Almeida Garrett |
Teve lugar no passado dia 10 deste mês, na Sociedade de Geografia, uma conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, a propósito do 190º aniversário de "D. Branca", de Almeida Garrett, que, pela sua importância, passamos a transcrever:
NOS 190 ANOS DA “D. BRANCA”, DE ALMEIDA GARRETT
Desde há algum tempo, tenho-me
interessado pelo tema das relações amorosas entre cristãos/ãs e mouros/as,
durante a nossa Idade Média, designadamente os ecos deixados na literatura
posterior.
Como seria
inevitável, deparou-se-me o poema de Almeida Garrett, “D. Branca”. Tendo verificado
que passavam, em 2016, os 190 anos, número redondo, da sua primeira publicação,
ocorreu-me que seria talvez o momento apropriado para recordar esta obra caída,
a meu ver injustamente, em quase total esquecimento. Com efeito, ainda que, já
em 1943, António José Saraiva escrevesse que “D. Branca” tinha envelhecido muito
mais que as “Viagens na minha terra” e que o seu interesse é, agora,
principalmente histórico, penso que ainda hoje podemos ler aquele poema com
prazer e proveito.
Sobre o assunto há um valioso estudo,
“Da Infanta Branca Afonso à D. Branca de Garrett”, de Sandra Amaral Monteiro.
II
Começarei com algumas palavras
sobre a D. Branca histórica.
A Infanta D. Branca Afonso, filha
primogénita de Afonso III de Portugal e de Beatriz de Castela, nasceu em 1259,
em Santarém. Pertenceu-lhe um extenso património, tanto em Portugal (entre
outras, as Vilas de Montemor-o-Velho e de Torres Vedras) como em Castela, onde
foi Senhora da vila de Briviesca. Foi peça importante nas relações entre os
dois Reinos, tendo, mesmo, sido encarregada, por seu irmão D. Dinis, de missões
diplomáticas, no contexto das negociações que antecederam o Tratado de
Alcanices .
Não foi monja no Mosteiro cisterciense feminino de Lorvão, mas sua Senhora e Protectora. Adquiriu o Senhorio do Mosteiro, igualmente cisterciense e feminino de Holgas (Las Huelgas), em Burgos, onde professou como freira, em 1295, onde veio a falecer, em 1321, e onde foi sepultada. Ficou a recordação do apoio que deu às letras e artes. Promoveu a tradução, a partir do árabe, do “Livro das batalhas de Deus”. Sobretudo, o seu nome está associado ao Códice Musical de Holgas, único manuscrito medieval com polifonia que ainda se conserva no lugar de origem. Foi composto, cerca de 1300, por um João Rodrigues, que se pensa teria sido criado, escriba e/ou capelão, ao serviço de D. Branca.
Episódio relevante da sua vida foram
os amores com um cavaleiro, de nome Pero Esteves Carpinteiro, ou Pero Nunes
Carpinteiro, de quem teve um filho ilegítimo, Juan Nunes de Prado, que foi
Mestre da Ordem de Calatrava.
Diga-se ainda que seu pai, D.
Afonso III, teve como amante Madragana ben Aloandro, que adoptou, depois de
baptizada, o nome de Mór Afonso. Era filha do último Alcaide mouro de Faro, Aloandro
ben Bakr. Teve numerosa e ilustre descendência.
III
Em 1826, Almeida Garrett publicou
em Paris, onde se encontrava exilado, o longo poema narrativo “ D. Branca ou a
Conquista do Algarve”. No ano anterior, fora a vez de “Camões” (que se sabe,
porém, redigido posteriormente a “D. Branca”).
Os dois poemas marcam a introdução do Romantismo
na Literatura Portuguesa, ainda que Garrett não se assuma como romântico.
Assim, no prefácio de “Camões”, afirma enfaticamente “ Não sou clássico nem
romântico, de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia” e que seguiu
apenas “o coração e os sentimentos da natureza”, o que, diga-se, é já uma
profissão de fé romântica… Também em “D. Branca” se escreve, a certa altura, “de
clássicos, românticos, guelfos das letras, gibelinos da arte, falar entendo,
paz seja com eles”.
