segunda-feira, 6 de julho de 2015

A DEMOCRACIA CONFISCADA




Foi apresentado há dias o último livro de José Manuel Pureza Linhas Vermelhas - crítica da crise-como-política. Trata-se de uma obra da maior importância para a compreensão da situação do país e do mundo nos últimos anos. Neste livro, José Manuel Pureza reúne uma série de reflexões publicadas nos últimos cinco anos em diversos jornais e revistas, embora devidamente reelaboradas e sistematizadas, a fim de conceder uma maior unidade ao conjunto dos textos. Desse facto resulta a repetição de algumas asserções, o que não é propriamente um defeito, na medida em que permite enfatizar algumas ideias indispensáveis ao melhor entendimento dos tempos que vivemos.

O sub-título do livro é manifestamente elucidativo. Desde há cerca de dez anos, a crise financeira mundial, depois também económica e social, passou a servir de pretexto para a adopção de medidas que doutra forma dificilmente seriam aceites. Com o alastramento da ideologia neoliberal na Europa, que conquistou não só os governos conservadores mas, para espanto, também os governos sociais-democratas e socialistas, que hoje dificilmente já se distinguem, instalou-se o conceito de "crise" para promover a progressiva destruição do Estado Social.

Isto é, a "crise" passou a ser um programa político da governação europeia, e todas as medidas tomadas em detrimento das classes mais vulneráveis, que não das classes possidentes, que essas são sempre poupadas aos malefícios de tais decisões, passaram a ser justificadas pela existência de uma "crise" internacional. Foi levada ao extremo a máxima "Tina" (There is no alternative) proclamada outrora por Margaret Thatcher, uma das principais responsáveis, com Reagan, pela situação de desregulação financeira em que nos encontramos.

Não soube, e principalmente não quis, a União Europeia encontrar "alternativa" aos programas de austeridade impostos aos países de situação económica e social mais débil, Grécia, Irlanda, Portugal e, informalmente, Espanha e Itália, no fundo à Europa meridional, países cujos povos são considerados preguiçosos, desorganizados, corruptos, aldrabões, etc., etc. Os resultados estão à vista. As dívidas soberanas da Grécia e de Portugal, por exemplo, não cessam de aumentar e são tecnicamente impagáveis, qualquer que seja a argumentação que, no nosso caso, o governo de Passos Coelho propagandeie aos quatro ventos. Não consigo perceber como é que os políticos que superintendem as instituições europeias se atrevem a sustentar a viabilidade de medidas que o menos dotado economista sabe serem, por definição, inviáveis. Nem mesmo as afirmações demonstradas de alguns prémios Nobel da Economia conseguem convencê-los.

É um facto que a União Europeia se tornou, no conjunto das entidades que formal ou informalmente a dirigem, uma organização totalitária. Para "esta" Europa só existe uma via, a do cumprimento das regras comunitárias, nomeadamente do Tratado Orçamental, custe o que custar, independentemente das escolhas democráticas dos povos. A União Europeia CONFISCOU A DEMOCRACIA. O espectáculo, ainda em cena, das eleições de Janeiro na Grécia e do referendo de ontem mostram até que ponto chegou o desvario de dirigentes eleitos e não eleitos. Não se percebe, igualmente, para que existe um Conselho Europeu (e uma Comunidade Europeia) se as decisões são tomadas pela Alemanha ou, no melhor dos casos, pela Alemanha com o apoio da França. Hollande é uma nulidade política, além de outras coisas. Vivemos uma situação que seria inimaginável se fosse presidente francês o general De Gaulle.

Não me proponho dissecar aqui o livro de José Manuel Pureza, tal a riqueza do seu conteúdo. Seria uma pretensão estulta. Mas não quero deixar de registar algumas passagens:

«O que está hoje em jogo no apodrecimento imparável da crise do euro já não é a sobrevivência de uma moeda nem mesmo a sobrevivência da integração europeia. É a sobrevivência da democracia. Pelas mãos de integristas que idolatram o equilíbrio das contas públicas como supremo bem, a gestão irresponsável desta crise está a levar à destruição dos fundamentos da democracia nos Estados europeus. Entrámos numa era de pós-democracia em que os critérios de legitimação da governação e dos seus protagonistas deixaram de ser a expressão do voto popular para passarem a ser o alinhamento com o setor financeiro e a suposta capacidade mágica de "tranquilizar os mercados". O argumento do "interesse nacional" é porventura o dispositivo maior de legitimação dessa mudança. À sua sombra, e à sombra dos moralismos que carrega e da novilíngua que instala, a democracia tornou-se num risco para os mercados. E, diante disso, a Europa está a desistir da democracia» (pp. 90-91)

Ou:

«A juntar a esta efabulação ideológica, a rábula do Portugal-bom-aluno está a cultivar entre nós um discurso totalmente perverso sobre a chamada "paz social". Ele formata-nos na convicção de que o que afunda os gregos é a mistura entre preguiça e tumulto, nunca a receita dos seus supostos salvadores. Cultivemos pois a paz social, aconselham os arautos da rábula do bom aluno. É a paz da quietude, do assentimento passivo, aquilo que nos recomendam, a paz do quanto menos ondas melhor que a nossa política é o trabalho, o trabalhinho muito lindo. A paz de um tempo em que se acabaram todas as ilusões. Exceto uma: a liberal.» (p.93)

Eu acrescentaria, evocando a resposta do marquês de Posa a Filipe II na ópera Don Carlo, de Verdi: "La pace dei sepolcri".

Muito interessante "A minha carta à Troika" (p. 193); ou este parágrafo:

«Em drástico contraste com o exemplo grego protagonizado pelo Syriza, a social-democracia europeia mostra o que não deve ser o comportamento da esquerda nesta fase. À pergunta sobre qual fora o maior sucesso da sua vida política, Margaret Thatcher terá respondido: "O New Labour." Nesta síntese letal fica enunciado todo o processo de capitulação do blairismo e a sua cooptação pelo pensamento único neoliberal e pela política por ele inspirada. A responsabilidade histórica do SPD alemão na consolidação desse processo de cooptação ficou patente na política de confronto com os sindicatos e de retração do Estado Social protagonizada por Gerhard Schröder e prolongada na coligação com a CDU de Angela Merkel. O que levamos de mandato de François Hollande como Presidente da República francesa é o episódio mais recente desta novela de rendição.» (p. 214)

Um livro de grande profundidade científica, honestidade intelectual e oportunidade política. Muito teria de escrever mesmo para um pálido resumo. Como não é possível, recomendo vivamente a leitura. Leitura e reflexão.


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