quinta-feira, 3 de abril de 2025

O D. SEBASTIÃO, DE ANTÓNIO SÉRGIO

A propósito de Exortação à Mocidade, de Carlos Malheiro Dias publicou António Sérgio, em 1924, O Desejado, em que refuta o elogio que aquele consagra a D. Sebastião na referida obra, apresentado-o como modelo para a juventude portuguesa.

Numa extensa contestação das virtudes atribuídas ao monarca, Sérgio considera-o pateta, estúpido, pedaço de asno, louco, egoísta e mais epítetos. Trata-se de uma longa dissertação filosófica, de pendor racionalista, servida por um vocabulário requintado (talvez em exagero), com a qual o polemista antecede a obra, intitulando-a de  Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias, e onde escreve: «A sua argumentação sebastianófila pode reduzir-se a três ideias: 1) O intelecto é incapaz para sentenciar nesta questão, onde só vale "o dom do sentimento"; e as conclusões a que aportei, sendo um produto da inteligência, devem - por isso mesmo - ser rejeitadas; 2)  A opinião anti-sebástica (a minha) tem certo consenso com a demagogia, e com o sórdido materialismo dos nossos tempos mercantis; 3) O Desejado foi a África por "entusiasmo patriótico", e é ele a vera "reincarnação do Portugal do século XV".» (p. XII). 

Rejeitando a argumentação de Carlos Malheiro Dias e opondo-lhe a sua, que não é possível resumir aqui, conclui: «Poderia compor, também eu, uma Exortação à Mocidade, a contraditar o seu discurso naquela parte que me diz respeito, ou então traçar um painel histórico, mostrando o fundado do meu juízo acerca do louco de Alcácer-Quibir, - juízo que atacou com rara eloquência, mas sem razão, - e contra a Razão; decidi, porém, proceder pedagogicamente. [...] O meu Amigo é um inspirado; mas é também e ao mesmo tempo uma inteligência superiormente fina. "Apelo de vós para vós próprio", e dos seus brados para a sua Razão.» (pp. XXX-XXXI)

Para sustentar as suas razões, Sérgio procede depois à divulgção de sete testemunhos mais ou menos coevos que suportam os fundamentos da sua Carta-Prefácio: Avisos do Céu, de Torres de Lima; Carta a um Abade da Beira, de autor anónimo; Relação da Jornada de El-Rei D. Sebastião, de autor anónimo; Les Voyages, de Vincent Leblanc; Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrogão Grande: aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa... perda de El-Rei D. Sebastião, de Leitão de Andrada; Jornada de África, de Jerónimo de Mendonça; Crónica de El-Rei D. Sebastião, de Frei Bernardo da Cruz. Como escrevemos aqui esta Crónica foi erradamente atribuída a Frei Bernardo da Cruz por Alexandre Herculano, mas o seu autor é António de Vaena. 

- Avisos do Céu, de Torres de Lima, é a 4ª edição de Compendio das mais notáveis cousas que no Reino de Portugal aconteceraõ até o ano de 1627, publicado em 1630, agora com o título Avizos do ceo, successos de Portugal, com as mais notáveis cousas que aconteceraõ desde a perda d’El-Rey D. Sebastiaõ até o anno de 1627. com outras cousas tocantes ao bom governo e diversidade de Estados, editado em 1761. António Sérgio transcreve apenas algumas páginas da obra de Luiz de Torres de Lima, as que mais interessam, onde ele refere a passagem de um cometa (um aviso do céu), o fogo junto aos paços de Santos (outro aviso), a tentativa de dissuasão da expedição pelo conselho de guerra reunido em Lisboa e a do duque de Alba, em Guadalupe, e a opinião de que se devia tomar Larache em vez de se avançar contra o Moluco. A todos D. Sebastião recusou dar ouvidos, marchando para um fim previsto e inevitável.

- Carta a um Abade da Beira, uma carta que apareceu publicada por Lima Felner, em 1849, no Bibliófilo, segundo uma cópia manuscrita que ele possuía. Do 1º ao 73º item o autor descreve a desolação de Alcácer-Quibir e a irresponsabilidade em ter sido travada batalha. Está datada de 25 de Dezembro de 1578.

