domingo, 2 de agosto de 2015
A EUROPA SUBSTITUIU O CREDO DOS VALORES PELO CREDO DO MERCADO
Adriano Moreira em entrevista ao jornal "i":
“É preciso reformular o estatuto do Presidente”, diz sobre o cargo a que nota falta de “autoridade reconhecida”.
Foi uma conversa de identificação de caminhos para a Europa – e o país com ela – contornar os “erros” que foi cometendo, depois de formada por estadistas como hoje Adriano Moreira diz já não ver. Atento, firme nas convicções (sobretudo na fé em que foi educado), rápido, mordaz nas entrelinhas. O académico, antigo ministro do Ultramar, deputado, ex-presidente do CDS, contorna com elegância avaliações governativas (embora registe que o país piorou), previsões eleitorais. Ainda assim, confrontado pelo i, acabou por soltar que Sampaio da Nóvoa é “um intelectual respeitado”, “foi um excelente reitor da Clássica”. Recebeu o i na Academia das Ciências de Lisboa, falou de si e da família, mas sobretudo dos tempos que mudaram ao ponto de hoje se exigir uma refundação dos partidos.
Foi deputado durante um período (79 a 91) em que apanhou de tudo, governos de maioria relativa, absoluta, bloco central. Hoje é fundamental um governo de maioria absoluta?
A exigência de o governo ter maioria absoluta é permanente nos regimes democráticos e é natural que essa exigência esteja sempre presente nos partidos que concorrem à governação. Quando as divergências são ideológicas, essa ambição é mais acentuada. Em época de crise é importante sublinhar que se conseguiu fazer isso em paz. Neste momento a minha convicção é que seria necessário começar por cada partido, rever a sua definição formal. Ver se a definição ideológica de cada partido ainda é aquela que orienta a sua intervenção actual.
Acha que há essa disparidade hoje?
O mundo é completamente diferente hoje. As exigências são outras e a própria sociedade civil sofreu alterações fundamentais quanto à escala de valores, designadamente à definição de instituições, a começar pela família. Está a diminuir em toda a Europa a relação de confiança entre as sociedades civis e os governos, o que se mede pelas abstenções. Estão a multiplicar-se os partidos que reagem contra a organização europeia, e o movimento das pequenas pátrias (Espanha, Itália, França) ameaça a União. A própria Europa está dividida em duas europas: a dos pobres (Chipre, Grécia, Itália, Portugal, ou seja, o Império Romano) e o Norte. De tal maneira que os caminhos por onde os bárbaros desceram para destruir o Império são aqueles por onde hoje sobem os imigrantes em busca de futuro.
Os países mais pobres tendem a eleger soluções que contrariam as soluções dos países mais ricos. Esta Europa é compatível com a democracia?
Uma coisa que as pessoas que cultivam as ciências sociais sabem é que não se sabe prever com segurança o caminho único. Os juízos de probabilidade são uma audácia e os de possibilidade devem ser feitos com a modéstia de esperar que apareça algum cisne negro que impeça os poetas de dizerem que todos os cisnes são brancos. A Europa tem neste momento uma crise mais séria do que é costume pôr em evidência. Tem a crise económica e financeira, mas também tem de resolver se a Grécia é um problema da Europa ou só da Grécia. Tem de resolver como vai evoluir o problema das pequenas pátrias, sobretudo a Inglaterra, depois da última eleição. E tem o problema da evolução do mundo muçulmano, do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que, na sua última mensagem, declarou que tem como objectivo destruir a nossa Roma e os nossos símbolos. Leva qualquer pessoa atenta a perguntar se é uma declaração de guerra ou se estamos em paz. Não é de estranhar que a responsável pela segurança e defesa autónoma da Europa tenha proposto a criação de um exército europeu. Não tenho vistos comentários, mas tenho uma inquietação: há sobras orçamentais para organizar uma segurança e defesa efectivas?
Nos últimos quatro anos Portugal foi conduzido pela troika. Discute-se se o país está ou não melhor que em 2011. Tem alguma resposta?
Tenho ouvido a resposta oficial. O Estado está melhor, a população julgo que não se sente melhor. Empobrecemos enormemente. A evolução de Portugal verificou-se neste sentido, sem mencionar governos responsáveis porque a geração viva tem é de se preocupar com o problema que enfrenta neste momento. Parece difícil que consigam uma convergência, que aliás tem sido muitas vezes proposta pelo Presidente da República. Mas há um problema que é fácil de enunciar: os portugueses precisam de trabalho e pão sobre a mesa. É uma coisa simples. A evolução do país pode ser caracterizada desta maneira: exógeno, sofre as consequências das decisões em que não participou, e depois ficou um país exíguo, com uma relação negativa entre objectivos e recursos. E finalmente uma situação de protectorado que se traduziu na troika. Essa foi das situações que senti mais humilhantes.
