quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A SUBMISSÃO DA FRANÇA





A propósito do livro mais recente de Michel Houellebecq, Soumission, tive ocasião de referir aqui a entrevista que o escritor concedeu ao "Obs", na semana anterior à publicação da obra, que teria lugar a 7 de Janeiro, por estranha coincidência no mesmo dia em que se registou o ataque à sede do "Charlie Hebdo". Procedi então a uma descrição sumaríssima do plot, baseada na própria entrevista do autor e no comentário do prof. Gilles Kepel, insigne arabista que tivera acesso ao original antes do mesmo ter sido editado.

Agora, que li o livro, que desde que foi posto no mercado continua no 1º lugar do palmarès de vendas de livros de ficção em França (Le Suicide Français, de Éric Zemmour, permanece, desde a publicação, no 1º lugar de vendas dos livros de não ficção), permito-me tecer algumas considerações sobre a obra.

É um facto que Michel Houellebecq (n. 1958) é um escritor de talento, suficientemente comprovado na sua produção de poeta, ensaísta e romancista, a que acresce uma versatilidade de dons, que tem desenvolvido como cantor, realizador cinematográfico e actor.

Não cabendo aqui uma análise do estilo de Houellebecq, pode dizer-se que o fio condutor da sua obra é a contestação do capitalismo liberal, a cuja demolição procede, livro após livro, ainda que (ou porque) a sua visão do mundo permaneça essencialmente conservadora. Confesso que os primeiros livros de Houellebecq (não li todos) me irritaram pela constante provocação a que submete o leitor. Acrescentaria que essa provocação é, em  muitos casos, gratuita, mas noutros absolutamente pertinente, na medida em que Houellebecq se compraz em demolir um quadro de referências ideológicas e políticas, que eram dadas por adquiridas por pessoas da minha geração, das anteriores e das posteriores, mas que a evidência dos factos se tem encarregado de demonstrar serem insustentáteis nos dias que correm. Isto é, Houellebecq confronta-nos com um espelho em que já não vemos a imagem que sempre cultivámos, mas uma figura distorcida que nos repugna mas que somos forçados a aceitar em nome do mais elementar realismo.

Em Soumission, que se pretende um livro premonitório, ainda que o autor negue essa intenção, Houellebecq traça um retato da França em 2022, num momento de grande tensão política e social, após a 1ª volta das eleições presidenciais. François Hollande está de saída do Eliseu, para onde conseguira ser reeleito em 2017, e onde desempenhou dois mandatos de confrangedora mediocridade, que o colocaram como o mais excruciante presidente da V República.

Os resultados do escrutínio constituem um sismo e alteram definitivamente a paisagem política francesa. Marine Le Pen, da Frente Nacional, aparece, sem surpresa, à cabeça com 34,1% dos sufrágios, mas a seguir surge Mohammed Ben Abbes, da Fraternidade Muçulmana, com 22,3%, à frente de Manuel Valls, o candidato do Partido Socialista, que não passa de 21,9% e, que em consequência, é eliminado. Jean-François Copé, da UMP, fica-se pelos 12,1%.

Enquanto a França se debate com o futuro político da República, o narrador (romance oblige) faz-nos compartilhar da sua vida quotidiana, desde os cursos que ministra como professor na Sorbonne (é especialista de Huysmans), aos actos mais triviais do quotidiano doméstico (vive só) e às suas ocasionais aventuras amorosas (o sexo é omnipresente na obra de Houellebecq), sempre insatisfatórias.

Entretanto, os dados são lançados para a 2ª volta das presidenciais. Ben Abbes, filho de um merceeiro tunisino imigrante, que se distinguiu nos estudos universitários e que Houellebecq considera o mais hábil dos políticos desde François Mitterrand, empenha-se em tranquilizar os franceses (não é de forma alguma um djihadista), prometendo nomear François Bayrou como primeiro-ministro se vencer a corrida para o Eliseu. Para evitar o acesso de Marine Le Pen à suprema magistratura, a UMP, o PS e a UDI (?) concluem um entendimento para uma "frente republicana alargada" que se aliará à Fraternidade Muçulmana para o apoio ao candidato Ben Abbes, que virá a ganhar a eleição por uma larga maioria de votos.

