quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A "DONA BRANCA", DE GARRETT


Almeida Garrett


Teve lugar no passado dia 10 deste mês, na Sociedade de Geografia, uma conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, a propósito do 190º aniversário de "D. Branca", de Almeida Garrett, que, pela sua importância, passamos a transcrever:


          NOS 190 ANOS DA “D. BRANCA”, DE ALMEIDA GARRETT


Desde há algum tempo, tenho-me interessado pelo tema das relações amorosas entre cristãos/ãs e mouros/as, durante a nossa Idade Média, designadamente os ecos deixados na literatura posterior.

Como seria inevitável, deparou-se-me o poema de Almeida Garrett, “D. Branca”. Tendo verificado que passavam, em 2016, os 190 anos, número redondo, da sua primeira publicação, ocorreu-me que seria talvez o momento apropriado para recordar esta obra caída, a meu ver injustamente, em quase total esquecimento. Com efeito, ainda que, já em 1943, António José Saraiva escrevesse que “D. Branca” tinha envelhecido muito mais que as “Viagens na minha terra” e que o seu interesse é, agora, principalmente histórico, penso que ainda hoje podemos ler aquele poema com prazer e proveito.            
Sobre o assunto há um valioso estudo, “Da Infanta Branca Afonso à D. Branca de Garrett”, de Sandra Amaral Monteiro.

                                                      II

Começarei com algumas palavras sobre a D. Branca histórica.

A Infanta D. Branca Afonso, filha primogénita de Afonso III de Portugal e de Beatriz de Castela, nasceu em 1259, em Santarém. Pertenceu-lhe um extenso património, tanto em Portugal (entre outras, as Vilas de Montemor-o-Velho e de Torres Vedras) como em Castela, onde foi Senhora da vila de Briviesca. Foi peça importante nas relações entre os dois Reinos, tendo, mesmo, sido encarregada, por seu irmão D. Dinis, de missões diplomáticas, no contexto das negociações que antecederam o Tratado de Alcanices .

"Dona Branca"

Não foi monja no Mosteiro cisterciense feminino de Lorvão, mas sua Senhora e Protectora. Adquiriu o Senhorio do Mosteiro, igualmente cisterciense e feminino de Holgas (Las Huelgas), em Burgos, onde professou como freira, em 1295, onde veio a falecer, em 1321, e onde foi sepultada. Ficou a recordação do apoio que deu às letras e artes. Promoveu a tradução, a partir do árabe, do “Livro das batalhas de Deus”. Sobretudo, o seu nome está associado ao Códice Musical de Holgas, único manuscrito medieval com polifonia que ainda se conserva no lugar de origem. Foi composto, cerca de 1300, por um João Rodrigues, que se pensa teria sido criado, escriba e/ou capelão, ao serviço de D. Branca.   

Episódio relevante da sua vida foram os amores com um cavaleiro, de nome Pero Esteves Carpinteiro, ou Pero Nunes Carpinteiro, de quem teve um filho ilegítimo, Juan Nunes de Prado, que foi Mestre da Ordem de Calatrava.  

Diga-se ainda que seu pai, D. Afonso III, teve como amante Madragana ben Aloandro, que adoptou, depois de baptizada, o nome de Mór Afonso. Era filha do último Alcaide mouro de Faro, Aloandro ben Bakr. Teve numerosa e ilustre descendência.  
                                                                                
                                                                                    
                                                    III

Em 1826, Almeida Garrett publicou em Paris, onde se encontrava exilado, o longo poema narrativo “ D. Branca ou a Conquista do Algarve”. No ano anterior, fora a vez de “Camões” (que se sabe, porém, redigido posteriormente a “D. Branca”).

Os dois poemas marcam a introdução do Romantismo na Literatura Portuguesa, ainda que Garrett não se assuma como romântico. Assim, no prefácio de “Camões”, afirma enfaticamente “ Não sou clássico nem romântico, de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia” e que seguiu apenas “o coração e os sentimentos da natureza”, o que, diga-se, é já uma profissão de fé romântica… Também em “D. Branca” se escreve, a certa altura, “de clássicos, românticos, guelfos das letras, gibelinos da arte, falar entendo, paz seja com eles”.