As duas obras, que podemos dizer “irmãs”,
apresentam muitos aspectos comuns – são ambas poemas de dez cantos (na primeira
edição, “D. Branca “ apresentava uma divisão em sete cantos) sendo as estrofes formadas
de número variável de versos brancos de 10 sílabas, com excepção de poucas
quadras em versos, de 9 e 7 sílabas, respectivamente, intercaladas em duas passagens
de “D. Branca”. “Camões” foi publicado sem nome de autor, “D. Branca” com a
menção de obra póstuma de F.E., para fazer crer que a autoria era de Filinto
Elísio (nome arcádico do Padre Francisco Manuel Nascimento, que o Poeta
considerava um dos seus modelos); Garrett, que, já anos antes, fora acusado de
ser ateu e libertino, quando publicara “O retrato de Vénus” procurava, agora,
evitar dissabores.
“Camões” e “D. Branca” acham-se
imbuídos de nacionalismo - os temas foram buscados à História de Portugal, com o propósito de despertar o conhecimento e o amor pelas coisas portuguesas, e
estimular o patriotismo do leitor, fazendo contrastar um passado glorioso com
uma actualidade de decadência e apagamento. Esse nacionalismo revela-se também em
aspectos mais propriamente literários, como o quase total banimento, em
“Camões”, das referências à Mitologia clássica, e pela sua substituição, em “D.
Branca”, por uma mitologia portuguesa, com as fadas, os sortilégios da noite de
S. João, etc.. Manifestação de nacionalismo se pode, ainda, considerar a expressão
dolorosa, nos dois Poemas, da saudade da Pátria, sentida pelo Autor exilado.
“Camões” aparece aos nossos olhos
como obra ainda muito clássica. Apresenta uma marcada unidade de acção. Nas
palavras do próprio Garrett, “ a acção do poema é a composição e publicação dos
Lusíadas; os outros sucessos, que ocorrem, são de facto episódicos, mas fiz por
os ligar com a principal acção”. Um historiador da literatura sublinha que dois
cantos são decalcados sobre o texto dos Lusíadas, vários versos são transcritos
literalmente e toda a linguagem tem um nítido cunho camoneano. Mas o Herói é
verdadeiramente romântico, byroniano, Génio incompreendido, que morre
abandonado, perante a ingratidão e a indiferença da Pátria.
“D. Branca” é mais decididamente
inovadora. Ainda que predominantemente clássica (ou, mais propriamente,
arcádica) a linguagem é, muitas vezes, coloquial, e o tom pode ser, mesmo,
jocoso, o que nunca acontece no poema “Camões”. A acção é, com frequência,
interrompida, com referências, pelo Autor, ou à sua própria infância numa
quinta ao Sul do Douro, ou à sua condição de exilado, ou ao abandono a que
estava votado Sagres, ou ao nulo significado, no seu tempo, de uma Comenda de
Santiago, em contraste com o valor dos Cavaleiros de Santiago medievais, ou
aludindo a um então neologismo: “Fiquei desapontado, como dizem os ingleses.
Essas interrupções são, até, objecto de um comentário auto-irónico:” E a minha
história, e o meu lindo palácio? Malditas reflexões! Torno ao meu conto; e quem
quiser achar a margarita, como o pinto da fábula esgravate”. Quanto à escolha
da época medieval (e não já da Renascença) está ela mais em conformidade com as
preferências românticas.
Em “D. Branca”, não só há uma
acção, mas duas principais – por um lado, os amores da Infanta com o mouro
Aben-Afan, e, por outro, a Conquista do Algarve, ambas convergindo, no final,
por ocasião de uma fatal Noite de S. João. Ao tratar, em “Camões”, de assunto
bem conhecido do público, a margem de liberdade de Garrett achava-se limitada;
assim, dá-nos uma versão romanceada mas, apesar disso, próxima da realidade
histórica. Com a Infanta D. Branca, personagem relativamente menor e desconhecida
do grande público, o Autor sentiu-se livre para, mais do que romancear a
História, recriá-la inteiramente. É certo que a Infanta D. Branca era filha de
Afonso III e que foi no Reinado dele que se completou a conquista do Algarve.
Quase tudo resto é inventado, já que Branca nasceu em 1259, isto é, 10 anos
após a conquista de Silves; os seus amores com Aben-Afan não poderiam pois, ter
ocorrido. Aben-Afan, por seu lado, foi o último Senhor de Silves, reconhecendo
Garrett haver alargado os seus domínios a todo o Algarve ( na realidade,
durante o período islâmico, não existiu propriamente um Reino do Algarve
d’Aquém-Mar, como figura no Poema; houve, sim, um Reino de Niebla, com Capital nessa localidade,
não longe de Huelva, que abrangeu o Algarve
e parte do Alentejo). O Autor admitia
ter recriado o passado (como recriou poesias populares que incluiu no seu
“Romanceiro). Com graça, respondeu a quem o acusava de imoralidade, que o Poema,
”até da Infanta D. Branca, uma das mais despejadas ‘leoas’ do seu tempo, fez a
donzela tímida e sem malícia que aí pintei, mentindo descaradamente à
História”.