Este último resgate?
Não gostei de ver ministros portugueses a discutir com empregados das organizações. Eu sei que tenho empregados melhores que eles próprios na universidade e os ministros devem estar no Conselho Europeu, a discutir as circunstâncias reais da Europa e impor talvez uma regra: que o poder da palavra pode vencer a palavra do poder. É por isso que a representação política tem de discutir em pé de igualdade, mas nos centros de decisão.
Acha que que este governo foi demasiado submisso à...
... à troika. Os ministros vão aos órgãos representativos do poder discutir, com a convicção de que o poder da palavra é capaz de vencer a palavra do poder. Tivemos um grande exemplo com o padre António Vieira, na Restauração, que o praticou e teve grandes resultados. Isto também aconteceu noutros países. A crise é global e há consequências negativas enormes. Na Europa está a diminuir gravemente o apoio ao projecto europeu. E há um problema que foi mal conduzido que é o das migrações. Tivemos uma grande tradição europeia, ecuménica, de receber os sábios de qualquer lugar, e isso foi, no processo da União Europeia, substituído por uma espécie de culturalismo de portas abertas. Os imigrantes que vieram instalar-se na Europa foram gente que em grande parte não foi protegida pelas leis do trabalho, não foi justamente remunerada, não foi objecto de protecção do Estado social e sobretudo de políticas de integração. Em vez de serem comunidades, são multidões que reagem com violência às injustiças que ultrapassam a sua capacidade de esperar em paz por um futuro melhor.
Faz um quadro de pressão da Europa, por dentro e por fora. Há um conflito iminente?
Eu sou um europeísta convicto, mas acho que a Europa cometeu três erros. Procedeu ao alargamento sem nenhum estudo de governabilidade, e essa dificuldade tem sido enfrentada pouco a pouco. Depois definiu uma segurança e defesa autónoma em relação à NATO, mas não conheço nenhum estudo sobre fronteiras amigas. E uma das grandes dificuldades do projecto europeu é não ter um consenso estratégico. Não consegue decidir se quer uma Alemanha europeia ou uma Europa alemã. Tem de decidir se marcha para o aperfeiçoamento da União ou para um modelo federal.
Nas eleições legislativas, acha que...
Não acho nada antes de publicarem os programas.
O governo merece ser reeleito?
Não quero fazer comentários agora, pela razão que disse.
Mas do ponto de vista do país é importante saber como é afectado por esses desafios que levanta.
Portugal precisou sempre de um apoio externo. Afonso Henriques declarou-se logo súbito do Papa, a segunda dinastia precisou da aliança inglesa. Quando acabaram os impérios europeus, Portugal só tinha uma via: acompanhar a Europa de acordo com aquela ideia de que o regionalismo em relação à unidade europeia é indispensável para defender a nossa maneira de estar no mundo. Portugal precisa de uma janela de liberdade.
Mas quem pode ser esse novo apoio externo, onde está essa janela?
De todos os países europeus que tinham colónias, o único capaz de criar uma CPLP chama-se Portugal, o que significa que temos uma comunhão de afectos que ultrapassou um combate que durou tanto tempo. Além disso, a história dos heróis do mar... O grande problema é a plataforma continental, que é provavelmente a maior do mundo, mas que precisa de ser reconhecida pelas Nações Unidas. Há estudos profundos, com as maiores dificuldades financeiras, das universidades de Aveiro, do Algarve e dos Açores, bem como da Academia de Marinha. A riqueza dessa plataforma continental é incomensurável, mas a UE anda a ver se define o “mar europeu”. Se conseguir antes de nós termos reconhecido a plataforma, perdemos a janela de liberdade porque a plataforma passa a ser da Europa toda. Nenhum destes problemas está no programa de qualquer partido. Portugal tem janelas de liberdade que não pode esquecer.
Não existe essa sensibilidade dos partidos?
Não sei, pergunte-lhes... ainda assim fui convidado para ir falar disto à comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros.
E houve sensibilidade para o tema?
Sim... É evidente que isto envolve problemas financeiros, mas estamos a falar de um segundo problema. Possuir a plataforma é um grande capital.
Já várias vezes falou na relação difícil dos partidos com a sociedade civil. Porque acontece isso?