As duas obras, que podemos dizer “irmãs”, apresentam muitos aspectos comuns – são ambas poemas de dez cantos (na primeira edição, “D. Branca “ apresentava uma divisão em sete cantos) sendo as estrofes formadas de número variável de versos brancos de 10 sílabas, com excepção de poucas quadras em versos, de 9 e 7 sílabas, respectivamente, intercaladas em duas passagens de “D. Branca”. “Camões” foi publicado sem nome de autor, “D. Branca” com a menção de obra póstuma de F.E., para fazer crer que a autoria era de Filinto Elísio (nome arcádico do Padre Francisco Manuel Nascimento, que o Poeta considerava um dos seus modelos); Garrett, que, já anos antes, fora acusado de ser ateu e libertino, quando publicara “O retrato de Vénus” procurava, agora, evitar dissabores.

“Camões” e “D. Branca” acham-se imbuídos de nacionalismo - os temas foram buscados à História de Portugal, com o propósito de despertar o conhecimento e o amor pelas coisas portuguesas, e estimular o patriotismo do leitor, fazendo contrastar um passado glorioso com uma actualidade de decadência e apagamento. Esse nacionalismo revela-se também em aspectos mais propriamente literários, como o quase total banimento, em “Camões”, das referências à Mitologia clássica, e pela sua substituição, em “D. Branca”, por uma mitologia portuguesa, com as fadas, os sortilégios da noite de S. João, etc.. Manifestação de nacionalismo se pode, ainda, considerar a expressão dolorosa, nos dois Poemas, da saudade da Pátria, sentida pelo Autor exilado.

“Camões” aparece aos nossos olhos como obra ainda muito clássica. Apresenta uma marcada unidade de acção. Nas palavras do próprio Garrett, “ a acção do poema é a composição e publicação dos Lusíadas; os outros sucessos, que ocorrem, são de facto episódicos, mas fiz por os ligar com a principal acção”. Um historiador da literatura sublinha que dois cantos são decalcados sobre o texto dos Lusíadas, vários versos são transcritos literalmente e toda a linguagem tem um nítido cunho camoneano. Mas o Herói é verdadeiramente romântico, byroniano, Génio incompreendido, que morre abandonado, perante a ingratidão e a indiferença da Pátria.  

“D. Branca” é mais decididamente inovadora. Ainda que predominantemente clássica (ou, mais propriamente, arcádica) a linguagem é, muitas vezes, coloquial, e o tom pode ser, mesmo, jocoso, o que nunca acontece no poema “Camões”. A acção é, com frequência, interrompida, com referências, pelo Autor, ou à sua própria infância numa quinta ao Sul do Douro, ou à sua condição de exilado, ou ao abandono a que estava votado Sagres, ou ao nulo significado, no seu tempo, de uma Comenda de Santiago, em contraste com o valor dos Cavaleiros de Santiago medievais, ou aludindo a um então neologismo: “Fiquei desapontado, como dizem os ingleses. Essas interrupções são, até, objecto de um comentário auto-irónico:” E a minha história, e o meu lindo palácio? Malditas reflexões! Torno ao meu conto; e quem quiser achar a margarita, como o pinto da fábula esgravate”. Quanto à escolha da época medieval (e não já da Renascença) está ela mais em conformidade com as preferências românticas.

Em “D. Branca”, não só há uma acção, mas duas principais – por um lado, os amores da Infanta com o mouro Aben-Afan, e, por outro, a Conquista do Algarve, ambas convergindo, no final, por ocasião de uma fatal Noite de S. João. Ao tratar, em “Camões”, de assunto bem conhecido do público, a margem de liberdade de Garrett achava-se limitada; assim, dá-nos uma versão romanceada mas, apesar disso, próxima da realidade histórica. Com a Infanta D. Branca, personagem relativamente menor e desconhecida do grande público, o Autor sentiu-se livre para, mais do que romancear a História, recriá-la inteiramente. É certo que a Infanta D. Branca era filha de Afonso III e que foi no Reinado dele que se completou a conquista do Algarve. Quase tudo resto é inventado, já que Branca nasceu em 1259, isto é, 10 anos após a conquista de Silves; os seus amores com Aben-Afan não poderiam pois, ter ocorrido. Aben-Afan, por seu lado, foi o último Senhor de Silves, reconhecendo Garrett haver alargado os seus domínios a todo o Algarve ( na realidade, durante o período islâmico, não existiu propriamente um Reino do Algarve d’Aquém-Mar, como figura no Poema; houve, sim, um  Reino de Niebla, com Capital nessa localidade, não longe de Huelva,  que abrangeu o Algarve e parte do Alentejo).  O Autor admitia ter recriado o passado (como recriou poesias populares que incluiu no seu “Romanceiro). Com graça, respondeu a quem o acusava de imoralidade, que o Poema, ”até da Infanta D. Branca, uma das mais despejadas ‘leoas’ do seu tempo, fez a donzela tímida e sem malícia que aí pintei, mentindo descaradamente à História”.

