quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

UMA FALSA CRÓNICA DE D. SEBASTIÃO

Convenhamos que a Crónica não é falsa, o autor sim.

A presente Chronica d'El-Rei D. Sebastião foi atribuída por Alexandre Herculano a Fr. Bernardo da Cruz, sendo muito citada nos livros que tratam da figura do "Desejado". O próprio Herculano, no Prólogo, se refere ao monge como tendo vivido na segunda metade do século dezasseis, acrescentando que «embarcou-se na frota que transportou a África El-Rei D. Sebastião e o seu exército».

Na prossecução do estudo que venho fazendo sobre D. Sebastião, interessou-me saber quem foi Fr. Bernardo da Cruz. E numa primeira pesquisa, com recurso á Wikipédia, constatei que o monge viveu de 1505 a 1565, o que torna impossível que tivesse escrito esta Chronica, que começa com os últimos tempos do reinado de D. João III e se prolonga até à batalha de Alcácer-Quibir e ao reinado do Cardeal D. Henrique. Tendo morrido em 1565, Fr. Bernardo não podia ter sido testemunha desses eventos. 

Tendo à mão a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, por onde todos estudámos, procurei a figura de Fr. Bernardo da Cruz, para saber algo sobre a sua obra. Nenhuma "entrada" particular mas uma nota de rodapé: «Queirós Veloso, em Estudos Históricos do Século XVI, Lisboa, 1950, demonstrou que a crónica atribuída por Alexandre Herculano e A. A. Costa Paiva a Bernardo da Cruz (edição 1837, reeditada em 1903), não pode ser deste autor, e atribui-a a António de Vaena. Francisco Rodrigues, in Brotéria, 1926, vol. III, fasc. IV, págs. 193-195, mostrou a inconsistência da atribuição desta obra a Amador Rebelo, feita por Ferreira Serpa na edição incorrecta de 1925, Porto. Queirós Veloso descobriu capítulos que continuam esta crónica, ficando a saber-se, deste modo, que ela abrangia provavelmente todo o reinado de D. Henrique. A Relação da vida de El-Rei D. Sebastião de Amador Rebelo acha-se inédita na Torre do Tombo, códice 1745 da Livraria» (p. 471)

As grandes figuras da nossa literatura, como Alexandre Herculano, também se enganam.

Mas quem foi António de Vaena? Continuando a minha pesquisa, apurei que Augusto Ferreira do Amaral, que foi presidente da Causa Monárquica, dirigente do Partido Popular Monárquico e ministro do VII Governo Constitucional,  publicou em 1982 um livro intitulado António de Vaena e a Crónica d'El-Rei D. Sebastião. Esta obra não se encontra disponível no mercado e não tive oportunidade de procurá-la na Biblioteca Nacional, onde certamente estará depositado um exemplar.

Curiosamente, no Prólogo o próprio Herculano alude a António de Vaena, mas recusando-lhe a autoria desta Crónica: «Escreveu também António de Vaena uma Chronica de D. Sebastião. Este, pelo tempo e circumstancias em que se achou, poder-se-hia crêr auctor do manuscripto: mas cumpre fazer algumas reflexões sobre o que Barbosa traz acerca d'elle na Bibliotheca Lusitana. Nesta obra affirma que Vaena escrevera uma Chronica de que elle possuia a copia, tirada do original que se conservava na livraria do Conde de Vimieiro: ora o Conde da Ericeira, que, em diversas sessões da Academia de Historia Portugueza, deu conta dos manuscriptos mais importantes d'aquella livraria, falla sómente de uma historia do cerco de Mazagão, a que vinham appensas algumas relações dos acontecimentos do reino por aquelle tempo, a qual obra era escripta por Antonio de Vaena, e nada mais diz d'este auctor: assim podemos ter por averiguado que esta era a obra que possuia o Abbade de Sever. E dado que assim seja, é certo que a obra de Vaena não se contem no manuscripto do Porto; porque n'este não se trata do cerco de Mazagão. 

Da Relação da vida d'El-Rei D. Sebastião pelo P. Amador Rebello vimos nós uma copia, que tambem existe na Bibliotheca do Porto. É obra mui succinta, como diz Barbosa; e por nossos proprios olhos nos certificamos de que nada tinha com o manuscripto de Fr. Bernardo da Cruz.

