quinta-feira, 23 de julho de 2015

O PRAZER E A DOR


«Deus castigou-o e entregou-o às mãos de uma mulher»

(Livro de Judith, XIII, o versículo varia consoante as edições da Bíblia)



A recente edição em DVD do filme Vénus de Vison (2013), de Roman Polanski, suscitou-me a curiosidade de reler um livro há longo tempo adormecido na minha biblioteca: A Vénus de Kasabaïka (1870), de Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), publicado em português em 1966, pelas Edições Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, com tradução de Anna Hatherly.



Escritor e jornalista, Sacher-Masoch é autor de mais de 30 títulos, entre ficção e não-ficção, que à época obtiveram grande sucesso, mas poucos são os livros que, com o decorrer do tempo, não caíram no olvido das gentes. A sua notoriedade presente adveio-lhe da obra citada, em que um homem sente inefável prazer ao ser açoitado e humilhado por uma mulher. Deve-se ao psiquiatra austro-alemão Richard von Kraftt-Ebing, que se debruçou sobre esta "anomalia sexual" até então pouco conhecida, a cunhagem da expressão "masoquismo", utilizada pela primeira vez no seu livro Psychopathia Sexualis (1886). O termo entrou no vocabulário corrente e emprega-se hoje independentemente do sexo dos protagonistas.


As considerações de Krafft-Ebing desagradaram a Sacher-Masoch, dado que o psiquiatra identificou com este a personagem masculina do livro. Todavia, a vida privada de Masoch saiu da penumbra quando Aurora von Rümelin, sua primeira mulher, publicou em Berlim um livro de memórias, Meine Lebensbeichte (1906), sob o pseudónimo de Wanda von Dunajew, sabendo-se que este é o nome da personagem feminina que exerce a violência sobre o homem que apenas pretende ser seu escravo. A tradução francesa das memórias, Confession de Ma Vie (1907), já exibe o nome de Wanda von Sacher-Masoch. Nesta obra, Aurora confessa que o marido (com quem casou em 1873) a pressionou contra sua vontade para viver a experiência do livro, que descreve uma relação real que ele mantivera anteriormente e durante seis meses com uma amante, a baronesa Fanny Pistor.

Também Carl-Felix Schlichtegroll, auto-proclamado secretário de Masoch, escreveu duas obras: Sacher-Masoch und der Masochismus e Wanda ohne Maske und Pelz, obras todavia polémicas e contraditórias.


Deve-se a Gilles Deleuze (1925-1995) um interessante ensaio - e dos mais completos - sobre a matéria: Présentation de Sacher-Masoch (1967), publicado em português pela Assírio & Alvim em 1973, com o título, oportunístico, de Sade/Masoch. O livro refere-se a Masoch (e especialmente à sua obra sobre a Vénus das peles) e não a Sade, ainda que o Divino Marquês seja a propósito citado amplamente na obra, já que "sadismo" e "masoquismo" são, simplificando, duas faces da mesma moeda. Mas não restam dúvidas que, neste caso, se aproveitou o trocadilho de Sacher por Sade. Nem sempre os critérios editoriais são insondáveis.

Segundo Deleuze, um sádico nunca suportará flagelar um masoquista, nem um masoquista ser flagelado por um sádico, pois tal envolveria uma contradição na própria natureza de ambos.

Ainda segundo o filósofo, «a figura do masoquista é hermafrodita, como a do sádico é andrógina.» (p. 74) ou «A pergunta: o masoquismo é feminino e passivo, o sadismo viril é activo? só tem uma importância secundária. Esta pergunta pressupõe a existência do sadismo e do masoquismo, a conversão de um no outro e a sua unidade. O sadismo e o masoquismo não são respectivamente compostos por pulsões parciais, mas figuras completas.» (p. 73)

Citando Theodor Reik (Le Masochisme), Deleuze escreve: «Neste domínio duma psicanálise formal, e acerca do masoquismo, ninguém foi mais longe que Theodor Reik. Ele distinguia quatro caracteres fundamentais: 1º A "significação especial da fantasia", isto é, a forma do fantasma (o fantasma vivido por ele próprio, ou a cena sonhada, dramatizada, ritualizada, absolutamente indispensável ao masoquismo); 2º O "factor suspensivo" (a espera, o atraso que exprime a maneira como a angústia age sobre a tensão sexual e  impede de atingir o orgasmo); 3º O "traço demonstrativo", ou antes persuasivo (pelo qual o masoquista exibe o sofrimento, o embaraço e a humilhação); 4º O "factor provocador" (o masoquista reclama agressivamente o castigo como solução para a angústia e acesso ao prazer proibido):» (pp. 82-3)