O poema foi escrito de Agosto a Outubro de 1824. Pensemos que, apenas dois anos antes, tivera lugar a Independência do Brasil, que muitos portugueses sentiram como uma perda. Desfizera-se, pelo menos “de facto”, o Reino Unido Portugal-Brasil-Algarves, com a separação da sua parte de longe maior e mais rica. Ao evocar a conquista do Algarve, Garrett, está, como diz, a “contar… a história dos bons tempos que foram”. O Algarve, descrito em termos idílicos e cuja conquista heroica é tema de “D. Branca”, foi também o ponto de partida dos Descobrimentos. Garrett descreve, desolado, o estado em que se encontravam os edifícios do tempo do Infante D. Henrique, a ruína dos quais é “opróbrio da Nação que a primeira foi no Mundo em nobrezas, outrora, hoje em miséria”.

                                                     IV

“D. Branca”não segue a ordem cronológica, à qual, no entanto, recorrerei, por facilidade de exposição, para resumir o enredo:

Fada Alina

Um dia, caçando sozinho, Aben-Afan, jovem Rei do Algarve, dá por si junto a um magnífico palácio encantado, onde penetra, apesar de terríveis leões que, habitualmente, vedavam o acesso aos seres humanos. A Fada Alina, Senhora da mansão, tão poderosa que a ela “submissos os destinos cedem, e obedece a própria Natureza”, recebe Aben-Afan. Promete ajudá-lo a encontrar a felicidade, mas não podendo, na Terra, haver ventura completa, uma opção ele terá de fazer – a glória militar ou o amor. Entrega-lhe dois ramos mágicos, que deverá trazer junto ao peito, um de louro, outro de murta, simbolizando respectivamente, a glória militar e o amor, dos quais só um florescerá, secando  o outro.

Aben-Afan dedica-se à guerra, fazendo frente aos Cavaleiros de Santiago, chefiados por Paio Peres que Correia, que vão prosseguindo a sua marcha para Sul. Mas, certa noite, o Rei mouro tem a visão de uma figura feminina, cuja beleza o perturba. Lança-se numa busca, que o conduz a Lorvão e avista aquela cuja imagem o obceca, Branca de Portugal. Prepara o seu rapto, que se consuma quando ela se dirigia para o Mosteiro de Holgas, em Burgos, e condu-la, no seu cavalo, para o palácio encantado. Uma inscrição, gravada na pedra, à entrada, fá-lo hesitar - ” Ao Rei sem Reino, à esposa sem marido. Aben-Afan! Aqui jaz o teu Fado! Pensa! Pensa outra vez antes de entrares”. Mas acaba por decidir-se –  “ Resolvi, clamou, perca-se tudo …Oh! tudo, tudo …e seja Branca minha! “.  

Alina, que os acolhe afavelmente, observa “florece a murta, sim, e Branca é tua, mas o louro seca, tua glória é extinta, teu trono ruiu, cessou teu reino; Branca é tua e só a perderás se, alucinado, teu florecido ramo abandonares e o deixares secar”.

Desde o primeiro instante, a Infanta sucumbira ao fascínio do seu raptor, o que poderia surpreender, pois era ele então o maior inimigo dos portugueses, mas não, se tivermos presente o retrato que o Poeta faz do “gentil moiro”. Além disso, a Fada havia posto, no coração de Branca, a imagem de Aben-Afan. Alina deixa os amantes entregues à sua felicidade, no maravilhoso palácio. O Anjo da Guarda de Branca leva ao Céu a triste nova de uma perdida ovelha. O Poeta, porém, exclama “mas castigar Amor? O Céu tem raios e a crimes tais nunca os mandou à Terra”.