Fr. Manoel dos Santos cita muitas vezes na Historia Sebastica certa Memoria ou Relação coétanea, de que transcreve pedaços inteiros: estes pedaços são exactamente tirados da Chronica inedita que existe na Bibliotheca do Porto. Era esta uma das mais poderosas razões que tinhamos para crêr o mabuscripto de auctor diferente dos já apontados; porque, a ser de algum d'elles, te-lo-hia dito aquelle erudito cisterciense, ou pelo menos formado acerca d'isso algumas conjecturas: as reflexões que acima fazemos nos confirmaram inteiramente nesta opinião.

Parece que foi fado avesso de Fr. Bernardo da Cruz o servirem aos outros suas lucubrações, sem que d'elle ninguem faça menção, e conservando-se o seu nome até os fins do seculo passado em total esquecimento. Não foi somente Santos que se aproveitou do que elle escreveo; tambem Faria e Sousa o copiou, sem d'elle dizer uma unica palavra. Esta anecdota trouxe-a a lume o Bispo de Beja, e nós conferindo-a achámos que era verdadeira.

Notaremos em ultimo logar, que havendo apontado Faria, no principio da sua Asia, as fontes d'onde tirara o que escreveu, traz entre outros manuscriptos, notado um, que tratava d'El-Rei D. Sebastião, o qual diz lhe communicára o Abbade João Salgado de Araujo, e que se atribuia a Pedro de Mariz. Foi por este ut aiunt, que Barbosa ajuntou á lista dos escriptos de Mariz uma Chronica de D. Sebastião. Ora, não apparecendo no Apparato de Faria outro algum escriptor duvidoso, pertencente a essa epocha, pode-se colligir sem temeridade, que era a obra de Fr. Bernardo da Cruz, a que viu Faria e Sousa, e que por ventura não existe a que se attribue a Mariz.» (pp. 13-14-15)

A presente Crónica contém 113 capítulos, em dois volumes. O primeiro intitula-se "Da prosperidade dos reinos de Portugal em tempos d'El-Rei D. João terceiro"; o último "Como El-Rei mandou citar por carta de Editos ao senhor D. Antonio, e da falla que D. Francisco Pereira lhe fez". E abrange, como se disse,  o período final do reinado de D. João III, o reinado de D. Sebastião e o começo do reinado do Cardeal D. Henrique.

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Frei Bernardo da Cruz (1505-1565) foi um frade dominicano e prelado português, que chegou a ser nomeado bispo de São Tomé, embora nunca tenha ocupado a diocese. Nascido em Braga, foi enviado de D. João III a Roma e comissário do Santo Ofício por nomeação do Cardeal-Infante D. Henrique. Exerceu também as funções de reitor da Universidade de Coimbra.

 

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CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

CATÁLOGO TEMÁTICO
DE CRÓNICAS E RELATOS
SOBRE D. SEBASTIÃO

Séculos XVI e XVII

Tradições manuscritas

Bibliotecas portuguesas

Índice
 
Frei Bernardo da Cruz? - Crónica de D. Sebastião  p. 3
P. Amador Rebelo - Relação da vida d’elrey D. Sebastião  p. 9
Anónimo - Sumario de todas as cousas succedidas em Berberia/História da Jornada del Rey D. Sebastião a
Africa  p. 13
Fernando de Góis Loureiro - Jornada del Rey D. Sebastião à África  p. 15
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião  p. 17
Anónimo - Jornada de África del Rey D. Sebastião escrita por um Homem Africano  p. 18
Miguel Pereira - Crónica de El Rey Dom Sebastiam  p. 19
Anónimo - Relação do princípio do governo de D. Sebastião  p. 20
Anónimo - [Relação da infeliz jornada d'El Rei D. Sebastião]  p. 21
Anónimo - Vida d’el-rei D. Sebastião  p. 22
Pedro Rodrigues Soares - Memorial  p. 23
Manuel Teixeira - Sumario breve das coisas que vio e alcansou saber manoel teix.ra da vida del Rey d.
Sebastião  p. 24
Anónimo - Relações ao Dr. Paulo Afonso  p. 25
Anónimo - Relação muito certa do apparato da armada para Africa o anno de 78   p. 27


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