terça-feira, 6 de outubro de 2015

A "OPÉRATION CÉSAR"




A revista "Le Nouvel Observateur", há meses rebaptizada como "L'Obs", é, desde 1964, data da sua fundação, o semanário da esquerda intelectual francesa. A sua vida nem sempre foi fácil, especialmente nos últimos anos, nem as modificações editoriais e gráficas foram sempre as mais felizes, mas a revista é ainda uma referência incontornável no panorama jornalístico francês.

Tenho acompanhado a sua evolução, praticamente e ininterruptamente desde o início, e continuo a achar que a informação que divulga me é proveitosa, embora considere que, em algumas épocas anteriores (já lá vão 51 anos e perto de 2700 números), o seu conteúdo me interessou mais do que agora.

Não posso por isso deixar de estranhar certas orientações que, já no passado mas ainda mais no presente, a reviste assume em termos de política internacional.

Vem isto a propósito da notícia, com honras de 1ª página, da edição desta semana (nº 2656) sobre a barbárie do regime de Bashar Al-Assad. O conteúdo do dossier incluído neste número é, no mínimo, espantoso e destina-se a propagandear o livro Opération César, que será lançado amanhã, dia 7. A sua autora é Garance Le Caisne, uma jornalista independente, agora apresentada como colaboradora da revista. Segundo a imprensa, reúne o livro 45.000 fotografias e documentos de detidos torturados até à morte, que um suposto fotógrafo da polícia militar síria, com o nome de código "César", conseguiu exfiltrar de Damasco durante dois anos, até ter conseguido refugiar-se anonimamente num país europeu, e que constituirão provas avassaladoras dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade praticados pelo regime de Bashar Al-Assad.

Ao longo das oito páginas que "L'Obs" dedica ao assunto, a senhora Le Caisne, jornalista francesa de quem nunca ouvira falar, ainda menos como colaboradora da revista, mas será certamente falta minha, empenha-se em demonstrar que o regime sírio é uma câmara de horrores, uma máquina de morte, a mais sangrenta das ditaduras. Nesta tarefa, é acompanhada pela jornalista Sara Daniel, essa já bem familiarizada com todos nós, até porque é filha de Jean Daniel, o fundador e ainda editorialista da revista.

Quanto ao fotógrafo César, que forneceu as fotos e confiou a sua verdade dos factos, ele é apenas conhecido, por questões de segurança, da própria autora do livro.

O leitor desprevenido sentirá com certeza a maior indignação perante estas revelações e por aquilo que suponho constitua o conteúdo do livro, que ainda não li, pois só é publicado amanhã, mas que depreendo pelos depoimentos.

Suscitam-se, todavia, algumas interrogações. Admitindo que o autor das fotografias não pode dar a cara (o que é compreensível), não deixa de ser extraordinário que num regime feroz como é classificado o regime de Damasco seja possível enviar para o exterior, durante dois anos, 45.000 fotografias e outros documentos confidenciais. Uma grande negligência dos serviços de Bashar Al-Assad!

E quem pode assegurar que estas fotografias são verdadeiras e respeitam a civis (crianças e adultos) sírios? Será bastante a afirmação do fotógrafo César e das senhoras Garance e Sara Daniel? Também Bush, Blair, Aznar e Barroso (chefes de Estado e de Governo com pesadas responsabilidades internacionais) juraram a pés juntos que o Iraque possuía armas de destruição maciça e, afinal...

Também a oportunidade de lançamento do livro levanta algumas dúvidas. Porquê agora? Porque a Rússia e a China decidiram intervir militarmente para evitar a destruição total do país? Porque a política sionista de Hollande e Fabius considera conveniente um ataque desta natureza contra o presidente sírio, numa altura em Benjamin Netanyahu está seriamente preocupado com as ligações daquelas potências e do Irão ao regime sírio? Não sabemos.

Eu, que visitei algumas vezes a Síria, não ignoro a natureza ditatorial do regime, embora me parecesse ser menos opressivo do que o de outros países, como por exemplo a Arábia Saudita, com quem o Ocidente sempre manteve, e mantém, as melhores relações. Achei até que havia alguma liberdade de expressão, para lá da liberdade de costumes e da liberdade religiosa, vantagens de um estado laico. Recordo que um dia, num teatro do centro de Damasco, assisti a um espectáculo (que era para sírios, não para turistas) em que se gozava abertamente com a polícia política do regime, os famosos mukhabarat. E sempre me desloquei livremente e nunca fui incomodado pela policia todas as vezes que percorri o território sírio.

No momento presente, em que se considera que uma solução de paz para a Síria tem de passar também por um entendimento com Bashar Al-Assad, "L'Obs" declara na capa da revista que ele é INFREQUENTÁVEL. O que é uma afirmação perigosa, quer politicamente, quer jornalisticamente, pois haverá pessoas que passem a considerar que infrequentável é também a revista "L'Obs".

É bom não esquecer que a Síria se encontra em guerra. Numa guerra que já não é civil, mas uma guerra de parte de um povo contra guerrilheiros estrangeiros, enviados por potências que não ousam dizer o seu nome. E numa guerra, em qualquer guerra, são cometidos os maiores atropelos, as maiores atrocidades, terríveis crimes, muitas vezes ajustes de contas pessoais.

Ao duvidar sobre a completa autenticidade do livro Opération César, não quero ilibar o regime de Damasco de crimes que certamente cometeu. Mas pergunto quem é responsável por maior número de vítimas? Bashar Al-Assad provocou mais mortos do que as bombas atómicas americanas sobre Hiroshima e Nagasáqui, do que o bombardeamento britânico de Dresden, do que as execuções da polícia francesa durante a guerra da Argélia, do que os campos de concentração nazis ou os gulags soviéticos, do que as vítimas da invasão anglo-americana do Iraque? A resposta só pode ser uma: NÃO!

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