Não nos é dito quanto tempo corre, naquele lugar, que se poderia, na verdade, dizer fora deste Mundo. Mas talvez tenha sido breve este “engano de alma ledo e cego”. Com efeito, os Cavaleiros de Santiago avançam vitoriosamente, para desespero e revolta dos mouros, que se sentem abandonados pelo seu Rei. Longamente é narrado o episódio de Antas – seis Cavaleiros, aproveitando uma trégua, vão à caça com os seus falcões. Encontram uma jovem que lhes revela ser Oriana,  irmã de Aben-Afan, que sua mãe se havia convertido ao Cristianismo e que, ela própria, baptizada à nascença e obrigada a fugir, quando tal fora descoberto. Surge uma multidão irada, que acaba por massacrar os Cavaleiros, apesar da sua resistência heroica, e levar Oriana presa.

Apenas Silves não caiu ainda em poder dos cristãos. Aos Cavaleiros de Santiago, vem juntar-se o próprio Afonso III, com as suas forças. É Noite de S. João mas o Rei, pesaroso pela ausência da filha, proíbe quaisquer festejos. S. Frei Gil de Santarém, versado em artes mágicas, promete-lhe que “a mesma hora que vir Silves em mãos de portugueses, verá Branca liberta, e Aben punido”.

Entretanto, no palácio encantado, a paixão de Aben-Afan fora arrefecendo, e começa a arrepender-se de levar uma existência inútil e de faltar aos seus deveres de Soberano e guerreiro. Formula o desejo de que o louro possa reverdecer; de imediato se arrepende, mas é tarde  - “O Sol se obscureceu; medonha noite cai sobre o céu, como um funéreo manto sobre a urna cinérea, estala um raio, com límpido lampejo fende as nuvens e horríssono trovão nos ares brama” (bela linguagem, puramente arcádica). Lembram-se os dois amantes de que é a Noite de S. João e, tristes e abraçados, esperam a terrível hora fatal da meia – noite, mantendo Branca, contudo, a esperança de que não lhe poderão arrancar Aben-Afan .

Aben Afan

Por sua parte, S. Frei Gil não perdera tempo. Numa passagem do Poema dum macabro arrepiante, vêmo-lo dirigir-se ao cemitério e dar vida ao esqueleto dum distante antepassado de Aben-Afan; anuncia-lhe que o Reino do Algarve está perdido, mas que o último Rei poderá ainda morrer com honra. Pede-lhe que persuada Aben-Afan a voltar a Silves e, montando-o num hipogrifo, condu-lo ao palácio encantado. Batem à porta, ao mesmo tempo que soam as doze badaladas. O palácio desaparece e os dois amantes dão por si num calvo outeiro. Branca assiste, desolada, ao jovem Rei ser arrastado pela mão seca dum espectro. Com voz severa, Frei Gil diz-lhe “teu execrando amor os céus puniram, o Deus que, desleal traíste, vem aplacar com duras penitências”; leva-a, nos braços, até ao acampamento cristão. (Note-se que o “crime” de Branca não seria tanto o haver amado um mouro, mas o ter faltado às suas obrigações de monja, esposa do Senhor; fora como que um adultério) .

O assalto final começara, mas a aparição súbita de Aben-Afan vem retardar a queda da Cidade, cuja sorte se vem a decidir num duelo entre ele e o Mestre de Santiago, ambos de uma valentia e de um cavalheirismo inexcedíveis. “Foras, sorte, imparcial, nenhum vencera …mas os destinos nas balanças fatídicas pesaram a sorte das Nações, e o maometano Império pende, Aben-Afan sucumbe…e no Algarve d’Aquém Afonso Impera”.

Quanto a Branca, enlouqueceu de dor. Levam-na para Holgas; Oriana, a irmã de Aben-Afan acompanha-a. “Vegeta o tronco ainda, mas é vida este viver, que se alimenta de lágrimas?”.

O Poeta exclamara que os raios do Céu não punem o Amor, mas a paixão de D. Branca e Aben-Afan acabou por ceder, talvez não ao castigo divino mas, certamente, aos imperativos sociais. Contudo, o Rei mouro, ainda que puxado pelo seu longínquo antepassado, já interiorizara o seu dever e bate-se com a maior coragem, até à morte. Branca, pelo contrário, revolta-se contra o seu dever e, apenas porque forçada, segue para Holgas, onde levará uma vida de dor. São, verdadeiramente, um Herói e uma Heroína românticos.
 
