Li agora Nosografia de D. Sebastião, de Mário Saraiva (1980), que possuo desde a data da publicação.
Desde sempre tiveram vencimento as mais variadas interpretações sobre a saúde física e mental de D. Sebastião e sobre a sua comprovada misoginia e recusa em contrair matrimónio. O rei morreu com vinte e quatro anos, em Alcácer-Quibir, e não sabemos, portanto, que decisão tomaria quanto a um futuro casamento caso tivesse sobrevivido à batalha. Com essa idade estavam casados todos os príncipes da Europa desse tempo. Seu pai, o infante D. João Manuel, casara com quinze anos, um costume da época. Sabemos que D. Sebastião protelou indefinidamente todos os projectos de casamento, tendo aceitado um hipotético matrimónio com sua prima a infanta Clara Eugénia, filha de Filipe II, apenas para obter do tio apoio para a sua expedição a África. E a tese de Saraiva de que D. Sebastião, profundamente religioso (pelo menos à maneira dele), queria chegar casto ao casamento é no mínimo risível.
Contesta Mário Saraiva as afirmações de Manuel Bento de Sousa, Veríssimo Serrão, Queiroz Veloso ou Júlio Dantas sobre a saúde do rei, fornecendo-nos antes a imagem de um D. Sebastião perfeitamente normal (ainda que o conceito de normal possa ser discutido, mas não é essa a intenção do autor) o que não corresponde minimamente a todos os testemunhos expressos até à data do livro de Saraiva (1980) e muito menos depois! Aliás, a argumentação deduzida por Mário Saraiva contradiz ela mesma a tese que pretende contestar. Acusa, por exemplo, Serrão de referir um episódio de doença do rei, porque no seu raciocínio, um episódio nada prova, mas ignora que Serrão menciona um episódio como exemplo dos muitos episódios semelhantes sucessivamente ocorridos.
No plano físico, afasta Saraiva as hipóteses de epilepsia, diabetes e uretrite, apoiando-se em informações mais ou menos vagas, o que é insustentável.
No plano psíquico, é certo que D. Sebastião possuía boa memória, vontade de se instruir e até uma evidente inteligência, mas isso não significa que ela não tenha sido capturada por insensatas vontades. A convivência diária com o seu professor desde menino, o Padre Luiz Gonçalves da Câmara, terá tido uma influência decisiva no seu comportamento. Parece que o rei possuía, de facto, uma religiosidade profunda, o que todavia não o impedia de se aliar em África a um soberano muçulmano para combater o tio deste ou de negociar com os protestantes calvinistas da Flandres para obter apoio para a sua expedição, isto com grande fúria de seu tio-avô o Cardeal D. Henrique, Inquisidor-Geral de Portugal, que D. Sebastião detestava.
Neste livro, Mário Saraiva indigna-se com o pensamento corrente acerca da saúde física e psíquica do rei, mas nem sequer alude a uma outra circunstância, hoje bem documentada e já aventada aquando da publicação da sua obra: a homossexualidade de D. Sebastião. Talvez por "pudor", Saraiva nem sequer alude a essa possível orientação sexual, que se encaixa perfeitamente no comportamento do rei, nada tendo a ver com uma eventual gonorreia de que o monarca padeceria. Uma certa predilecção pelos jovens marroquinos, que o dramaturgo belga Paul Dresse inscreveu numa das suas peças de teatro, justificaria a obsessão pelo norte de África. Também o historiador norte-americano Harold Johnson, professor nas universidades de Virginia, Yale e Chicago publicou em 2004 um livro documentado sobre a provável homossexualidade do rei.
Eu compreendo que as convicções íntimas do dr. Mário Saraiva o tenham impedido de sequer pensar que D. Sebastião fosse homossexual. No seu pensamento, os reis de Portugal não poderiam ter essas "taras", apesar das afirmações de Fernão Lopes sobre D. Pedro I e de muitas coisas que se escreveram sobre D. Afonso VI e D. Manuel II.
Em qualquer caso, D. Sebastião é o rei português sobre quem foram escritos e publicados mais livros, não só na nossa língua como em línguas estrangeiras. E que deu origem ao mito do Sebastianismo, que subsiste nos nossos dias. Voltaremos brevemente ao assunto, sabendo que nunca serão cabalmente esclarecidas quer as circunstâncias da saúde do rei, quer as reais causas da desastrosa expedição a África em 1578, que a defesa da fé e o ataque ao Grão-Turco só por si não justificam.
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