Há uma certa passividade, uma espécie de lei da inércia. Mas não vou falar nisso agora. A reforma do Estado tem de começar pelos partidos. A multiplicação de pequenos partidos na Europa é a prova de que isso é preciso. E hoje há entre nós mais um a sair da sociedade civil, um grande jurista [pega num jornal e aponta a notícia da candidatura de Ricardo Sá Fernandes a deputado pelo Livre]. Isto que está a acontecer na Europa é a prova provada de que os partidos têm de rever os seus programas. Quem fundou a Europa? As democracias cristãs? E têm importância na Europa hoje? Não...
Na matriz da democracia cristã estão coisas básicas que se mantêm. Quando assumiu a presidência do CDS, em 1986, disse que “o partido tinha de assumir a obrigação com os pobres”. Não sente desilusão pela falta de adesão desta máxima à realidade?
Não é só no país, é em toda a Europa. A Europa substituiu o credo dos valores pelo credo do mercado. O mundo é outro e os partidos precisam de se rever. E de retirar valores religiosos do conceito estratégico. Quando estive na delegação portuguesa da ONU, o secretário-geral era Hammarskjöld, que foi assassinado. Eu era um jovem e tinha uma grande admiração por ele, porque fosse qual fosse a hora a que nos deitássemos a janela dele estava acesa. Fez uma sala nas Nações Unidas toda despida, com uma pedra mármore e uma luz que batia na pedra. Chamava-se sala de meditação para todas as religiões: ele sabia que o conflito vinha aí.
A refundação de que fala é regressar aos valores-base?
Não é regressar, porque isso queria dizer que já se tinha feito uma vez. É pôr em vigor os princípios. Duvido muito que isto esteja nos programas dos partidos, cá e no mundo. O principal agora é o credo do mercado.
Mas em Portugal somos governados pela democracia cristã...
Mas isso foi quando entrámos na Europa e com o PS. Porque o Estado social é uma convergência entre a doutrina social da Igreja, a social-democracia e o socialismo democrático. Esses valores transformaram-se então no núcleo fundamental da Europa.
Eu estava a falar nos últimos quatro anos, em que PSD e CDS estão juntos no governo.
Sim, mas com a troika. A política é a da troika.
Não é uma desculpa deles?
Não, é um facto. A Europa toda está submetida ao valores do credo do mercado. É por isso que o Papa Francisco disse o que disse: “Esta economia mata.” Não estava a falar só para Portugal, mas para a Europa toda.
Se a dependência externa é tanta, é indiferente o voto nas legislativas. É isso?
Em Portugal, o número de reuniões cheias que não são organizadas pelos partidos nem pelos sindicatos multiplicam-se. Há uma busca e ainda não apareceram as vozes. A formação da União Europeia teve estadistas espantosos e hoje não tem estadistas dessa dimensão.
O país está prestes a escolher líderes políticos para dois ciclos, um no governo e outro para a Presidência da República. Vê alguma figura que tenha capacidade para estes cargos?
Houve um analista francês que, há dois anos, inventou a palavra “inidentidade”, a propósito da sucessão de poder na China, que foi inesperada. Há pessoas que têm capacidade, mas a população não as conhece porque ou falam ao ouvido do príncipe ou pertencem a uma burocracia que governa mas é discreta. O perigo é que quando aparecem estas pessoas a comunicação social cria uma imagem que não corresponde à realidade. Devemos pedir à comunicação social que não deixe isso acontecer nas próximas eleições. Tragam a imagem real dos candidatos. Precisamos de saber coisas sobre a personalidade real deles.
Há um candidato no terreno com essas características, António Sampaio da Nóvoa. Que ideia tem dele? Daria um bom Presidente da República?
Foi um excelente reitor da Clássica, foi o principal obreiro da fusão entre Clássica e Técnica, é um intelectual respeitado. O debate eleitoral, se for sobre os problemas do país, e não sobre o Estado-espectáculo, é que mostrará a capacidade.
De que espécie de Presidente da República precisaria o país?
Não quero falar sobre isso...
Porque é que tem tantas reservas em falar do que se passa no país?