- Relação da Jornada de El-Rei D. Sebastião, de autor anónimo, foi também publicada por Lima Felner, no Bibliófilo, em 1849, o qual afirma ter conferido a sua cópia por outra existente na Biblioteca da Ajuda. Relata episódios dos preparativos para a expedição.

- Les Voyages, de seu título completo Les Voyages fameux du sieur Vincent Leblanc, marseillois qu'il a faits depuis l'aage de douze ans iusque à soixante aux quatre parties du monde... rédigées fidéllement sur ses Mémoires por Pierre Bergeron, parisien, está datada de 1649. Vincent Leblanc acompanhou um Dom Guilherme que o rei de França, Henrique III, enviou como embaixador ao sultão de Marrocos. Ambos desembarcaram em Larache, donde seguiram para Fez para se encontrarem com o Moluco. O trecho reproduzido é relativo à campanha de D. Sebastião, e foi traduzido por Oliveira Martins.

- Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrogão Grande: aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa... perda de El-Rei D. Sebastião foi publicada em Lisboa, em 1669, por Mateus Pinheiro. O seu autor, Miguel Leitão de Andrada, nasceu em 1555 e interrompeu os estudos universitários para se alistar no terço dos aventureiros. Ficou cativo na batalha, conseguindo evadir-se. Seguiu depois o partido de D. António, a cuja casa pertencia, pelo que foi perseguido e esteve preso por ordem de Filipe II. O livro contem vinte diálogos. É no sétimo diálogo (que Sérgio transcreve) que o autor - contando pela boca da personagem "Devoto" alguns sucessos da sua vida - diz o que viu na expedição a África e na batalha de Alcácer-Quibir.  

- Jornada de África é uma obra de Jerónimo de Mendonça (aproximadamente 1548-1607) que fez parte do terço dos aventureiros e ficou cativo em África, sendo, por isso, testemunha ocular dos acontecimentos. Escreveu a Jornada de África para contestar várias asserções de Jeronymo Franchi de Conestaggio, no livro Dell'unione del Regno di Portugallo alla corona di Castiglia (1585), que considerava caluniosas e ofensivas para os portugueses. A obra foi publicada em 20 de Janeiro de 1607, dedicada a D. Francisco de Sá de Menezes e compreendendo três livros: o Livro Primeiro, dividido em 7 capítulos, conta as razões de D. Sebastião para passar a Marrocos, a partida da armada, a batalha e o seu desenlace; o Livro Segundo, dividido em 18 capítulos, conta o resultado da batalha, a repartição dos cativos, a vida destes em Marrocos, as fugas e os resgates; o Livro Terceiro, dividido em 14 capítulos, evoca a vida e a morte dos "sete moços" mártires. António Sérgio transcreve os trechos mais significativos do Livro Primeiro, comentando sobre o autor: «A impressão que nos dá é a de que escreve por conta da Companhia de Jesus e dos fidalgos aceitos ao monarca, que a voz pública apontava como cúmplices no desastre. O empenho que põe em defender tais personagens e em fazer o seu elogio é demasiado indiscreto e comprometedor (se nos permitem o galicismo); defende-as excessivamente, a pontos de ser frequente o contradizer-se, bem como o desmentir afirmações de Franchi que são confirmadas por todos os restantes testemunhos que possuímos.»

- Crónica de El-Rei D. Sebastião, um texto atribuída erradamente a Frei Bernardo da Cruz, como referimos acima e que se deve a António de Vaena.

* * *

Tendo Carlos Malheiro Dias respondido a António Sérgio na 2ª edição (1925) de Exortação à Mocidade, que já comentámos,  resolveu Sérgio publicar Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a Questão de O Desejado, que será objecto de um próximo post.