O programa de Mohammed Ben Abbes não colide com a ordem económica, já que, em sua opinião, a direita liberal ganhara a "batalha das ideias" e o carácter inultrapassável da economia de mercado tornara-se unanimemente admitido. Não estando comprometido com a esquerda anticapitalisa, ao contrário do seu antigo rival Tariq Ramadan, essa posição sossegava os franceses mais conservadores e  as suas três anteriores visitas ao Vaticano, apesar da sua aura terceiro-mundista, agradavam aos católicos. Também em política externa, pelo menos a curto prazo, não se adivinhavam grandes sobressaltos. O objectivo fundamental de Ben Abbes era a Educação, as novas gerações que importava captar para o islão, o tipo de ensino, o vestuário, os costumes. Não se extinguia o ensino laico mas eram islamizadas as grandes instituições. À falta de poderem resgatar Oxford, em que foram precedidos pelos qataris, os sauditas compraram a Sorbonne, que passou a ostentar à entrada uma estrela e um crescente dourados.

A consequência mais imediata da eleição de Abbes fora a queda drástica da delinquência. E também a do desemprego, devido à saída maciça das mulheres do mercado de trabalho e à revalorização considerável dos abonos de família, isto sem aumento do défice orçamental, já que as despesas com a Educação caíam rapidamente. No novo sistema introduzido, a escolaridade obrigatória acabava no fim do ensino primário, isto é, aos doze anos, era encorajado o artesanato e o financiamento do ensino secundário e superior tornava-se inteiramente privado. Segundo o novo presidente, essas reformas visavam "restaurar toda a dignidade da família, célula de base da nossa sociedade".

Com o passar das semanas surgiram alguns protestos: da Frente de Esquerda, impulsionados por Jean-Luc Mélenchon e Michel Onfray, e da União dos Estudantes Salafistas, que denunciavam a persistência de comportamentos imorais e reclamavam a aplicação real da sharia. Mas a verdadeira surpresa veio de Abbes, que se declarou influenciado pelo distributivismo, uma filosofia económica inglesa do princípio do século XX, devida a Gilbert Keith Chesterton e a Hilaire Belloc,que preconizava uma "terceira via" entre o capitalismo e o comunismo, baseada na supressão da separação entre o capital e o trabalho. A forma normal da economia deveria ser a empresa familiar. Embora os seus arautos fossem polemistas católicos, Abbes considerou-a completamente compatível com os ensinamentos do islão.

A nova Sorbonne islâmica não comportava professores não muçulmanos, e o narrador é forçado a aposentar-se, com poucos anos de serviço mas com uma reforma interessante, que os sauditas são generosos. Mas o novo reitor, com o decorrer do tempo, e para lustre da universidade, tenta aproximações a alguns dos professores aposentados, entre os quais o narrador, o grande especialista de Huysmans, por cujo regresso ansiava.

É certo que o narrador de há muito meditava na conversão final de Huysmans ao catolicismo, depois de um percurso sinuoso. Aliás, também, por outras razões, René Guénon se convertera ao islão. O individualismo triunfante deste início de século, o capitalismo liberal desenfreado, o monoteísmo do mercado, a que ora nos é dado assistir e com que temos de conviver, desumanizaram a sociedade contemporânea. O materialismo em que nos afundamos suscita um despertar do espírito. Não é em  vão que se atribui a André Malraux a expressão: «Le XXIème siècle sera religieux ou ne sera pas».

Assim, o livro termina pela conversão do narrador ao islão, na Grande Mesquita de Paris, e ao seu reingresso na Sorbonne, agora com pergaminhos renovados e com estudantes submissos. Afinal, o título do livro "Submissão" é a tradução de Islão, que em árabe significa submissão (à vontade do Profeta).


Porém, mais importante que os factos descritos para elucidação do tema, mais importante que os "acidentes" políticos da República Francesa, são as reflexões de Houellebecq ao longo das 300 páginas do livro, a recorrência ao pensamento de Nietzsche, o seu exame retrospectivo de um passado quase inútil, ou seja tudo o que eu não escrevi. Há um indisfarçável cinismo do autor na sua apreciação do mundo de hoje, um pessimismo absoluto sobre o homem e sobre a vida, mas com o qual muitos leitores se identificarão.