                                                        V

“D. Branca” é vista como uma obra precursora do Orientalismo, entre nós. Não é este o momento para falar longamente sobre Orientalismo (embora não deva haver muitos locais, tão apropriados como a Sociedade de Geografia, para debater o tema).

Recordarei, apenas, que o Orientalismo, movimento ou moda que não se confina à Literatura, tivera já grande aceitação no Séc.XVIII, ganhara maior fôlego no seguimento da expedição de Bonaparte ao Egipto e fora adoptado pelo Romantismo. Mas, enquanto que na Europa, em geral, o Orientalismo é uma faceta do Exotismo, tal não é necessariamente o caso em Portugal. Um autor orientalista português não tem que recorrer a cenários como o Egipto, a Terra Santa, Constantinopla ou a Índia, pode situar a acção da sua obra em território português, não tendo que haver uma viagem no espaço, mas apenas no tempo.

Na sua busca das raízes medievais de Portugal, Garrett encontrou o Oriente, corporizado no Reino dos Algarves. Constatou que houvera uma componente árabe, na formação da Nacionalidade portuguesa, e considerava que a memória desse passado devia ser valorizada. Sente-se, no Poema, uma tensão: Garrett exulta com a conquista do Algarve e exalta a gesta dos Cavaleiros de Santiago mas, ao mesmo tempo, entristece-se com a queda do Reino mouro, portador de uma civilização mais refinada. Desejaria que não tivesse havido vencidos. O palácio encantado simbolizaria, assim “ a utopia da convivência (im)possível”, na muito feliz expressão que Eva–Maria von Kemnitz utiliza num contexto um pouco mais alargado, na sua tese sobre “Portugal e o Magrebe (Sécs. XVII/XIX) “.

Na descrição daquele palácio, Garrett terá cedido a um estereotipo de Exotismo orientalista. O edifício,” onde tudo o que o rico Oriente tem de brilho e de gemas resplendece “nem jónio, dório, itálico, misto, gótico, saxónico, caldeu, núbico, Índico, indostan, mogol ou pérsico, “nada disso é e, no entanto é belo”, e os interiores são esplendorosos. Ter-se-á o Autor, que muito apreciava Sintra inspirado nas ruínas do Palácio de Monserrate. Anos antes do nascimento de Garrett, viveu ali William Beckford, autor da famosa novela orientalista “Vathek”, que começa, precisamente, pela descrição de um fabuloso palácio oriental. Beckford realizou obras no Palácio e no seu jardim, incluindo a construção de um Arco de Vathek. Em 1809, Byron visitou Monserrate, já então em ruínas, e refere-o, no “Childe Harold”. Ignoro se Garrett, que leu Byron, terá lido o “Vathek”, mas tal não é impossível; e note-se que  Beckford,  ainda era vivo, aquando do seu exílio em Inglaterra.        

                                                       VI

Logo no início do segundo Canto, o Poeta aborda um dos temas orientais que sempre foram objecto tanto de fascínio, como de escândalo, para os europeus – o harém. “Que sórdidos haréns, que vis eunucos tem o Oriente, sepulcros tristes de oiro, onde geme a virtude e amor corrido cede a brutal desejo o facho e a venda!”. Mas logo interroga “culpas, Europa, o mussulmano bárbaro?”, antes de descrever, com as tintas mais sombrias os mosteiros cristãos: ”cárceres negros e traidores, onde à inocência cândida, à piedade, arma pérfido bonzo o laço astuto”, onde a escravidão só termina com a morte e nem um raio de esperança vem aquentar corações gelados, mortos” etc... A conclusão é clara – antes prisioneira num harém que freira num mosteiro. E, assim, antecipa o destino de Branca – Quão mais feliz teria ela sido no palácio encantado, onde era Rainha, do que Abadessa em Holgas.   

