regime numa república presidencialista levou-o a um conflito com Davutoğlu, que resignou em Maio de 2016, sendo substituído por Binali Yıldırım. Todavia, a insuficiente presença do AKP na Assembleia Nacional não lhe permitiu ainda a alteração da Constituição.

Tendo como objectivo os "plenos poderes", o presidente Erdoğan tem desenvolvido uma actividade por vezes contraditória, nomeadamente na condução de uma errática política externa, com aproximações e recuos relativamente a Israel, à Rússia, aos Estados Unidos, à Síria (de Bashar Al-Assad), ao Irão, etc. No plano interno verifica-se o silenciamento da oposição, com a censura dos media, o saneamento da administração pública, a alteração da legislação laica kemalista e a decapitação das chefias das Forças Armadas, que têm assistido perplexas (e impotentes) à sua perda de influência.

A tentativa, abortada, de golpe de Estado em 15 de Julho de 2016, afigurou-se, à primeira vista, um golpe ensaiado pelo próprio Erdoğan para se desembaraçar definitivamente dos seus opositores. Contudo, foi por ele desde logo atribuída a Muhammet Fethullah Gülen, imam e homem político, fundador do movimento "Hizmet" (serviço), que fora até 2013 seu aliado e que Erdoğan acusa de estar por detrás das acusações de corrupção de que o presidente foi alvo. Gülen, que dispõe de uma poderosa rede de seguidores em todas as áreas da vida turca, exilou-se então nos Estados Unidos e nega hoje qualquer participação na intentona. Na sequência da tentativa de golpe, foram presas, demitidas, ou mesmo mortas centenas de milhares de pessoas, entre militares, professores, juízes, jornalistas, funcionários públicos, escritores e artistas, num processo depuratório de que não há memória. O golpe foi publicamente atribuído à rede de Gülen no aparelho de Estado e na sociedade civil, mas ainda hoje se desconhecem os contornos dessa tentativa, que poderia ter constituído para os turcos a oportunidade de se desembaraçarem de Erdoğan, mas acabou afinal por constituir para este a ocasião de se desfazer dos seus numerosos adversários políticos, que ainda os há, embora o regime se encaminhe a passos largos para uma versão totalitária.

A vaga de atentados na Turquia, com destaque para os mais recentes, configura a passagem à via terrorista de uma oposição incapaz de se opor aos projectos de Erdoğan. Como habitualmente, desconhecem-se as  motivações dos autores dos atentados, já que estes ou são sumariamente abatidos, ou se encontram em fuga. E os implicados na tentativa de golpe do ano passado ainda não foram julgados.  Uma parte dos ataques deve-se ao PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que não desistiu, em cem anos de história, de obter um Estado próprio. Mas nem todos são de sua autoria. É possível que o Daesh, que o presidente favoreceu e agora se vê, realpolitk oblige, forçado a combater, por causa do acordo com a Rússia, esteja na origem de alguns deles. Mas a lista pode, e deve, ser mais longa.

Lavra na Turquia um grande descontentamento com a islamização forçada promovida por Erdoğan. E com a sua desmedida ambição. O presidente procura percorrer, no sentido inverso, o caminho de Atatürk, quando impulsionou a secularização do país. E sonha com um aumento do território, uma espécie de restabelecimento do Império Otomano em dimensão menor, e com uma hegemonia espiritual da Turquia sunita em oposição ao Irão xiita e em prejuízo da Arábia Saudita e do Egipto, uma espécie de ressurreição do Califado. Só que os tempos são outros. Se Erdoğan e o seu partido, o AKP, têm obtido maiorias nas últimas eleições, isso deve-se principalmente à população rural da Anatólia, já que as grandes cidades estão hoje largamente secularizadas, a intelligentsia tem um peso inquestionável na vida do país e a juventude, largamente ocidentalizada, recusa-se, em geral, a aceitar um tipo de sociedade que não conheceu e na qual não se revê.

Um interessante livro foi publicado pouco antes da tentativa de golpe de Estado: Erdoğan, "nouveau Père de la Turquie"?, da autoria de Jean-François Pérouse, director do Institut Français d'Études Anatoliennes, na Turquia, e do jornalista Nicolas Cheviron. Nele se analisa com rigor a trajectória deste homem que dirige uma Turquia à beira do abismo, travando um braço de ferro com todos os que poderiam contestar o seu poder.

Mesmo o actual "entendimento" com a Rússia é precário, já que Putin apenas deseja neutralizar o apoio da Turquia aos opositores de Assad (Daesh incluído). E para Erdoğan o novo relacionamento com o Irão é certamente contra natura. Mas algumas cedências teve de fazer para se permitir continuar a luta contra os curdos.

Não é certo que esta carreira vertiginosa transforme Erdoğan num Atatürk "às avessas" e que Erdoğan possa morrer tranquilamente no seu palácio presidencial Ak Saray (Palácio Branco), de Ankara, como Atatürk morreu de morte natural no Palácio de Dolmabahçe, em Istanbul. Mas, como escreveu Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, os grandes eventos repetem-se na História: primeiro ocorrem como tragédia, depois como farsa.

Ainda é cedo para avaliar se o novo "Pai da Pátria" conseguirá impor a sua vontade ao país inteiro e sobreviver ao clima de generalizada insegurança que se vive na Turquia ou se a fractura que originou na sociedade provocará a implosão do regime. Mas uma queda estrondosa de Erdoğan seria vista como a vingança póstuma de Atatürk!

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