Numa altura em que, na véspera de eleições, se discute obsessivamente a sustentabilidade do Estado Social como um dos temas dominantes da campanha, a publicação do livro Cuidar do Futuro - Os mitos do Estado Social português, de Pedro Adão e Silva e Mariana Trigo Pereira reveste-se de particular importância e oportunidade.
Sem pretender resumir aqui o livro, ainda que não muito extenso e bastante acessível, importa salientar alguns dos mitos abordados, cuja denúncia contribui para um cabal esclarecimento da matéria.
«O Estado Social tornou-se terreno fértil para o discurso demagógico, para a desinformação e para a manipulação estatística.», afirmam os autores, e que é uma evidência amplamente constatada nos quatro infelizes anos deste Governo.
Recorrendo às estatística oficiais, o livro demonstra, entre outras coisas, que:
1) A protecção social em Portugal é inferior, em % do PIB, à do conjunto dos países mais ricos da Europa (foram considerados Alemanha, Itália, Reino Unido e Suécia) e Estados Unidos. (Dados da OCDE, 2011);
2) A despesa social pública, per capita, em dólares (2011) é, em Portugal, largamente inferior à dos países estudados (em relação à Suécia é metade);
3) Com a introdução do factor de sustentabilidade (reforma do sistema de pensões de 2007), o valor das novas pensões deixou de ser calculado apenas com base no período de contribuições e nos salários e passou a ser também ajustado, tendo em consideração a esperança média de vida aos 65 anos. O factor de sustentabilidade foi introduzido com o objectivo de assegurar a neutralidade financeira e a equidade inter-geracional no sistema de segurança social português, sendo que esta alteração vai ter um impacto significativo na contenção da despesa com pensões no médio prazo, logo que a sua aplicação (passado o período de transição) entrar em velocidade de cruzeiro. Tratou-se, aliás, de uma reforma largamente elogiada pela União Europeia;
4) Os cortes efectuados pelo actual Governo no sistema de pensões não decorreu realmente do "Memorando de Entendimento". «Com efeito, o diagnóstico inicial efectuado pela troika não identificou o sistema de pensões como área prioritária de intervenção e de reforma, tema que ocupou, por isso, um lugar marginal no conjunto das reformas a que o estado português ficou, inicialmente, obrigado. Contudo, nas sucessivas avaliações e revisões ao Memorando de Entendimento foram introduzidas medidas com o objectivo de reduzir a despesa com pensões - quer por via fiscal, quer por via de redução de montantes e subsídios. Assim, por opção política do Governo, a Segurança Social foi chamada a apoiar o esforço de reequilíbrio das contas públicas. A responsabilidade desta opção política governativa foi de certo modo ofuscada, uma vez que as novas medidas, inseridas no contexto do Programa de Ajustamento, tornaram-se passíveis de serem confundidas com as orientações da própria troika. No entanto, uma análise atenta e mais aprofundada permite identificar nas mudanças introduzida ao Memorando de Entendimento inicial com a troika a acção discricionária do Governo e, em particular, a prossecução de uma agenda política de desmantelamento da Segurança Social e do sistema de pensões.»
5) Tem-se tornado um lugar-comum afirmar que o sistema de protecção social português não é sustentável financeiramente, que o Estado Social gasta mais do que o país pode suportar. Invoca-se que as transformações demográficas, nomeadamente o aumento da esperança média de vida e o declínio da taxa de natalidade (e também o surto emigratório dos últimos anos) produzem, só por si, um efeito que, a médio prazo, levará a não ser possível os idosos de amanhã beneficiarem dos níveis de protecção social semelhantes aos que beneficiam os pensionistas de hoje. Há até quem acredite , especialmente entre os mais jovens, que quando chegar o momento da sua reforma não haverá dinheiro para pagar pensões. Nesta linha de pensamento, para o Estado manter o compromisso com os pensionistas teria de recorrer a transferências do Orçamento do Estado para o orçamento da Segurança Social, o que provocaria o desequilíbrio das contas públicas.