Se Garrett não gostava de mosteiros, também não gostava de frades, pelo menos bernardos; isso, que hoje nos pode parecer estranho, era explicável no ambiente político da Época, em particular pelas posições anti-liberais dos monges de Alcobaça. São apresentados como grotescamente ridículos, glutões, ignorantes, grosseiros, covardes. Ficou célebre a expressão “gorda, cachaci-pansuda figura”, e o episódio da “tremenda”, alusivo a uma real ou suposta lauta refeição, servida aos frades a meio da noite, terá sido das partes do Poema que ganharam mais popularidade. Já os eremitas, personagens rodeadas de mistério, como Frei Hugo, não incorrem na condenação do Poeta romântico. E S. Frei Gil de Santarém, conhecedor de magia negra e que Garrett considerava “o nosso Doutor Fausto”, intervém na acção, quase como Deux ex-machina; não é, porém, personagem simpático e transparece, na forma como descreve os seus diálogos com Afonso III, o desagrado do Poeta pela arrogância do clero Igreja perante o Poder político.  Toda a sua admiração, porém, vai para os Cavaleiros de Santiago, não tanto por serem monges, mas por serem guerreiros intrépidos; apresenta-os, no entanto, como moços galanteadores, uma imagem talvez mais apropriada aos Cavaleiros de Malta do Séc. XVIII, que aos de Santiago do Séc. XIII.

Compreende-se que Garrett não tenha querido figurar como autor, quando “D. Branca” surgiu, em 1826, ao mesmo tempo que multiplicava os protestos da sua fidelidade ao Catolicismo, que diríamos quase que repassadas de ironia. O Poeta assume-se como cristão, mas é-o em termos de valores culturais, éticos e estéticos. Quando diz ser “vate cristão”, é apenas no sentido de que rejeita a mitologia greco-romana, para a substituir por uma mitologia nacional, que tem pouco ou nada a ver com o Catolicismo oficial. A Fada Alina está acima da divisão entre cristãos e muçulmanos, e quanto ao próprio “glorioso S. João, que tudo alegra, abençoado protector d’amantes, até descridos moiros o festejam e canibais pedreiros o veneram” (alusão jocosa à Maçonaria, à qual, aliás, o próprio Garrett pertencia).

A religião de Garrett era a dos filósofos do Século das Luzes, que ele exprime, pela boca de Aben-Afan. Tendo-lhe dito Branca que seu Deus era falso e pedido que adorasse a Cruz, o Rei mouro responde, indignado: ”Falso o meu Deus! E o teu é verdadeiro! Quantos Deus há pois na natureza? Eu adoro o que fez este Universo, o que nos ares suspendeu, magnífico, estes orbes de luz que nos aclaram (…) o Deus que me criou, que no teu rosto pôs o traslado da beleza eterna. Este, este é o meu Deus,  e falso é ele.

                                                         VII

Segundo Teófilo Braga, Garrett seguiu, em “D. Branca”, o estilo digressivo e faceto do “Oberon”. Por outro lado, num tese de José Joaquim Dias Marques, considera-se que Alina tem mais a ver com as fadas do “Oberon”, que com as do folclore português. Não li a obra de Wieland, traduzida para português por Filinto Elísio, em 1802, sabendo, porém que, no seu enredo, figura uma Princesa moura, raptada por um cavaleiro cristão. Assim, irei abordar, agora, outras obras, com laços reais ou apenas aparentes com a “D. Branca”.

Na mesma Cidade (Paris) e no mesmo ano (1826) da publicação de “D. Branca”, surgiu um livro que viria a ganhar celebridade. A heroína chama-se Doña Blanca, cristã, o herói, Aben-Hamet, muçulmano; a acção decorre em Granada, algum tempo depois da conquista pelos Reis Católicos e o Alhambra, que os dois enamorados visitam, lembra um palácio encantado; um duelo, entre Aben-Hamet e o irmão de Doña Blanca, recorda, pelo cavalheirismo dos dois, a luta entre Aben-Afan e D. Paio Correia. Trata-se de “O último Abencerragem”. Entre a novela de René de Chateaubrind, na realidade escrita dez anos antes, e o poema de Almeida Garrett, pouco há em comum, além de serem histórias de paixões infelizes, entre um muçulmano e uma cristã. Doña  Blanca e Aben-Hamet teriam podido realizar o seu amor,  se um deles  aceitasse renunciar à sua religião e adoptar a do outro; ambos preferem manter-se fiéis à sua fé respectiva, sacrificando a felicidade terrena. Chateaubriand lia, por vezes, em certos salões, excertos da sua obra, mas é pouco provável que a eles tivesse acesso o modesto empregado da “Maison Laffite”.