É sobre o que se vai passar. Sobre o que se passa julgo que tenho falado bastante. Não me apetece ser adivinho. É como os júris da universidade, o voto é secreto... Depois transformam tudo numa intriga. Mas há uma coisa: é preciso reformular o estatuto do Presidente da República, que é um problema português desde a queda da monarquia. Acabou o poder moderador do chefe de Estado e a partir daí a impressão que tenho é que o país não se reconciliou com essa figura. É preciso redefinir os poderes do chefe de Estado, e sobretudo quando se diz que é o supremo magistrado da Nação é preciso perceber que há uma diferença entre poder e autoridade e que a autoridade da palavra tem de ser reconhecida. Agora, para isso, lembro o preceito de S. Paulo: quem tiver o carisma de ensinar que ensine. É isto. Há chefes de Estado que têm esse carisma, quando falam têm a autoridade. Não é poder, é autoridade. E a sociedade reconhece a autoridade talvez mais facilmente que o poder.
E há quanto tempo não vê esse carisma em Portugal?
Até desejaria dizer-lhe a data exacta, mas não, seria grave enganar-me.
Mas acha que a capacidade de intervenção do Presidente da República é diminuta?
Acho que sim. Acho que a autoridade do Presidente tem de fazer parte essencial daquilo que é o civismo. Não preciso de quem tenha mais poderes, preciso de ter alguém cuja autoridade seja reconhecida, a quem as pessoas prestem atenção quando fala.
Mas isso depende da personalidade da pessoa que ocupa o cargo.
Não é da personalidade, é da educação cívica. Do que precisa a Presidência da República é de poderes bem claros, mas ao mesmo tempo quando se diz que é o magistrado supremo da Nação que isto não seja semântica.
Foi ministro de Salazar. Como é que acha que os portugueses convivem com a memória de Salazar?
Houve uma votação… [Salazar venceu o concurso “Os Grandes Portugueses” em 2007].
Como explica essa escolha?
É muito simples. O tempo muda as perspectivas e para se perceber isso é preciso talvez ver como a população transformou o marquês de Pombal em membro do Benfica. Não acha estranho um povo ir pôr a camisola do Benfica no Marquês de Pombal? Foi um grande estadista, mas um ditador.
A maioria dos portugueses tem admiração por Salazar?
Não sei. Não tive de fazer nenhum inquérito aos motivos que levaram as pessoas a votar.
Mas houve uma reconciliação?
Eu escrevi nas minhas memórias o que pensava de Salazar. Não quero acrescentar mais nada. Se tiver paciência vai ler “A Espuma do Tempo”, está lá escrito.
Tem uma filha [Isabel Moreira, deputada do PS] que está na política. Gosta dessa continuidade?
Eu gosto de todos os meus filhos. Cada um tem a sua personalidade. Foram educados com toda a liberdade e uma vez perguntaram-lhe numa entrevista: não entra em confronto com o seu pai? E ela respondeu: “O meu pai é o homem da minha vida.” Isto explica o ambiente.
Mas não tem simpatia por algumas causas que a sua filha defende, como o casamento homossexual ou a adopção por casais de pessoas do mesmo sexo.
Não. Não é essa a doutrina da Igreja, mas estou a acompanhar os avanços. Leio tudo. Há na Igreja muita gente a rever a doutrina. Por exemplo, o papel das mulheres. Tem sido feito um caminho enorme. No outro dia ouvi um comentário a que achei graça: então a mãe de Deus não merece respeito, só os homens? Há uma grande evolução e essa evolução é necessária, até porque a presença católica está a diminuir muito seriamente na Europa. Este Papa sabe isso.
A Igreja não tem acompanhado a sociedade?
Há muitas igrejas. O mundo mudou e não controlámos isso.
Nunca questionou a relação com Deus?
Não, porque foi a minha mãe quem me ensinou. A minha mãe ensinou-me que Deus é companheiro e nunca mais me esqueci disso. Nunca ando sozinho, nunca ando sozinho.
O professor já viveu muito. Este é dos períodos mais difíceis que já viveu?
Cá em Portugal é. Uma situação muito complicada, sobretudo para as pessoas de idade. Vão fazer o quê? Eu percebo que toda a gente esteja preocupada. Com o futuro, com os empregos.... Eu hoje vou à minha aldeia [Grijó] e não há uma criança. Não há uma criança. É terrível. Depois a aldeia depende de uma cidade que é Macedo de Cavaleiros. Cresceu imenso, mas só vejo anúncios nas janelas porque as casas estão à venda. Quando vemos este disparate da TAP, por exemplo, quantas pessoas é que podem ir para a rua?
Com a privatização?
Como é evidente, como é evidente. E não são pilotos. Os pilotos são dos melhores do mundo e têm todos emprego, mas quem trabalha cá em baixo, nas bilheteiras ou nos carrinhos, não tem as mesmas perspectivas.
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