 




quarta-feira, 2 de abril de 2025

EXORTAÇÃO À MOCIDADE

Em 1924, Carlos Malheiro Dias publicou Exortação à Mocidade, que seria reeditada em 1925, livro que agora comentamos, com o título Exortação à Mocidade, precedida de uma Resposta à Carta-Prefácio do Senhor António Sérgio, dedicado a Antero de Figueiredo, com uma dedicatória pessoal manuscrita a D. Luiz de Castro.

O autor fora convidado, em 1924, pelo  poeta Eugénio de Castro, então director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a proferir na Sala dos Capelos daquela instituição, uma conferência sobre assunto livremente escolhido. Todavia, em vésperas da sessão, foi noticiado que ocorreriam desacatos provocados por estudantes extremistas caso a conferência viesse a ocorrer. Oportunamente prevenido, entendeu Carlos Malheiro Dias cancelar o evento, decidindo editar posteriormente o texto preparado, para que o mesmo não repousasse no olvido.

Nesta exortação aos jovens estudantes portugueses, propõe-se o autor exaltar o patriotismo e os valores do espírito. Recordando os anos de "exílio" que viveu no Brasil, escreve: «Lá, a mais antiga das duas democracias era uma nação apenas adolescente, coroada de esperança; aqui, a mais jovem das duas repúblicas, uma nação anciã, aureolada de glória. E entre estas democracias, uma concebida na matriz anglo-americana, a outra fundida nos moldes da Revolução Francesa, conquanto ambas idênticas na substância ancestral, produziam-se divergências terminantes e irredutíveis. Aquela evoluía no sentido da liberdade garantida pela ordem a mais autoritária; esta definhava lacerada pela insubmissão a um poder exíguo e oscilante, que frequentemente buscava auxílio nas truculências da paixão popular. Numa, o livre pensamento, sob a pressão combinatória de influências sectárias, ensaiara renovar a experiência funesta da Revolução Francesa, substituindo à fé religiosa e multi-secular a soberania leiga da razão; noutra, a filosofia comtista, que a organizara, cedia o passo a uma avassaladora onda espiritual, que anualmente conduz os cadetes da Escola do Exército aos templos católicos para a benção solene das suas espadas.» (pp. 13-14)

«Patriotismo e materialismo são sentimentos antagónicos. Uma demagogia nunca foi patriótica, a não ser por instinto de conservação, quando atacada. Nesse caso, o instinto de defesa coincide com o interesse de preservação da pátria.» (p. 35)

«Insisto em declarar-vos que a doença nacional tem mais de um século, e o seu primeiro e alarmante sintoma remonta a 1807, quando uma deputação da maçonaria foi indecorosamente a Sacavém, vestida à francesa, apresentar as boas vindas a Junot. Gomes Freire, que a literatura romântica vos apresentou como um mártir do patriotismo, foi a encarnação maléfica e desventurada da geração portuguesa da Revolução de França; e essa Revolução ateia e regicida ainda hoje a temos no sangue, a intoxicar-nos.» (p. 50)

«Não, mocidade! Quem tem razão não é o racionalista, mas o poeta visionário. D. Sebastião foi uma reencarnação do Portugal do século XV: o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza reencarnadas.» (p. 52)

«D. Sebastião "era uma alma nobre e teve uma inspiração política da idade média; quis ser descendente dos reis cavaleiros, dos reis municipais, dos reis chefes da nação cristã, no meio de uma nação de bufarinheiros, de sobrecargas, de judeus agiotas, de cortesãos e de tartufos".» (pp. 53-54)

«Não vos deixeis embaír nem atemorizar. A Pátria está no Pretório. Os facciosos, em clamor e tumulto, agitadamente se recusam a deixar salvá-la, invocando a sua lei. Mocidade, que vais fazer? Terás, como Pôncio Pilatos, receio de desagradar ao poder? Vais lavar as mãos como ele e contentar-se em dizer à turba desvairada que a ruína da pátria recaia sobre ela...?» (pp. 59-60)

«Somos a decana de todas as nações da Europa na sua actual configuração territorial; e só nos falta que a consciência da nossa soberania unitária se prolongue às dispersas províncias ultramarinas para que Lisboa volva a ser a cabeça de um grande império, a metrópole dos Estados Unidos de Portugal.» (p. 62)