O poema foi escrito de Agosto a
Outubro de 1824. Pensemos que, apenas dois anos antes, tivera lugar a
Independência do Brasil, que muitos portugueses sentiram como uma perda.
Desfizera-se, pelo menos “de facto”, o Reino Unido Portugal-Brasil-Algarves,
com a separação da sua parte de longe maior e mais rica. Ao evocar a conquista
do Algarve, Garrett, está, como diz, a “contar… a história dos bons tempos que
foram”. O Algarve, descrito em termos idílicos e cuja conquista heroica é tema
de “D. Branca”, foi também o ponto de partida dos Descobrimentos. Garrett
descreve, desolado, o estado em que se encontravam os edifícios do tempo do
Infante D. Henrique, a ruína dos quais é “opróbrio da Nação que a primeira foi
no Mundo em nobrezas, outrora, hoje em miséria”.
IV
“D. Branca”não segue a ordem
cronológica, à qual, no entanto, recorrerei, por facilidade de exposição, para
resumir o enredo:
Um dia, caçando sozinho, Aben-Afan,
jovem Rei do Algarve, dá por si junto a um magnífico palácio encantado, onde
penetra, apesar de terríveis leões que, habitualmente, vedavam o acesso aos
seres humanos. A Fada Alina, Senhora da mansão, tão poderosa que a ela “submissos
os destinos cedem, e obedece a própria Natureza”, recebe Aben-Afan. Promete
ajudá-lo a encontrar a felicidade, mas não podendo, na Terra, haver ventura
completa, uma opção ele terá de fazer – a glória militar ou o amor. Entrega-lhe
dois ramos mágicos, que deverá trazer junto ao peito, um de louro, outro de
murta, simbolizando respectivamente, a glória militar e o amor, dos quais só um
florescerá, secando o outro.
Aben-Afan dedica-se à guerra,
fazendo frente aos Cavaleiros de Santiago, chefiados por Paio Peres que
Correia, que vão prosseguindo a sua marcha para Sul. Mas, certa noite, o Rei
mouro tem a visão de uma figura feminina, cuja beleza o perturba. Lança-se numa
busca, que o conduz a Lorvão e avista aquela cuja imagem o obceca, Branca de
Portugal. Prepara o seu rapto, que se consuma quando ela se dirigia para o
Mosteiro de Holgas, em Burgos, e condu-la, no seu cavalo, para o palácio
encantado. Uma inscrição, gravada na pedra, à entrada, fá-lo hesitar - ” Ao Rei
sem Reino, à esposa sem marido. Aben-Afan! Aqui jaz o teu Fado! Pensa! Pensa
outra vez antes de entrares”. Mas acaba por decidir-se – “ Resolvi, clamou,
perca-se tudo …Oh! tudo, tudo …e seja Branca minha! “.
Alina, que os acolhe afavelmente,
observa “florece a murta, sim, e Branca é tua, mas o louro seca, tua glória é
extinta, teu trono ruiu, cessou teu reino; Branca é tua e só a perderás se,
alucinado, teu florecido ramo abandonares e o deixares secar”.
Desde o primeiro instante, a
Infanta sucumbira ao fascínio do seu raptor, o que poderia surpreender, pois
era ele então o maior inimigo dos portugueses, mas não, se tivermos presente o
retrato que o Poeta faz do “gentil moiro”. Além disso, a Fada havia posto, no
coração de Branca, a imagem de Aben-Afan. Alina deixa os amantes entregues à
sua felicidade, no maravilhoso palácio. O Anjo da Guarda de Branca leva ao Céu
a triste nova de uma perdida ovelha. O Poeta, porém, exclama “mas castigar
Amor? O Céu tem raios e a crimes tais nunca os mandou à Terra”.