Ainda: «O sentido do contrato masoquista é o de conferir o poder simbólico da lei à imagem da mãe. Para quê um contrato, e porquê uma semelhante evolução do contrato? Devemos procurar razões, mas constatemos desde já que não há masoquismo sem contrato - ou sem quase-contrato no espírito do masoquista (cf. o "pagismo"). (p. 83)

Ou: «É conhecida a distinção jurídica entre contrato e instituição: aquele em princípio supõe a vontade dos contratantes, define entre eles um sistema de direitos e de deveres, não se pode opor a terceiros e vale por prazo limitado; esta tende a definir um estatuto de longa duração, involuntária e interminável, constitutivo dum poder, duma potência, cujo efeito se opõe a terceiros. Mas mais característica é ainda a diferença entre o contrato e a instituição em função daquilo a que se chama uma lei: o contrato gera verdadeiramente uma lei, mesmo se essa lei vem exceder e desmentir as condições que lhe dão origem; a instituição, pelo contrário, situa.se numa ordem muito diferente da da lei, como que tornando as leis inúteis, e sobrepondo ao sistema dos direitos e dos deveres um modelo dinâmico de acção, de poder e de potência. Assim Saint-Just reclama muitas instituições e muito poucas leis, e proclama que nada se fará na república enquanto as leis prevalecerem sobre as instituições...» (p. 84)

Uma última citação: « Sado-masoquismo é uma dessas designações mal fabricadas, um monstro semiológico. Sempre que nos temos encontrado perante um signo aparentemente comum, tratava-se apenas dum síndroma, dissociável em sintomas irredutíveis. Resumamos: 1º a faculdade especulativa-demonstrativa do sadismo, a faculdade dialéctica-imaginativa do masoquismo; 2º o negativo e a negação no sadismo, a denegação e o suspensivo no masoquismo; 3º a reiteração quantitativa, a suspensão qualitativa; 4º o masoquismo próprio do sádico, o sadismo próprio do masoquismo, não havendo nunca combinação de um com o outro; 5º a negação da mãe e a inflação do pai no sadismo, a "denegação" da mãe e o aniquilamento do pai no masoquismo; 6º a oposição do papel e do sentido do fetiche nos dois casos; o mesmo se aplica ao fantasma; 7º o anti-esteticismo do sadismo, o esteticismo do masoquismo; 8º o sentido "institucional" de um, o sentido contratual do outro; 9º o super-eu e a identificação no sadismo, o eu e a idealização no masoquismo; 10º as duas formas opostas de dessexualização e de re-sexualização; 11º e, resumindo o conjunto, a diferença radical entre a apatia sádica e o frio masoquista. Estas onze proposições deveriam exprimir as diferenças sadismo-masoquismo, assim como a diferença literária dos processos de Sade e de Masoch.» (pp.145-6)

Regressando à obra de Sacher-Masoch, importa dizer que, para além de livros sobre outros temas,  este concebera, sob o título " O Legado de Caim" uma obra "total", um ciclo de novelas que representassem a história natural da humanidade, abrangendo seis grandes temas: o amor, a propriedade, o dinheiro, o Estado, a guerra e a morte. Este projecto ficou incompleto mas A Vénus de Kazabaïka, insere-se na 1ª parte dessa obra: O Amor.

Tendo nascido em Lemberg (designação alemã), cidade que foi capital do reino da Ruténia, mais tarde incorporada no reino da Polónia e posteriormente capital do reino da Galícia e Lodomeria, no tempo dos Habsburg e que hoje faz parte da Ucrânia (Lviv,  em ucraniano; Lvov, em russo; Lwów, em polaco; Leopolis, em latim), Leopold von Sacher-Masoch sempre se preocupou com as tradições e destinos das minorias do Império Austríaco, pelo que os contos galicianos, húngaros, polacos, judaicos, prussianos formam a maior parte da sua obra. Acompanhando a família para Praga (o pai fora nomeado para chefiar a polícia da cidade), apenas com doze anos, aí acompanhou as revoluções que em 1848 agitaram o trono dos Habsburg e que levaram à queda do chanceler Metternich e à abdicação do imperador Fernando I. Em 1855, obteve o doutoramento em filosofia pela universidade de Graz, onde leccionou durante onze anos.

Refira-se, a título de curiosidade, que por ocasião das comemorações de Graz Capital Europeia da Cultura (2003), foi concebida uma torta Sacher-Masoch, com geleia de groselha e maçapão, em alusão à célebre torta (de chocolate) Sacher de Viena, criada em 1832 pelo cozinheiro Franz Sacher para o príncipe de Metternich, chanceler do Império Austro-Húngaro.

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