sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

UTOPIAS E REALIDADES




Não se trata da ilha imaginária de Thomas More mas de um imenso complexo habitacional privado também ficcionado, ou não tanto, na periferia do Cairo, ainda que o autor refira no preâmbulo «The Utopia mentioned here is an imaginary place, as are the characters who live in and around it, even though the author knows for certain that this place will exist soon. Any resemblance to place and individuals in our present reality is purely coincidental». Advertência redundante, não só pelo contexto da obra mas pelas referências concretas à capital egípcia e, em particular, a Shubra, um dos distritos problemáticos do Cairo.

O livro foi premonitoriamente publicado em árabe, no Egipto, em 2009, portanto antes da revolução que depôs Mubarak, e editado depois em inglês, em 2011, pela Bloomsbury Qatar Foundation Publishing.

Nascido em 1962, Ahmed Khaled Towfik doutorou-se em Medicina, em 1997, na Universidade de Tanta (cidade a norte do Cairo), na qual lecciona. Paralelamente, dedicou-se à escrita, no campo da ficção científica e do horror, tornando-se um dos mais influentes escritores egípcios contemporâneos, especialmente popular entre a juventude. A sua notoriedade estende-se a todo o mundo árabe.

A presente obra relata a estória de dois jovens habitantes de Utopia (um rapaz, Larine, e uma rapariga, Germinal) que resolvem divertir-se, fazendo uma inclusão clandestina na vizinha cidade dos "Outros", pelo que matam dois trabalhadores dos muitos que prestam diariamente serviços menores no seu complexo, utilizando as respectivas roupas como disfarce para não serem identificados.

A vida na Utopia decorre monótona, entre sexo e drogas (a célebre "phlogistina", também ambicionada pelos "Outros"). Por entre peripécias que permitem ao autor discorrer sobre a vida miserável da maioria da população do Cairo, Larine decide, como recordação, matar uma prostituta na zona de Ataba (a célebre e movimentada praça próxima dos jardins de Azbakiya). Sendo perseguido pelos locais, é protegido por um rapaz dos "Outros", Gaber, que o obriga a experimentar a vida dura dos seus "concidadãos" sujos, doentes e esfomeados nos túneis desactivados do metropolitano da capital. Correndo na vizinhança que alberga dois "utopistas" em casa, Gaber  resolve salvar os "estrangeiros" o que faz, facilitando-lhes a fuga através de um túnel secreto que liga a cidade à Utopia. Enquanto prepara o seu plano, Larine viola-lhe a irmã tuberculosa que mesmo assim tentou resistir à investida do jovem bonito e rico oriundo da classe opressora. Não se apercebendo do facto, Gaber conduz os dois amigos ao caminho da salvação, através do corredor subterrâneo que vai desembocar numa saída disfarçada num jardim da Utopia. Mas, antes de se despedir e de lhe agradecer a hospitalidade, Larine mata Gaber, perante o espanto de Germinal.

Nos dias seguintes, os aviões particulares que permitem aos habitantes de Utopia deslocarem-se, ficam imobilizados devido a uma falsificação do combustível provocada pelos "Outros", que decidem entretanto unir-se e investir contra o isolado complexo habitacional dos detentores do Poder. A estória acaba aqui, mas os subsequentes acontecimentos no Egipto dizem-nos alguma coisa sobre as desigualdades sociais no país. Curiosamente, Utopia não elabora sobre a questão religiosa.

O livro recorre frequentemente aos versos de Abdel Rahman el-Abnudi (n. 1938), poeta popular e activista político egípcio, que escreve em árabe dialectal. Transcrevemos um poema:

«We are two peoples... two peoples... two peoples
Look where the first is, and where's the other
Draw the line between them, brother
You sold the land with plough and axe - on her people's backs
Before the eyes of the world, you undid her clothes
Stark naked she was, from head to toes
Front and back, knees to nose
You could smel her breath a mile away
We the people are sons of dogs
We belong to the Beatiful One
And his way is hard
With the kick of a boot and the whack of a cane
Then we die in the war, all in vain.»

Talvez Ahmed Khaled Tawfiq (transliteração preferível a Towfik) nos brinde agora com um livro acerca da situação no Egipto após a revolução de 2011. Aguardemos e agradeceremos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nada de muito diferente da realidade. O cairo e o Egipto em geral continuam a ser terras de grandes diferenças sociais. Uns muito ricos outros muito pobres