Não nos é dito quanto tempo corre, naquele
lugar, que se poderia, na verdade, dizer fora deste Mundo. Mas talvez tenha sido
breve este “engano de alma ledo e cego”. Com efeito, os Cavaleiros de Santiago avançam
vitoriosamente, para desespero e revolta dos mouros, que se sentem abandonados
pelo seu Rei. Longamente é narrado o episódio de Antas – seis Cavaleiros,
aproveitando uma trégua, vão à caça com os seus falcões. Encontram uma jovem que
lhes revela ser Oriana, irmã de
Aben-Afan, que sua mãe se havia convertido ao Cristianismo e que, ela própria, baptizada
à nascença e obrigada a fugir, quando tal fora descoberto. Surge uma multidão
irada, que acaba por massacrar os Cavaleiros, apesar da sua resistência heroica,
e levar Oriana presa.
Apenas Silves não caiu ainda em
poder dos cristãos. Aos Cavaleiros de Santiago, vem juntar-se o próprio Afonso
III, com as suas forças. É Noite de S. João mas o Rei, pesaroso pela ausência
da filha, proíbe quaisquer festejos. S. Frei Gil de Santarém, versado em artes
mágicas, promete-lhe que “a mesma hora que vir Silves em mãos de portugueses,
verá Branca liberta, e Aben punido”.
Entretanto, no palácio encantado,
a paixão de Aben-Afan fora arrefecendo, e começa a arrepender-se de levar uma
existência inútil e de faltar aos seus deveres de Soberano e guerreiro. Formula
o desejo de que o louro possa reverdecer; de imediato se arrepende, mas é
tarde - “O Sol se obscureceu; medonha
noite cai sobre o céu, como um funéreo manto sobre a urna cinérea, estala um
raio, com límpido lampejo fende as nuvens e horríssono trovão nos ares brama”
(bela linguagem, puramente arcádica). Lembram-se os dois amantes de que é a
Noite de S. João e, tristes e abraçados, esperam a terrível hora fatal da meia
– noite, mantendo Branca, contudo, a esperança de que não lhe poderão arrancar
Aben-Afan .
Por sua parte, S. Frei Gil não
perdera tempo. Numa passagem do Poema dum macabro arrepiante, vêmo-lo
dirigir-se ao cemitério e dar vida ao esqueleto dum distante antepassado de
Aben-Afan; anuncia-lhe que o Reino do Algarve está perdido, mas que o último Rei poderá ainda morrer com
honra. Pede-lhe que persuada Aben-Afan a voltar a Silves e, montando-o num
hipogrifo, condu-lo ao palácio encantado. Batem à porta, ao mesmo tempo que
soam as doze badaladas. O palácio desaparece e os dois amantes dão por si num
calvo outeiro. Branca assiste, desolada, ao jovem Rei ser arrastado pela mão
seca dum espectro. Com voz severa, Frei Gil diz-lhe “teu execrando amor os céus
puniram, o Deus que, desleal traíste, vem aplacar com duras penitências”;
leva-a, nos braços, até ao acampamento cristão. (Note-se que o “crime” de
Branca não seria tanto o haver amado um mouro, mas o ter faltado às suas
obrigações de monja, esposa do Senhor; fora como que um adultério) .
O assalto final começara, mas a
aparição súbita de Aben-Afan vem retardar a queda da Cidade, cuja sorte se vem
a decidir num duelo entre ele e o Mestre de Santiago, ambos de uma valentia e
de um cavalheirismo inexcedíveis. “Foras, sorte, imparcial, nenhum vencera …mas
os destinos nas balanças fatídicas pesaram a sorte das Nações, e o maometano Império
pende, Aben-Afan sucumbe…e no Algarve d’Aquém Afonso Impera”.
Quanto a Branca, enlouqueceu de dor.
Levam-na para Holgas; Oriana, a irmã de Aben-Afan acompanha-a. “Vegeta o
tronco ainda, mas é vida este viver, que se alimenta de lágrimas?”.
O Poeta exclamara que os raios do Céu não punem o Amor, mas a paixão de
D. Branca e Aben-Afan acabou por ceder, talvez não ao castigo divino mas,
certamente, aos imperativos sociais. Contudo, o Rei mouro, ainda que puxado
pelo seu longínquo antepassado, já interiorizara o seu dever e bate-se com a
maior coragem, até à morte. Branca, pelo contrário, revolta-se contra o seu
dever e, apenas porque forçada, segue para Holgas, onde levará uma vida de dor.
São, verdadeiramente, um Herói e uma Heroína românticos.