( Um parêntese para sublinhar como, em muitos aspectos, foram paralelas as vidas destes dois escritores de primeira grandeza, que fizeram, nas suas obras, a transição para o Romantismo. Ambos sofreram as agruras do exílio, ambos foram sedutores, amaram a vida, ambos brevemente Diplomatas e Ministros dos Negócios Estrangeiros, ambos Viscondes. Situados, porém, em polos opostos do espectro político, um legitimista, liberal o outro) 


Já outra obra, porém, “Miragaia”, de Garrett e por ele  classificada como  “romance reconstruído “, está estreitamente relacionada com “D. Branca”. Garrett ouvira a lenda a criadas de sua casa, desde criança e, numa quinta ao Sul do Douro, onde passou longas temporadas, gostava de brincar na ruína de um castelo mourisco e de beber a água duma fonte chamada “do Rei Ramiro”.

Segundo o romance, o Rei Ramiro rapta Zahara, irmã do Rei mouro Alboazar. Este vinga-se, raptando Gaia, mulher de Ramiro. O Rei cristão organiza uma expedição e, com um ardil, mata Alboazar, cujo castelo incendeia, e traz consigo Gaia de volta. Ao atravessarem o Douro, ela chora e, interrogada, responde: “mataste o mais belo moiro, mais gentil mais para amar, que entre moiros e cristãos, nunca mais não terá par”. Ramiro, furioso, degola-a e atira a cabeça à água. Garrett “reconstruiu” o romance, mantendo a toada e o espírito populares.

“Miragaia” foi publicada, pela primeira vez, apenas em 1843, 17 anos depois de “D. Branca”  mas, como escreve o próprio Garrett, ”foi das primeiras coisas deste género em que trabalhei: e é a mais antiga reminiscência da poesia popular que me ficou da infância”. Tinha-a, pois, na sua mente, quando escreveu “D. Branca”- nos dois poemas, uma dama cristã é raptada por um Rei mouro, valente e cavalheiresco, por quem se apaixona. A libertação, isto é, o regresso à Cristandade, tem, para ambas, consequências trágicas, punidas por adultério (Gaia era mulher de Ramiro, Branca, freira, logo esposa do Senhor); perdem a cabeça, Gaia no sentido literal, Branca metaforicamente. Por outro lado, Aben-Afan e Alboazar também são castigados, mas morrem com honra, lutando, os seus domínios são devastados.  Os dois têm irmãs, Oriana e Zahara, respectivamente Oriana, já anteriormente baptizada, vai, por vontade própria, para um Mosteiro. Quanto à irmã de Alboazar, que Ramiro raptara, o poema “Miragaia” nada acrescenta mas, no Livro de Linhagens de D. Pedro, que dá uma versão da lenda, o Rei Ramiro leva-a até Leão, onde ela é baptizada (com o nome de Ortiga), e, da união de ambos, descenderiam os Senhores da Maia. As irmãs como que vêm compensar as “perdas” de Branca e Gaia.

E no enredo da obra-prima da maturidade, “Frei Luís de Sousa”, encontramos alguns pontos em comum com “D. Branca” e “Miragaia” – o regresso de um cristão que esteve preso em terra de mouros, um casamento que se desfaz, um adultério, real ou imaginado, o convento como expiação.

Com as duas últimas obras, que apenas brevemente abordarei, voltamos a ter D. Branca como heroína.

A 6 de Janeiro de 1840, isto é, 14 anos após a primeira publicação de “D. Branca”, subiu à cena, no Teatro S. João, do Porto, “O Almançor Aben-Afan, último Rei do Algarve”, peça em três actos e em verso. O autor, José Freire de Serpa Pimentel, 2º Visconde de Gouveia, exerceu cargos na Magistratura, foi Governador Civil do Porto, Par do Reino. Escreveu ainda, entre outras peças, “D. Sisnando, Conde de Coimbra “, “D.Sancho II” , “A moira de Montemor”.   