Sobre a evolução da população portuguesa (e com todas as reservas que a evolução da situação internacional aconselha, digo eu) verifica-se um aumento gradual da esperança média de via, maior para as mulheres do que para os homens, de acordo com a evolução na Zona Euro. Resumindo: em 2013, após terem completado 65 anos, os homens viviam em média mais 17 anos e 6 meses e as mulheres mais 22 anos e 2 meses. A previsão para 2060 é de 22 anos e 3 meses para os homens e de 25 anos e 6 meses para as mulheres. Ainda quanto às transformações demográficas, e excluindo qualquer grave imprevisto (aliás, estas previsões baseiam-se em situações normais; um grave conflito mundial alteraria todos os pressupostos) haverá um declínio da população portuguesa, nos próximos 50 anos, de 10,5 milhões para 8 milhões. Em termos etários, a população com mais de 65 anos em relação à população dos 15 aos 64 anos, que é em 2013 de 29,8%, aumentará em 2060 para 63,9 %. Sendo um aspecto a considerar, há que ter em conta a evolução da economia e do emprego. Isto é, o factor demográfico não pode considerar-se independentemente do factor económico para avaliar da sustentabilidade da segurança social. Mesmo que o crescimento seja modesto nos próximos anos, uma diminuição da população conduzirá a um crescimento do rendimento per capita dos portugueses. A evolução da despesa bruta pública com pensões em % do PIB, que é de cerca de 14% em 2013 (12% na Zona Euro), devendo atingir um pico de 15% em 2033, declinará até 13% em 2060 (12% para a Zona Euro). Contudo, estes números têm de ser analisados cuidadosamente, já que coexistem no espaço europeu sistemas muito diversos de protecção social, o que explica esta diferença em relação à Zona Euro, mas a sua análise, detalhada no livro, não é comportável neste texto.
6) Na impossibilidade material de apresentar aqui todos os números que ilustram no livro a desmontagem dos mitos sobre o Estado Social e de explicar as demonstrações dos autores, citaremos algumas passos que se afiguram mais importantes:
«No entanto, contrariamente ao que é muitas vezes afirmado, o Estado Social é uma inovação histórica e um instrumento político de grande eficácia, não apenas pela sua capacidade para lidar com as formas mais severas de pobreza, mas como integra e protege todos, e em particular as classes médias, redistribui recursos ao longo do ciclo de vida, ao mesmo tempo que estabiliza o conjunto da economia, atenuando os efeitos dos ciclos económicos sobre os rendimentos das famílias e, consequentemente, sobre variáveis determinantes para o crescimento, como o consumo. A crença de que o Estado Social se dirige sobretudo aos mais pobres cria a ilusão de que, apesar de todos contribuírem, apenas alguns beneficiam, pondo em risco a coesão social (colocando "uns" contra "outros") e diminuindo os incentivos à participação plena num sistema de protecção social, através do seu financiamento por via de contribuições e impostos.»
«Quando, no último quartel do século XIX, na Alemanha de Bismarck, são criadas as primeiras prestações sociais (de velhice, doença e invalidez), baseadas num sistema de repartição (assente em contribuições específicas sobre os salários), numa lógica de seguro social, o que estava em causa não era uma preocupação específica com a pobreza. Pelo contrário, o objectivo era proteger as classes médias emergentes, isto é, os assalariados, de eventuais riscos sociais que os impedissem de trabalhar e levassem à perda do rendimento salarial (à cabeça, a velhice, a doença e a invalidez e, só mais tarde, o desemprego seria protegido). Neste processo, podemos identificar uma grande transformação, na qual é possível detectar as origens políticas e sociais do nosso tempo.»
«Isto não quer dizer que o combate à pobreza e às formas extremas de privação material não faça parte dos objectivos do Estado Social. Faz, mas a principal inovação associada ao Estado Social não é tanto a promoção da redistribuição e de políticas solidárias, é, sim, a criação de prestações substitutivas do rendimento do trabalho, baseadas no seguro social e diferenciadas de acordo com os rendimentos e contribuições anteriores.»
«A opção histórica por sistemas de repartição (nos quais os descontos de hoje financiam as pensões de hoje) e a preocupação com a promoção da solidariedade inter-geracional explicam-se pela necessidade de formar comunidades de pertença que encontraram na protecção social universal um poderoso cimento social e político. Um nível adequado da protecção social pública revela-se ainda, neste contexto, fundamental para impedir que as classes médias, em particular, optem por alternativas privadas de protecção, deixando de contribuir para o sistema, empobrecendo-o, e favorecendo uma dualização do sistema de protecção social, assente em sistema de mínimos, dirigidos aos pobres, e sistemas privados, mais generosos, para as classes médias-altas. Esta dualização tem consequências para o agravamento das desigualdades e da coesão social. Daí que um retrocesso radical do Estado Social seja também uma ameaça aos alicerces do regime democrático.»