V
“D. Branca” é vista como uma obra
precursora do Orientalismo, entre nós. Não é este o momento para falar
longamente sobre Orientalismo (embora não deva haver muitos locais, tão
apropriados como a Sociedade de Geografia, para debater o tema).
Recordarei, apenas, que o
Orientalismo, movimento ou moda que não se confina à Literatura, tivera já
grande aceitação no Séc.XVIII, ganhara maior fôlego no seguimento da expedição
de Bonaparte ao Egipto e fora adoptado pelo Romantismo. Mas, enquanto que na Europa,
em geral, o Orientalismo é uma faceta do Exotismo, tal não é necessariamente o
caso em Portugal. Um autor orientalista português não tem que recorrer a cenários
como o Egipto, a Terra Santa, Constantinopla ou a Índia, pode situar a acção da
sua obra em território português, não tendo que haver uma viagem no espaço, mas
apenas no tempo.
Na sua busca das raízes medievais
de Portugal, Garrett encontrou o Oriente, corporizado no Reino dos Algarves. Constatou
que houvera uma componente árabe, na formação da Nacionalidade portuguesa, e
considerava que a memória desse passado devia ser valorizada. Sente-se, no
Poema, uma tensão: Garrett exulta com a conquista do Algarve e exalta a gesta
dos Cavaleiros de Santiago mas, ao mesmo tempo, entristece-se com a queda do
Reino mouro, portador de uma civilização mais refinada. Desejaria que não
tivesse havido vencidos. O palácio encantado simbolizaria, assim “ a utopia da
convivência (im)possível”, na muito feliz expressão que Eva–Maria von Kemnitz
utiliza num contexto um pouco mais alargado, na sua tese sobre “Portugal e o
Magrebe (Sécs. XVII/XIX) “.
Na descrição daquele palácio, Garrett
terá cedido a um estereotipo de Exotismo orientalista. O edifício,” onde tudo o
que o rico Oriente tem de brilho e de gemas resplendece “nem jónio, dório,
itálico, misto, gótico, saxónico, caldeu, núbico, Índico, indostan, mogol ou
pérsico, “nada disso é e, no entanto é belo”, e os interiores são
esplendorosos. Ter-se-á o Autor, que muito apreciava Sintra inspirado nas
ruínas do Palácio de Monserrate. Anos antes do nascimento de Garrett, viveu ali
William Beckford, autor da famosa novela orientalista “Vathek”, que começa,
precisamente, pela descrição de um fabuloso palácio oriental. Beckford realizou
obras no Palácio e no seu jardim, incluindo a construção de um Arco de Vathek.
Em 1809, Byron visitou Monserrate, já então em ruínas, e refere-o, no “Childe
Harold”. Ignoro se Garrett, que leu Byron, terá lido o “Vathek”, mas tal não é
impossível; e note-se que Beckford,
ainda era vivo, aquando do seu exílio em Inglaterra.
VI
Logo no início do segundo Canto,
o Poeta aborda um dos temas orientais que sempre foram objecto tanto de
fascínio, como de escândalo, para os europeus – o harém. “Que sórdidos haréns,
que vis eunucos tem o Oriente, sepulcros tristes de oiro, onde geme a virtude e
amor corrido cede a brutal desejo o facho e a venda!”. Mas logo interroga
“culpas, Europa, o mussulmano bárbaro?”, antes de descrever, com as tintas mais
sombrias os mosteiros cristãos: ”cárceres negros e traidores, onde à inocência
cândida, à piedade, arma pérfido bonzo o laço astuto”, onde a escravidão só
termina com a morte e nem um raio de esperança vem aquentar corações gelados,
mortos” etc... A conclusão é clara – antes prisioneira num harém que freira num
mosteiro. E, assim, antecipa o destino de Branca – Quão mais feliz teria ela
sido no palácio encantado, onde era Rainha, do que Abadessa em Holgas.
