segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A UCRÂNIA NUMA ENCRUZILHADA DA HISTÓRIA




Os acontecimentos das últimas semanas na Ucrânia, nomeadamente em Kiev, suscitam as maiores interrogações quanto ao futuro do país. A contestação ao presidente Viktor Yanukovytch (de momento, doente, entretanto restabelecido), eleito em 2010, e ao seu governo (agora demissionário) assumiu progressivamente foros de insurreição popular, na sequência da escalada de protestos contra a não adesão à União Europeia, primeiro, e contra a corrupção do regime, depois.

Possui a Ucrânia uma história milenar, que remonta ao século X. O Principado de Kiev foi antecessor do Grão-Ducado da Moscóvia (e do Grão-Ducado da Lituânia) e as afinidades entre estes países, nos costumes, na religião, na língua foram sempre enormes. No século XIV o Principado foi conquistado pelo rei da Polónia e, devido a política de alianças, passou para o controle do Grão Ducado da Lituânia e, depois, para o da Polónia. A rebelião cossaca de 1648 levou à partilha do território entre a Rússia e a Polónia, e a partilha da Polónia, no final do século XVIII, conduziu à partilha da Ucrânia entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Após a Primeira Guerra Mundial, e várias peripécias políticas e militares, foi proclamada, em 1919, a República Socialista Soviética da Ucrânia, que, em 1922, passou a integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com o colapso da União Soviética, em 1991, o país adquiriu, de facto, a sua independência.

Deste percurso, acidentado, se conclui que sempre a Ucrânia teve, pela história e pela geografia, uma proximidade com a Rússia, que nunca partilhou duradouramente com qualquer outro país. E recorde-se, de passagem, que durante a vigência da URSS a Ucrânia tinha assento nas Nações Unidas, em pé de igualdade com aquela, facto que, dentro das repúblicas soviéticas, só tinha paralelo com a Bielo-Rússia.

A queda do regime socialista na Ucrânia e o estabelecimento de uma economia de mercado provocou (como nas outras repúblicas do Leste) um aumento súbito do custo de vida e a eliminação das regalias sociais de que gozavam os seus habitantes, produzindo uma pequeníssima classe de novos ricos (riquíssimos) e uma imensa classe de novos pobres (a maior parte, paupérrimos). E favoreceu a instalação no poder de elites corruptas, quiçá muito mais corruptas do que as que o ocupavam no regime socialista. Este empobrecimento da população gerou uma vaga massiva de emigrantes para os países ocidentais, sendo a comunidade ucraniana em Portugal um testemunho desse afluxo de cidadãos à procura de uma vida melhor.

Apesar do seu relacionamento ancestral com a Rússia, a parte mais russófila da Ucrânia é o leste do país, sendo o oeste, porque naturalmente mais próximo dos países que aderiram à União Europeia, mais permeável aos cantos de sereia de Bruxelas. Durante o regime soviético, os ucranianos, ainda que submetidos a um apertado controle político (mas quem realmente não lhe está sujeito, hoje, no chamado Mundo Ocidental?) gozavam do privilégio de terem emprego e reforma e casa, ensino, saúde e transportes gratuitos, para citar apenas algumas regalias. Coisas que não existem, ou estão progressivamente a desaparecer no "mundo livre", em nome da "democracia" (e dos mercados).

Aproveitando-se da insatisfação de muitos ucranianos, a União Europeia decidiu propor ao país a sua adesão, vendendo-lhe a miragem de uma vida subitamente melhor a partir do momento da integração. Não admira, pois, que uma parte da população, insatisfeita com a corrupção da classe dirigente e vivendo mal, se tenha insurgido contra a recusa de Yanukovytch em aceder às pretensões do inefável  Barroso e da obstinada Merkel. Não que pretendam cortar os laços com Moscovo mas porque julgam que a entrada na "Europa" lhes proporcionará o aumento do nível de vida. A maioria dos descontentes parece ignorar que as boas intenções da União Europeia e dos Estados Unidos (atente-se no encontro de John Kerry com a oposição ucraniana) não são gestos altruístas mas apenas a vontade de penetrar abertamente na economia ucraniana e de utilizar a posição estratégica do país, afastando-o da Rússia. Exactamente o que Putin procura evitar, já que Moscovo vê com maus olhos a instalação a sul do seu território de uma presença hostil, porventura de um país que se tornaria membro da NATO. Por outro lado, também o Kremlin tenta seduzir a Ucrânia com financiamentos e bens essenciais.

É neste contexto, aqui sucintamente exposto, que Viktor Yanukovytch terá de tomar posição. Ou se retira, como pretende a oposição, sendo convocadas eleições presidenciais, cujo desfecho se ignora, ou incumbe as forças armadas de "limpar" os locais ocupados, restabelecendo a ordem e a normalidade, já que a economia do país está paralisada. Qualquer das opções tem custos, para a Ucrânia e para a Rússia, mas parece-me que a retirada de Yanukovitch provocaria o caos interno.

Depois da Síria, a Ucrânia é um novo ponto de fricção entre a UN/EUA e a Rússia. Claro que não se espera uma intervenção armada ocidental, que seria uma catástrofe, mas os confrontos diplomáticos Oeste/Leste agudizam-se. Realmente, também ninguém esperava que o assassinato do arquiduque Francisco Fernando provocasse a Primeira Guerra Mundial ou que a ascenção de Hitler ao poder acabasse por desencader a Segunda.

A verdade é que, neste mundo globalizado, a Ucrânia está mais perto de nós do que muitos supõem. Mesmo um conflito no interior do país, que seria certamente alimentado do exterior, de um e outro lado, seria trágico para a Europa, pelas suas consequências externas. Já bastou a guerra na ex-Jugoslávia.

Por isso, tenhamos esperança se não numa solução óptima, pelo menos numa solução razoável. Aguardemos.

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