Um dos aspectos que tem suscitado controvérsia na opinião pública é o caso das chamadas reformas "douradas" ou pensões "milionárias". Estas pensões resultam de carreiras contributivas distintas ou de regimes de privilégio já extintos ou muito limitados. Da totalidade dos pensionistas, apenas 3,0 % recebem pensões entre 2501 e 5000 euros. E apenas 0,1 % recebem pensões acima de 5000 euros.
Outro aspecto agora muito discutido, e desejado pelo actual Executivo, é o do plafonamento da Segurança Social. Isto é, a adopção de um tecto no valor da remuneração sobre a qual incidem as contribuições e ao qual corresponderia mais tarde um tecto nas pensões a pagar. Existem dois tipos de plafonamento: o horizontal e o vertical. No "horizontal" há um tecto contributivo, dado que apenas uma parte do salário é sujeita a contribuições obrigatórias. Por exemplo, quem recebesse 5000 euros por mês, apenas 4000 seriam sujeitos a contribuições e o restante ficaria isento. A pensão, na devida altura, seria obviamente calculada sobre os € 4000. No "vertical", independentemente do valor do salário, só uma percentagem seria sujeita a contribuição obrigatória. Admitindo, por exemplo, uma percentagem de 80 % e um salário de 3000 euros, apenas 2400 seriam sujeitos a contribuições. Quer num caso, quer noutro, o remanescente poderia ser canalizado para regimes de capitalização de gestão privada ou pública, ou para investir noutras formas de poupança, ou pura e simplesmente para gastar, sem preocupações com o futuro. É evidente que o plafonamento tem muitos inconvenientes. Entregar o excedente a instituições privadas, corre-se o risco das instituições falirem, como tem acontecido um pouco por todo o mundo. Até em Portugal, instituições bancárias supostamente sólidas, como o BPN, o BPP ou o BES, para não me alongar, faliram de um dia para o outro. O facto dos trabalhadores poderem gastar o dinheiro no imediato, poderá conduzir a que venham a encontrar-se sem recursos na altura devida, e a constituírem mais um peso para as famílias ou para o próprio Estado. Além disso, o plafonamento põe em caso o princípio da solidariedade inter-geracional que já se referiu acima. Também, com a introdução de tectos contributivos o défice do sistema de segurança social acentuar-se-ia automaticamente, sendo necessário compensar a diminuição da receita de forma a garantir o pagamento das prestações dos actuais beneficiários.
7) Continuando a análise do livro, e na impossibilidade de transcrever os numerosos gráficos elucidativos, cite-se mais um passo sobre a presença do terceiro sector no apoio social:
«Quando pensamos na rede de respostas às famílias, designadamente creches e lares, bem como nas políticas de assistência social e de combate à pobreza, Portugal apresenta, de facto, uma singularidade significativa. A ausência de respostas públicas que garantam níveis de cobertura satisfatórios é compensada por uma forte presença de terceiro sector, que assegura as responsabilidades que o Estado não assume. Este é composto por instituições privadas de solidariedade social, misericórdias, mutualidades, cooperativas, associações de desenvolvimento e outras entidades que, sendo de natureza privada, operam fora de uma lógica de mercado, não têm fins lucrativos e movem-se por propósitos marcadamente sociais.»
«Neste quadro, aliás, a sociedade civil portuguesa apresenta, do ponto de vista comparativo, outro conjunto de características únicas. Ao mesmo tempo que Portugal se caracteriza por ter níveis de participação em organizações da sociedade civil muito baixos no contexto europeu, esta debilidade coexiste com um peso relativamente significativo da sociedade civil organizada em torno de respostas sociais. Assim, os serviços sociais são uma parte desproporcionadamente grande da sociedade civil portuguesa, e a sociedade civil organizada, ligada às áreas sociais, é comparativamente muito superior à sociedade civil portuguesa no seu conjunto.»