Se Garrett não gostava de mosteiros, também
não gostava de frades, pelo menos bernardos; isso, que hoje nos pode parecer estranho, era
explicável no ambiente político da Época, em particular pelas posições anti-liberais
dos monges de Alcobaça. São apresentados como grotescamente ridículos, glutões,
ignorantes, grosseiros, covardes. Ficou célebre a expressão “gorda,
cachaci-pansuda figura”, e o episódio da “tremenda”, alusivo a uma real ou
suposta lauta refeição, servida aos frades a meio da noite, terá sido das
partes do Poema que ganharam mais popularidade. Já os eremitas, personagens
rodeadas de mistério, como Frei Hugo, não incorrem na condenação do Poeta
romântico. E S. Frei Gil de Santarém, conhecedor de magia negra e que Garrett
considerava “o nosso Doutor Fausto”, intervém na acção, quase como Deux
ex-machina; não é, porém, personagem simpático e transparece, na forma como
descreve os seus diálogos com Afonso III, o desagrado do Poeta pela arrogância
do clero Igreja perante o Poder
político. Toda a sua admiração, porém, vai
para os Cavaleiros de Santiago, não tanto por serem monges, mas por serem guerreiros
intrépidos; apresenta-os, no entanto, como moços galanteadores, uma imagem
talvez mais apropriada aos Cavaleiros de Malta do Séc. XVIII, que aos de
Santiago do Séc. XIII.
Compreende-se que Garrett não
tenha querido figurar como autor, quando “D. Branca” surgiu, em 1826, ao mesmo
tempo que multiplicava os protestos da sua fidelidade ao Catolicismo, que diríamos
quase que repassadas de ironia. O Poeta assume-se como cristão, mas é-o em
termos de valores culturais, éticos e estéticos. Quando diz ser “vate cristão”,
é apenas no sentido de que rejeita a mitologia greco-romana, para a substituir
por uma mitologia nacional, que tem pouco ou nada a ver com o Catolicismo
oficial. A Fada Alina está acima da divisão entre cristãos e muçulmanos, e quanto
ao próprio “glorioso S. João, que tudo alegra, abençoado protector d’amantes,
até descridos moiros o festejam e canibais pedreiros o veneram” (alusão jocosa
à Maçonaria, à qual, aliás, o próprio Garrett pertencia).
A religião de Garrett era a dos
filósofos do Século das Luzes, que ele exprime, pela boca de Aben-Afan.
Tendo-lhe dito Branca que seu Deus era falso e pedido que adorasse a Cruz, o
Rei mouro responde, indignado: ”Falso o meu Deus! E o teu é verdadeiro!
Quantos Deus há pois na natureza? Eu adoro o que fez este Universo, o que nos
ares suspendeu, magnífico, estes orbes de luz que nos aclaram (…) o Deus que me
criou, que no teu rosto pôs o traslado da beleza eterna. Este, este é o meu
Deus, e falso é ele.
VII
Segundo Teófilo Braga, Garrett
seguiu, em “D. Branca”, o estilo digressivo e faceto do “Oberon”. Por outro
lado, num tese de José Joaquim Dias Marques, considera-se que Alina tem mais a
ver com as fadas do “Oberon”, que com as do folclore português. Não li a obra
de Wieland, traduzida para português por Filinto Elísio, em 1802, sabendo, porém
que, no seu enredo, figura uma Princesa moura, raptada por um cavaleiro
cristão. Assim, irei abordar, agora, outras obras, com laços reais ou apenas
aparentes com a “D. Branca”.
Na mesma Cidade (Paris) e no
mesmo ano (1826) da publicação de “D. Branca”, surgiu um livro que viria a
ganhar celebridade. A heroína chama-se Doña Blanca, cristã, o herói,
Aben-Hamet, muçulmano; a acção decorre em Granada, algum tempo depois da conquista
pelos Reis Católicos e o Alhambra, que os dois enamorados visitam, lembra um
palácio encantado; um duelo, entre Aben-Hamet e o irmão de Doña Blanca,
recorda, pelo cavalheirismo dos dois, a luta entre Aben-Afan e D. Paio Correia.
Trata-se de “O último Abencerragem”. Entre a novela de René de Chateaubrind, na
realidade escrita dez anos antes, e o poema de Almeida Garrett, pouco há em
comum, além de serem histórias de paixões infelizes, entre um muçulmano e uma
cristã. Doña Blanca e Aben-Hamet teriam
podido realizar o seu amor, se um deles aceitasse renunciar à sua religião e adoptar a
do outro; ambos preferem manter-se fiéis à sua fé respectiva, sacrificando a
felicidade terrena. Chateaubriand lia, por vezes, em certos salões, excertos da
sua obra, mas é pouco provável que a eles tivesse acesso o modesto empregado da
“Maison Laffite”.