«Mocidade! Quando amanhã, armada de fé inquebrantável, desceres desta colina espiritual, espero que, à semelhança do cândido Parsifal nos jardins maléficos de Klingsor, resistirás às tentações da feiticeira e lograrás arrancar com juvenil denodo das mãos da Ignorância a lança milagrosa cujo contacto há de salvar a ferida da Pátria!» (p. 64) 

* * * * *

A este livro respondeu António Sérgio com o livro O Desejado, precedido de uma Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias (1925). A presente edição que comentamos é antecedida da Resposta à Carta-Prefácio do Senhor António Sérgio. 

Assinalamos a seguir os pontos mais importantes da réplica de Carlos Malheiro Dias a António Sérgio, que deverá ler-se após a argumentação de Sérgio em O Desejado, que apresentaremos em próximo post deste blogue.

Escreve Carlos Malheiro Dias: «A personalidade despótica do sr. António Sérgio, as suas zombarias sarcásticas, a ênfase professoral com que se me dirige, a intenção manifesta de me reduzir à posição de um subalterno, de me desacreditar como romântico destituído de discernimento, sem excluir o mixto enervador de afabilidades e de ironias, de cumprimentos e de escárnios, de blandícias e ferroadas, que se alternam na sua Carta felina, impõem-me o dever, a que me submeto com desgosto, de analisar ao mesmo tempo as suas intenções e o facciosimo do seu juízo crítico.» (pp. XVI-XVII)

E continua: «Apelando "dos meus brados para a minha Razão",  esperando de mim uma sentença "sem paroxismos nem crispações", o sr. António Sérgio parece esquecer que nas vinte e cinco páginas do seu prefácio, paroxisticamente, crispadamente, faltando à compostura e reverência devidas à sua cultura, à sua hierarquia mental e à gravidade da História; repudiando os conceitos que esculpira na enfatuada dedicatória da sua obra; perdendo o "sentimento da medida, da modéstia e do senso crítico"; desobedecendo à disciplina mental a que se confessa subordinado; desatendendo o seu conselho de analisar "sem paixão nem preconceito";  - invectiva D. Sebastião e exaltadamente lhe chama "pateta, imbecil, fanfarrão, mentiroso, estúpido, perfeito pedaço de asno, desbocado, rufião, bruto, cruel, monstro, egoísta, miúdo, vesânico, insensato, tonto, zote, bobo, idiota, bronco, torpe e vil"! E tem, depois disto, o sr. António Sérgio o topete, o desplante de invocar o seu "auto-domínio"!» (pp. XVII-XVIII)

Contesta depois Carlos Malheiro Dias os "Testemunhos Históricos" evocados por António Sérgio em O Desejado,  a que chama "inventário esquelético", contrapondo-lhe outras fontes a que atribui maior importância e fidedignidade. 

Não é possível sintetizar aqui as cem páginas da Resposta de Carlos Malheiro Dias, em que desmente que tenha apresentado D. Sebastião à mocidade como "seu herói exemplar" ou que tenha proclamado o culto do "Desejado". Às considerações de Sérgio, que invoca Manuel Bento de Sousa, no seu livro O Doutor Minerva, Malheiro Dias entende que o retrato que aquele faz de D. Sebastião é uma hipótese de médico e não a interpretação de um historiador. Segundo o autor, «O Encoberto não é hoje o rei vencido pelos mouros; é Portugal flagelado pelas calamidades da hora presente, e que todos os patriotas de coração e consciência aspiram a ver reposto na estima e no conceito universais.» (pp. LXX-LXXI)

E conclui: «O Patriotismo - eis o nosso Messias! Mas Patriotismo militante, animado pela fé, embelezado pelo ideal: Patriotismo de Sentimento e de Razão - pois, como advertia o bispo de Silves a D. Sebastião, "a vontade por si, sem obediência do entendimento, he desconcerto".» (p. CVIII)

A obra de Carlos Malheiro Dias vale pelo estilo mas a argumentação aduzida  é insustentável nos nossos dias, ainda que a sua formulação seja brilhante.