«As singularidades do caso português têm explicações de natureza histórica. Antes do 25 de Abril e da transição para a democracia, o Estado assumia um papel supletivo, e as necessidades de resposta à família e de combate à pobreza recaíam, no essencial, sobre as mutualidades, as misericórdias e as hoje denominadas instituições particulares de solidariedade social (IPSS). Se bem que, com a transição para a democracia, o Estado Social português se tenha desenvolvido muito, com as políticas públicas a chamar a si muitas responsabilidades, alargando por isso os níveis de cobertura e os riscos protegidos, a verdade é que o papel atribuído ao terceiro sector continuou a expandir-se, sendo a acção das entidades que o compõem uma realidade ainda mais presente na sociedade dos dias de hoje. Esta trajectória foi, contudo, desigual.»
«Em democracia, assistiu-se a um crescimento significativo das IPSS, por contraponto com alguma anemia ao nível das mutualidades e um incremento moderado das misericórdias. Este padrão desigual no crescimento do terceiro sector é resultado dos incentivos dados pelas políticas públicas. Nos casos em que a protecção foi definida enquanto direito universal financiado, gerido e fornecido pelo Estado, o espaço da sociedade civil diminuiu. Por isso mesmo, a criação do Serviço Nacional de Saúde no pós-25 de Abril e a expansão da Segurança Social pública fizeram reduzir, respectivamente, os incentivos à expansão das misericórdias (que têm como actividade central a prestação de cuidados de saúde) e das mutualidades (tradicionalmente mais envolvidas na gestão das prestações sociais de base mútua).»
Porque este post é já longo, não será possível, mesmo muito sinteticamente, referir os últimos aspectos abordados nos últimos capítulos do livro. Diga-se apenas que os beneficiários de pensões mínimas não são todos pobres, já que muitos optaram, por razões pessoais, por descontar o mínimo, constituindo outras formas de poupança. Diga-se também que o Complemento Solidário para Idosos (CSI) é um instrumento essencial para assegurar patamares mínimos de rendimentos à população idosa em situação de maior vulnerabilidade financeira.
Finalmente, «um dos preconceitos mais comuns em torno das políticas sociais promovidas pelo Estado prende-se com a percepção, muito disseminada na sociedade, de que não só as prestações sociais são um incentivo à preguiça, como muitos beneficiários abusam dos benefícios que recebem e que são financiados por impostos e contribuições pagos por todos. Estas visões alimentam frequentemente discursos xenófobos contra determinados grupos da sociedade que serão particularmente hábeis em explorar o sistemas de prestações e viver "à custa do Estado". O Rendimento Social de Inserção (RSI) é um alvo frequente destes discursos, mas outras prestações, como o subsídio de desemprego, também são habitualmente evocadas para criticar a "subsidiodependência", que é a outra face da fraca eficácia do sistema em apoiar aqueles que de facto precisam. Não só esta crença degrada a confiança dos cidadãos nos sistemas de protecção social, como é aproveitada (e cavalgada) politicamente para justificar cortes e limitar o acesso a estes apoios sociais.»
« Os beneficiários do subsídio de desemprego não são tão estigmatizados, nem alvo do mesmo nível de desconfiança, que os beneficiários do RSI, e, como vimos, o direito a estas prestações depende de contribuições prévias - o que significa que existe a percepção de alguma "reciprocidade" na sua atribuição, utilizando a categorização de Van Oorschot a que fizemos referência no inicio do capítulo.»
«No entanto, embora em menor grau, existe também em relação aos beneficiários do subsídio de desemprego juízos frequentes sobre se serão "merecedores" de apoio, se se esforçam por procurar emprego ou preferem antes viver "à custa do Estado".»
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Este livro, como se diz no início não procura apontar pistas mas desmontar algumas das ideias feitas que se foram disseminando em torno do Estado Social português.
O que acima se escreveu é um resumo indubitavelmente imperfeito dos vários capítulos do livro, omitindo, por uma questão de espaço, a maior parte dos dados estatísticos e os gráficos elucidativos que acompanham o diagnóstico dos autores. Os interessados na matéria deverão ler o livro, que muito contribui para o esclarecimento de um assunto que, naturalmente, preocupa todos os portugueses.
Caberá ao leitor, face ao exposto, tirar as conclusões sobre as medidas de desmantelamento do Estado Social iniciadas desde há quatro anos pelo actual Governo. Creio que não subsistirão dúvidas quanto à vontade política de fazer incidir sobre o Estado Social as mais gravosas medidas invocadas para o combate ao défice e à dívida. E também de destruir progressivamente (com que fins?) a classe média.
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