(
Um parêntese para sublinhar como, em muitos aspectos, foram paralelas as vidas destes
dois escritores de primeira grandeza, que fizeram, nas suas obras, a transição
para o Romantismo. Ambos sofreram as agruras do exílio, ambos foram sedutores,
amaram a vida, ambos brevemente Diplomatas e Ministros dos Negócios
Estrangeiros, ambos Viscondes. Situados, porém, em polos opostos do espectro
político, um legitimista, liberal o outro)
Já outra obra, porém, “Miragaia”,
de Garrett e por ele classificada como “romance reconstruído “, está estreitamente
relacionada com “D. Branca”. Garrett ouvira a lenda a criadas de sua casa,
desde criança e, numa quinta ao Sul do Douro, onde passou longas temporadas,
gostava de brincar na ruína de um castelo mourisco e de beber a água duma fonte
chamada “do Rei Ramiro”.
Segundo o romance, o Rei Ramiro
rapta Zahara, irmã do Rei mouro Alboazar. Este vinga-se, raptando Gaia, mulher
de Ramiro. O Rei cristão organiza uma expedição e, com um ardil, mata Alboazar,
cujo castelo incendeia, e traz consigo Gaia de volta. Ao atravessarem o Douro,
ela chora e, interrogada, responde: “mataste o mais belo moiro, mais gentil
mais para amar, que entre moiros e cristãos, nunca mais não terá par”. Ramiro,
furioso, degola-a e atira a cabeça à água. Garrett “reconstruiu” o romance,
mantendo a toada e o espírito populares.
“Miragaia” foi publicada, pela
primeira vez, apenas em 1843, 17 anos depois de “D. Branca” mas, como escreve o próprio Garrett, ”foi das
primeiras coisas deste género em que trabalhei: e é a mais antiga reminiscência
da poesia popular que me ficou da infância”. Tinha-a, pois, na sua mente,
quando escreveu “D. Branca”- nos dois poemas, uma dama cristã é raptada por um
Rei mouro, valente e cavalheiresco, por quem se apaixona. A libertação, isto é,
o regresso à Cristandade, tem, para ambas, consequências trágicas, punidas por
adultério (Gaia era mulher de Ramiro, Branca, freira, logo esposa do Senhor);
perdem a cabeça, Gaia no sentido literal, Branca metaforicamente. Por outro
lado, Aben-Afan e Alboazar também são castigados, mas morrem com honra, lutando,
os seus domínios são devastados. Os dois
têm irmãs, Oriana e Zahara, respectivamente Oriana, já anteriormente baptizada,
vai, por vontade própria, para um Mosteiro. Quanto à irmã de Alboazar, que
Ramiro raptara, o poema “Miragaia” nada acrescenta mas, no Livro de Linhagens
de D. Pedro, que dá uma versão da lenda, o Rei Ramiro leva-a até Leão, onde ela
é baptizada (com o nome de Ortiga), e, da união de ambos, descenderiam os
Senhores da Maia. As irmãs como que vêm compensar as “perdas” de Branca e Gaia.
E no enredo da obra-prima da
maturidade, “Frei Luís de Sousa”, encontramos alguns pontos em comum com “D.
Branca” e “Miragaia” – o regresso de um cristão que esteve preso em terra de
mouros, um casamento que se desfaz, um adultério, real ou imaginado, o convento
como expiação.
Com as duas últimas obras, que apenas
brevemente abordarei, voltamos a ter D. Branca como heroína.
A 6 de Janeiro de 1840, isto é,
14 anos após a primeira publicação de “D. Branca”, subiu à cena, no Teatro S.
João, do Porto, “O Almançor Aben-Afan, último Rei do Algarve”, peça em três
actos e em verso. O autor, José Freire de Serpa Pimentel, 2º Visconde de
Gouveia, exerceu cargos na Magistratura, foi Governador Civil do Porto, Par do
Reino. Escreveu ainda, entre outras peças, “D. Sisnando, Conde de Coimbra “,
“D.Sancho II” , “A moira de Montemor”.
“O Almançor Aben-Afan” põe de
novo em cena os dois protagonistas de “D. Branca”, mas a história é radicalmente
diferente, assim como o estilo e o espírito. A Infanta D. Branca, religiosa em
Holgas, e D. Pero Esteves Carpentos, Cavaleiro de Santiago, amam-se. Decidem ir
a Roma, procurar ser desvinculados dos seus votos. Ao largo do Algarve, o navio,
que os transporta, naufraga, vindo ambos, separadamente, a cair em poder de
Aben-Afan. O Rei de Silves não tem, aqui, qualquer semelhança com o “moiro
gentil” de Garrett, lembra mais o mouro de Veneza, mas Otelo assassinou
Desdémona num momento de loucura, de que logo se arrependeu, enquanto Aben-Afan
se revela verdadeiramente sanguinário. Deseja ardentemente Branca, desde o dia
em que a avistou, ao participar, incógnito, num torneio em Lisboa, do qual saiu
vencedor; apresentara o pedido da mão de D. Branca, que não foi aceite por
Afonso III.