Quatro citações, ao acaso:

«La France, comme les autres pays d'Europe occidentale, se dirigeait depuis longtemps vers la guerre civile, c'était une évidence; mais jusqu'à ces derniers jours j'étais encore persuadé que les Français dans leur immense majorité restaient résignés et apathiques - sans doute parce que j'étais moi-même passablement résigné et apathique. Je m'étais trompé.» (p. 116)

«La véritable agenda de l'UMP, comme celui du PS, c'est la disparition de la France, son intégration dans un ensemble fédéral européen. Ses électeurs, évidemment, n'approuvent pas cet objectif; mais les dirigeants parviennent, depuis des années, à passer le sujet sous silence.» (p. 145)

«Ben Abbes est en realité un homme politique extrêmement habile, sans doute le plus habile et le plus retors que nous ayons connu en France depuis François Mitterrand; et, contrairement à Mitterrand, il a une vraie vision historique.» (p. 154)

«Mais sa (de Abbes) grande référence, ça saute aux yeux, c'est l'Empire romain - et la construction européenne n'est pour lui qu'un  moyen de réaliser cette ambition millénaire.» (p. 157)

«Il (Abbes) ne fait en un sens que reprendre l'ambition de De Gaulle, celle d'une grande politique arabe de la France...» (p. 158)

Posto isto, recomenda-se a leitura do livro, onde cada um encontrará interpretações sui generis da obra.

1 comentário:

Unknown disse...

Ce livre est un chef d’œuvre.
Il y en a une réflexion puissant et fascinante sur la liberté individuelle en l’Occident et son énorme prix personnel et civilisationnel en malheur et déracinement. Il y en a l’exercice intransigeant de sa liberté para Houellebecq avec par exemple les descriptions misogynes des relations avec des femmes, et compris l’acte sexuel (on accuse Houellebecq d’être misanthrope, mais non, je ne le crois pas du tout, beaucoup au contraire).
« L'amour chez l'homme n'est rien d'autre que la reconnaissance pour le plaisir donné, et jamais personne ne m'avait donné autant de plaisir que Myriam. Elle pouvait contracter sa chatte à volonté (tantôt doucement, par lentes pressions irrésistibles, tantôt par petites secousses vives et mutines) ; elle tortillait son petit cul avec une grâce infinie avant de me l'offrir. Quant à ses fellations, je n'avais jamais rien connu de semblable, elle abordait chaque fellation comme si c'était la première, et que ce devait être la dernière de sa vie. Chacune de ses fellations aurait suffi à justifier la vie d'un homme. »
Il y en a une analyse profonde du rôle de la religion dans la structure de la vie humaine et de la famille.
« Il était tragique, plaidait-il avec ferveur, qu'une hostilité irraisonnée à l'islam les empêche de reconnaître cette évidence : ils étaient, sur l'essentiel, en parfait accord avec les musulmans. Sur le rejet de l'athéisme et de l'humanisme, sur la nécessaire soumission de la femme, sur le retour au patriarcat : leur combat, à tous points de vue, était exactement le même. Et ce combat nécessaire pour l'instauration d'une nouvelle phase organique de civilisation ne pouvait plus, aujourd'hui, être mené au nom du christianisme ; c'était l'islam, religion sœur, plus récente, plus simple et plus vraie (car pourquoi Guénon par exemple s'était-il converti à l'islam ? Guénon était avant tout un esprit scientifique, et il avait choisi l'islam en scientifique, par économie de concepts ; et pour éviter, aussi, certaines croyances irrationnelles marginales, telles que la présence réelle dans l'Eucharistie), c'était l'islam, donc, qui avait aujourd'hui repris le flambeau. A force de minauderies, de chatteries et de pelotage honteux des progressistes, l'Église catholique était devenue incapable de s'opposer à la décadence des mœurs. »
Le livre, qui décrit le terrorisme urbain a sorti, on le sait, dans le jour de l’attaque à Charlie Hebdo. Les attentats de Bruxelles ont eu lieu au cours de ma lecture.
« C'étaient surtout la saleté et la tristesse de la ville qui m'avaient frappé, ainsi que la haine palpable, plus encore qu'à Paris ou à Londres, entre les communautés : à Bruxelles on se sentait, plus que dans toute autre capitale européenne, au bord de la guerre civile. »
Il en est magnifiquement écrit ; il inclue, avec ses références à Huysmans, un hommage extraordinaire à la tradition culturelle et littéraire européenne ; et l'intrigue est provoquant, intelligent, pertinent, passionnant et très intéressant.
Le dénouement inclue un « happy ending » que j’ai trouvé aussi surprenant qu’approprié. Bref, ce fut le meilleur livre que je l'ai lu cette année jusqu'à présent.