“O Almançor Aben-Afan” põe de novo em cena os dois protagonistas de “D. Branca”, mas a história é radicalmente diferente, assim como o estilo e o espírito. A Infanta D. Branca, religiosa em Holgas, e D. Pero Esteves Carpentos, Cavaleiro de Santiago, amam-se. Decidem ir a Roma, procurar ser desvinculados dos seus votos. Ao largo do Algarve, o navio, que os transporta, naufraga, vindo ambos, separadamente, a cair em poder de Aben-Afan. O Rei de Silves não tem, aqui, qualquer semelhança com o “moiro gentil” de Garrett, lembra mais o mouro de Veneza, mas Otelo assassinou Desdémona num momento de loucura, de que logo se arrependeu, enquanto Aben-Afan se revela verdadeiramente sanguinário. Deseja ardentemente Branca, desde o dia em que a avistou, ao participar, incógnito, num torneio em Lisboa, do qual saiu vencedor; apresentara o pedido da mão de D. Branca, que não foi aceite por Afonso III.

Agora, multiplica rogos, promessas, ameaças terríveis. Chega a dizer-lhe que se fará cristão, se ela for sua uma só hora, e que se matará depois, mas Branca recusa sempre o que diz ser pior que o amor de um tigre. O Mestre de Santiago envia um mensageiro comunicar a Aben-Afan que, se não libertar a Infanta e os outros prisioneiros, ele virá ocupar Silves. A obcecação do Rei é tal que diz aos seus próximos “ou ganhar D. Branca ou perder tudo, que me importa a Pátria, que me importam palácios e diademas, sem os braços gentis de D. Branca?”.   

Por fim, não conseguindo os seus propósitos, manda executar Branca de forma atroz. Já antes, para atormentar D. Pedro, ordenara que fosse gravada, num mausoléu, esta inscrição “Da vingança o punhal cravou-lhe o seio/ Violada e morta ao despontar da vida/ Do leito do Almançor desceu à campa”. Mas, entretanto, os cativos cristãos soltam-se e chegam as tropas portuguesas. Aben-Afan acaba por suicidar-se. Branca, em nome do seu Pai, ordena o perdão e a paz, respeito aos de Mafoma, honrosa sepultura a Aben-Afan, aos prisioneiros vida e liberdade.

A peça poderia, pelo carácter das personagens e pela linguagem, servir de base para o libreto de uma ópera. Não faltam, também, passagens melodramáticas, como quando se revela que o velho escravo Mustapha é, na verdade, o Pai do Cavaleiro, que Aben-Afan lhe ordenara assassinar. Parecem-me bem representativos desta fase do Romantismo, e não resisto a transcrevê-los,  os últimos versos do primeiro acto, nos quais o Cavaleiro exclama: “E ao vil Aben-Afan irei raivoso / C’o dente furibundo abrir-lhe as veias/Rasgar-lhe o coração/trincar-lhe a vida”.

Finalmente, “Donna Bianca”, ópera com prólogo e quatro actos, composta por Alfredo Keil, com libreto, em italiano, de César Féréal. Estreou, a 10 de Março de 1888, no São Carlos. Foi lá apresentada trinta vezes, entre 1888 e 1899 e, novamente, em Setembro de 2010, numa série de quatro espectáculos, em versão de concerto.

No plano da música, o compositor foi fortemente influenciado por Massenet. O libreto pretende basear-se na obra de Garrett, mas é mais uma recriação que uma adaptação. O primeiro encontro de Aben-Afan com a Fada Alina tem lugar na “Floresta encantada de Sagres” (sic).  Avista Branca em Burgos, no momento em que ingressa no Mosteiro; não a rapta, ela segue-o de livre vontade, já que a paixão de ambos é imediata. Cavalgam para o Paraíso e vivem a sua felicidade, na Mansão das Huris. Mas Adaour, o confidente do Rei, vai lá contar-lhe a triste situação do Algarve e condenar o abandono a que votou a Pátria, convencendo-o a regressar. Por um vale deserto dirigem-se para o Algarve, seguidos à distância por Branca, que Aben-Afan repelira. Perante a conquista iminente de Silves pelas tropas cristãs, D. Branca promete ao Mestre de Santiago renunciar a Aben-Afan, e voltar para junto do Pai, se for passado um salvo-conduto para o mouro, caso ele ainda viva. Adaour crê que Branca está a atraiçoar Aben-Afan e tenta matá-la. Aben-Afan entra, mortalmente ferido, lamenta ter deixado secar a murta e despede-se de Branca. Expira e ela desfalece sobre o seu corpo.

Se D. Branca inspirou uma ópera, cabe mencionar que, na “Suite El-Gharb “, composta pelo pianista Eurico Thomaz de Lima, o primeiro andamento se intitula “Aben-Afan”.