Agora, multiplica rogos,
promessas, ameaças terríveis. Chega a dizer-lhe que se fará cristão, se ela for
sua uma só hora, e que se matará depois, mas Branca recusa sempre o que diz ser
pior que o amor de um tigre. O Mestre de Santiago envia um mensageiro comunicar
a Aben-Afan que, se não libertar a Infanta e os outros prisioneiros, ele virá
ocupar Silves. A obcecação do Rei é tal que diz aos seus próximos “ou ganhar
D. Branca ou perder tudo, que me importa a Pátria, que me importam palácios e
diademas, sem os braços gentis de D. Branca?”.
Por fim, não conseguindo os seus
propósitos, manda executar Branca de forma atroz. Já antes, para atormentar D.
Pedro, ordenara que fosse gravada, num mausoléu, esta inscrição “Da vingança o
punhal cravou-lhe o seio/ Violada e morta ao despontar da vida/ Do leito do
Almançor desceu à campa”. Mas, entretanto, os cativos cristãos soltam-se e
chegam as tropas portuguesas. Aben-Afan acaba por suicidar-se. Branca, em nome
do seu Pai, ordena o perdão e a paz, respeito aos de Mafoma, honrosa sepultura
a Aben-Afan, aos prisioneiros vida e liberdade.
A peça poderia, pelo carácter das personagens
e pela linguagem, servir de base para o libreto de uma ópera. Não faltam,
também, passagens melodramáticas, como quando se revela que o velho escravo
Mustapha é, na verdade, o Pai do Cavaleiro, que Aben-Afan lhe ordenara
assassinar. Parecem-me bem representativos desta fase do Romantismo, e não
resisto a transcrevê-los, os últimos
versos do primeiro acto, nos quais o Cavaleiro exclama: “E ao vil Aben-Afan
irei raivoso / C’o dente furibundo abrir-lhe as veias/Rasgar-lhe o coração/trincar-lhe
a vida”.
Finalmente, “Donna Bianca”, ópera
com prólogo e quatro actos, composta por Alfredo Keil, com libreto, em
italiano, de César Féréal. Estreou, a 10 de Março de 1888, no São Carlos. Foi
lá apresentada trinta vezes, entre 1888 e 1899 e, novamente, em Setembro de
2010, numa série de quatro espectáculos, em versão de concerto.
No plano da música, o compositor
foi fortemente influenciado por Massenet. O libreto pretende basear-se na obra
de Garrett, mas é mais uma recriação que uma adaptação. O primeiro encontro de
Aben-Afan com a Fada Alina tem lugar na “Floresta encantada de Sagres” (sic). Avista Branca em Burgos, no momento em que
ingressa no Mosteiro; não a rapta, ela segue-o de livre vontade, já que a
paixão de ambos é imediata. Cavalgam para o Paraíso e vivem a sua felicidade,
na Mansão das Huris. Mas Adaour, o confidente do Rei, vai lá contar-lhe a triste
situação do Algarve e condenar o abandono a que votou a Pátria, convencendo-o a
regressar. Por um vale deserto dirigem-se para o Algarve, seguidos à distância por
Branca, que Aben-Afan repelira. Perante a conquista iminente de Silves pelas
tropas cristãs, D. Branca promete ao Mestre de Santiago renunciar a
Aben-Afan, e voltar para junto do Pai, se for passado um salvo-conduto para o
mouro, caso ele ainda viva. Adaour crê que Branca está a atraiçoar Aben-Afan e
tenta matá-la. Aben-Afan entra, mortalmente ferido, lamenta ter deixado secar a
murta e despede-se de Branca. Expira e ela desfalece sobre o seu corpo.
Se D. Branca inspirou uma ópera,
cabe mencionar que, na “Suite El-Gharb “, composta pelo pianista Eurico Thomaz
de Lima, o primeiro andamento se intitula “Aben-Afan”.
1 comentário:
Muito bom!
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